A Divina Comédia nas botas de um génio

A equação está longe de ser simples mas o resultado não engana: em 69 quilos de gente cabe um génio do tamanho de um pequeno mundo. Parece uma dimensão demasiado exígua para acartar um talento que extravasa os limites da capacidade humana, mas o hipotético ceticismo de quem pudesse atrever-se a duvidar desta premissa é…

A Divina Comédia nas botas de um génio

A equação está longe de ser simples mas o resultado não engana: em 69 quilos de gente cabe um génio do tamanho de um pequeno mundo. Parece uma dimensão demasiado exígua para acartar um talento que extravasa os limites da capacidade humana, mas o hipotético ceticismo de quem pudesse atrever-se a duvidar desta premissa é derrubado semana após semana com demonstrações cabais de que o resultado da equação bate mesmo certo. Bruno Miguel Borges Fernandes – esses tais 69 quilos de gente – é um génio. Com instinto de matador e perfil de guerreiro, com talento de maestro e carisma de líder, mas acima de tudo um génio. Todos os outros epítetos aqui elencados são curtos e pecam por escassos na avaliação do atual capitão leonino e melhor jogador a atuar em Portugal de há 20 meses a esta parte. E toda a análise factual que ouse contestar esta constatação arrisca resvalar para a desonestidade intelectual.

 

Que o homem nunca é apenas o homem mas sim o homem e a sua circunstância, já Ortega y Gasset defendia na primeira metade do século passado. No entanto, quase 100 anos depois, Bruno Fernandes ousa colocar em xeque a máxima do filósofo espanhol ou pelo menos contestá-la até aos limites do impensável. Tudo na circunstância do jovem de 24 anos nascido na Maia parece jogar contra ele, começando pelo seu próprio corpo e terminando no contexto histórico recente em que se insere. Um jovem franzino e sem argumentos físicos aparentes para ombrear com os mais fortes e poderosos eleva-se – metaforicamente falando – acima de todos os que lhe saem ao caminho e fá-lo no meio de uma verdadeira travessia de dor, contestação e vicissitude. A sua circunstância foi tudo menos favorável: em apenas 10 meses falhou o acesso à Champions; foi vítima de um ataque no seu próprio balneário; perdeu a final da Taça de Portugal; rescindiu unilateralmente o contrato com o Sporting; teve presença discreta no Campeonato do Mundo; viu o então Presidente ser destituído e substituído por uma direção de transição; regressou ao clube; foi criticado e renegado por uma significativa franja de adeptos; trabalhou com quatro treinadores todos eles com estilos e registos táticos díspares; e viu-se forçado a assumir a braçadeira após a saída em Janeiro do primeiro na hierarquia dos capitães do plantel. É muita coisa. Demasiada. Tanta que chega a parecer impossível sair de tudo isto ainda mais forte do que se entrou. Estou certo de que Ortega y Gasset não mudaria a sua máxima (o homem é efetivamente o homem e a sua circunstância!) caso cá estivesse para presenciar este trajeto espinhoso, mas o ensaísta madrileno seria sempre mais um entre tantos abismados pela magia que desfila jogo após jogo nos pés do Bruno…

 

Andemos ainda mais para trás, 600 anos antes de Ortega y Gasset, e deparamo-nos com o Inferno de Dante Alighieri. Nada mais apropriado para descrevermos aquilo que Bruno Fernandes viveu no ciclo de acontecimentos acima recordados. 9 círculos, 3 vales, 10 fossos e 4 esferas para um total de 26 parcelas que formam esse ‘Inferno’ que mais não é do que a primeira de três partes da Divina Comédia do poeta italiano. 26 parcelas às quais o capitão do Sporting respondeu (para já) com igual número de golos. Sim, são 26. É o médio mais goleador do mundo neste momento e está apenas a um de igualar o mítico registo de Frank Lampard em 2009/10 ao serviço do Chelsea. As restantes partes da obra-prima de Dante não podiam também elas ter nomes mais apropriados ao contexto do craque leonino. Comecemos pelo Purgatório, não apenas como processo de purificação mas também uma espécie de castigo temporário para o qual muitos adeptos o remeteram após esse ‘pecado’ da rescisão unilateral do contrato. Olhando-o de soslaio, atacando-o cobardemente no esgoto putrefacto das redes sociais, muitos tentaram sem sucesso vergar-lhe o espírito e a cada ataque de que era alvo lá ia o Bruno respondendo como melhor sabe fazer: golos magistrais, assistências primorosas, exibições a roçar a perfeição. E o purgatório foi deixando de ser tormenta para passar a ser processo de catarse. Uma catarse que, chegados ao dia de hoje, assume a forma de simbiose quase perfeita entre Bruno e equipa, entre Bruno e adeptos, entre Bruno e Sporting Clube de Portugal. Quem diria que haveria de ser um Bruno a salvar o que outro Bruno tentou destruir. Um Bruno a prometer levar ao Paraíso – a última das três partes da Divina Comédia – o clube que outro Bruno fizera descer às profundezas do inferno.

 

Menos de um ano depois do dia mais negro da história do Sporting, a equipa volta a carimbar a presença na final da Taça de Portugal e marca novo encontro com o destino. A Taça da Liga, ganha em fevereiro frente ao FC Porto (o mesmo adversário que vai reencontrar no Jamor), já está novamente no Museu de Alvalade. E a disputa da Supertaça em agosto começa a ser cada vez mais uma possibilidade. O título mais desejado – o Campeonato Nacional – ainda está longe, é verdade. Mas Frederico Varandas pode em 10 meses ganhar o mesmo que o seu antecessor ganhou em mais de 5 anos! Com menos gastos, sem demagogia, com mais silêncio do que ruído, com muito realismo e acima de tudo com os pés bem assentes no chão. Mas nada seria possível sem o toque bizarro que faz de toda esta narrativa uma verdadeira ‘Divina Comédia’, já que a inequívoca peça determinante em toda a engrenagem das recentes conquistas é mesmo Bruno Fernandes. O tal Bruno fantástico e superlativo que o outro Bruno – hoje expulso do clube – em tempos contratou. A vida tem destas ironias…