‘As editoras preferem uma menina bonita a um homem com 70 anos’

Fernando Tordo faz cara séria nas fotos, mas durante a entrevista não são raros os sorrisos. A conversa não coube nestas páginas: afinal, são 71 anos de vida, completados na semana da entrevista, e 54 de canções. Recordou a primeira vez que o som da música, vindo de uma corneta vermelha, o fascinou, ou como…

‘As editoras preferem uma menina bonita a um homem com 70 anos’

Recordou as aulas de história dadas por Mário Soares, os dois primeiros acordes que aprendeu no Colégio Moderno, a parceria mágica com Ary, o choque com as editoras, o encanto e desencanto da política, a ida para o Brasil, o alcoolismo que dominou há 13 anos. E falou muito do presente. Continua a compor todos os dias, começa lá para as 5h, a hora em que a cidade dorme e a zoada não atrapalha. Acaba de lançar Duetos – Diz-me com quem cantas, em que chama 17 nomes da música a partilhar o seu legado.

Duetos – Diz-me com quem cantas… Dir-te-ei quem és?

Vem justamente dessa frase. Esta ideia de subtítulo surgiu porque são 17 as pessoas com quem canto no disco. Há vozes que não são tão conhecidas assim, outras que são de um público que normalmente pode não estar ligado ao meu tipo de música. Quis colocar também estas vozes de outras latitudes numa posição de poderem mostrar o que gostariam de fazer com as canções.

Deixá-los reinterpretar as suas músicas. Foram as pessoas que escolheram as músicas que queriam cantar?

As minhas intervenções no disco são relativamente curtas. Nunca me passou pela cabeça convidar uma pessoa para depois fazê-la chegar ao estúdio e limitá-la, mas fui eu que escolhi quem cantava o quê.

A Capicua, por exemplo, por que lhe deu a Tourada?

A Capicua é um caso muito interessante: ainda hoje é a única dos 17 convidados que não conheço pessoalmente. Ela recebeu um prémio da Sociedade Portuguesa de Autores no mesmo ano em que também recebi um e fiquei interessado, fui ver o que ela fazia e fiquei muito fascinado. Havia ali um recado, uma coisa mais profunda por dentro. Quando comecei a pensar na Tourada, que é uma coisa que extravasou do âmbito da canção para se tornar num momento da nossa história recente, surgiu-me a ideia de fazer rap. E aí ocorreu-me a Capicua. Ela vive no Porto, contactei-a e ela foi simpatiquíssima. Estava muito grávida, não podia deslocar-se a Lisboa, mas por coincidência estava a gravar no Porto. Então disse para nós enviarmos o instrumental e ela gravava. Hoje em dia tecnologicamente tudo isto é possível.

Mas tem mais experiências no disco.

Tenho, com gente que não conhecia. O Héber Marques [dos HMB] conheci no estúdio. Foi o meu filho mais novo, o Francisco Maria, que me falou dele e me disse para o ouvir no Youtube. Fiquei encantado com aquela maneira de cantar.

Foi também buscar nomes conhecidíssimos do jazz, como a Maria João.

Sim, para o tema de jazz ‘O rato roeu a rolha’. Era difícil pensar em alguém que não fosse dessa área para cantar um texto que tem toneladas de palavras. A Maria João é a pessoa que encarou isto com melhor sentido de humor e profissionalismo. Chegou ao estúdio e fez aquilo que se ouve no disco quase à primeira. Às tantas há uma espécie de uma meia gargalhada que dei que está lá, que não quis tirar da gravação. Já a ‘Estrela da Tarde’, quis experimentar como era com uma voz feminina. Convidei a Carminho porque estava à vontade com ela e evidentemente ela tinha coisas para dizer em relação à canção. Portanto cada caso… Até o meu próprio filho, que é pianista clássico e um jovem professor do conservatório, o Filipe, nunca me tinha acompanhado. Aquilo que se ouve é um músico da música clássica a tocar com um tempo muito especial, com aquela preparação toda que eles têm, com aquela contenção.

Há pouco estava a contar-me que continua a levantar-se às 4h30, 5h00, para trabalhar e fazer música… Como foi aqui o seu processo de trabalho?

Em relação ao disco foi diferente porque as coisas estavam todas gravadas, aí foi pensar com alguma assertividade quem é que vai cantar o quê. Depois foi ter alguma informação sobre as tonalidades. Mas no meu trabalho estou quase sistematicamente a compor. Aproveito muito as horas do dia e, muito especialmente, as horas da madrugada e da manhã.

É mais uma estrela da manhã, então.

Sou até mais da madrugada. Nem nos apercebemos disto, mas numa cidade há um ruído sistemático e só há um período do dia em que esse ruído de fundo da cidade baixa muito, que é entre as duas e as seis e tal. É o período do silêncio absoluto, em que não há a zoada, o barulho de fundo. Essas horas da noite são fantásticas porque têm aquele ponto certo, para mim, para fazer música. No meu próximo disco, que ainda não posso revelar, estou a fazer um trabalho muito profundo sobre um grande poeta português do século XX. Tenho um concerto do maestro Jorge Costa Pinto agendado para novembro com a Orquestra Sinfónica Portuguesa, finalmente.

Tem uma preparação de maratonista. Não se sente cansado desse exercício constante?

Não porque esse exercício, ao contrário de ser cansativo, é revitalizante. Significa que vai ficando cada vez mais tranquilo. Vou fazer agora 71 e sinto-me melhor, mais à vontade e mais descontraído a fazer música como provavelmente não me sentia aos 19, aos 30, aos 40. Mas a idade traz exigência, e traz mais exigência quanto melhor estamos connosco próprios e com os outros. Isso quer dizer que espiritualmente você se vai encontrando… para se respeitar assim tem que respeitar os outros e essa preocupação com os outros é que ajuda muito. Há quase que torturar o egoísmo, o egocentrismo. Começar a pensar em si como um todo dos outros, e não em si como si próprio.

Neste disco, partilha com o passado, o presente e o futuro da música.

É isso, porque este é um exercício que eu agora estou muito bem preparado para fazer, mas digamos que não o desejaria fazer quando tinha
40 ou 50 anos porque não o considerava necessário. O que de facto mudou e consegui alterar em mim foi a capacidade de dialogar. Mais: a capacidade de não me levar muito a sério, que é uma coisa fundamental. Digo a toda gente, aos meus filhos e aos meus amigos para não se levarem muito a sério. E falar sobre as coisas. Ainda há pouco lhe estava a dizer que agora nos meus concertos conto muitas histórias de como eram feitas as canções com Ary dos Santos. Sou o sobrevivente da parceria, às vezes digo na brincadeira ao público: ‘Vocês aproveitem enquanto estou vivo que depois não há ninguém para contar isto’!

Como era então o vosso processo?

Era muito interessante, e o mais engraçado é que eu consegui, até onde a memória chegar, desmontar algum dramatismo de como estas coisas eram feitas, com um envolvimento intelectual e por aí diante.

Um certo mito…

É. Independentemente de gostarem muito da escrita dele, se calhar as pessoas têm uma ideia muito fora do que era Ary dos Santos. As nossas canções eram feitas muitas vezes debaixo de muita gargalhada, muita parvoíce (risos)…

…e?

E no entanto serem coisas aparentemente profundas. Posso falar do caso da ‘Estrela da Tarde’, que foi uma canção feita à mistura com muitos cigarros, muito cansaço, muita madrugada, muito não dormir. E depois com um divertimento profundo sobre a palavra tarde. Embora tivéssemos prática de trabalho suficiente para encontrar essa sintonia com rapidez, às vezes as coisas eram complicadas. Mas essa complicação para nós era um divertimento… e passar isso ao público é desmontar uma ideia errada, mas construir uma ideia bela.

Por que acha pessoas que as pessoas procuram, até se calhar exigem, esse ideal intelectualizado, dorido até? Os poetas podem ser alegres!

E devem! Houve vários fatores e até a própria sociedade portuguesa era muito ligada à censura, isto até ao 25 de Abril. Veja que a ‘Tourada’ aparece no auge da censura mas coincide com uma coisa completamente louca que é um júri aceitar num Festival da Canção, visto por sete milhões de portugueses – estamos a falar de um canal único, a preto e branco –, uma coisa destas.

Como é que o júri deixou essa brecha aberta?

Alguns fatores passam-me ao lado, mas sei algumas coisas de informações que fui tendo ao longo destes 47 anos. Creio que teve muito a ver com um facto: as canções [o texto] naquela altura eram enviadas num envelope para o festival e não podiam ser cantadas, porque isso determinava
o intérprete e poderia haver favoritismo. Os envelopes só eram abertos se a canção fosse apurada. O Festival da Canção antes do 25 de abril, no seu esquema organizativo, era totalmente democrático. E portanto isto de algum modo terá facilitado. Presumo também que quem leu o texto votasse imediatamente sim porque era engraçado, mas não lendo o texto na sua profundidade. Tinha uma crítica social brutal.

Tinham a noção de que estavam a fazer música de intervenção ou não havia ainda esse chapéu?

Nós no fundo já não fazíamos outra coisa. E tínhamos essa capacidade de, no dia a seguir, conseguir fazer uma coisa completamente diferente. Havia esse estado de espírito permanente em nós. Uma parceria é uma coisa muito difícil de conseguir, não se faz só porque dois tipos se juntam a fazer canções, um a escrever, outro a fazer música. Há outras coisas. É preciso haver um encontro mágico entre as duas mentalidades.

E o Fernando e o Ary tiveram esse encontro mágico?

Se dissesse: ‘Oh Zé Carlos, não gosto dessa palavra’, ele não cortava a palavra, ele deitava o papel fora. Era uma coisa impressionante. Dizia assim: ‘Isto de facto está uma merda!’.

Estavam todos os dias juntos?

Muitos. Trabalhámos 13 anos. Costumo dizer que as grandes conversas que tive com o Ary dos Santos foram nas canções e não a falar um com o outro, porque o nosso tempo era consumido a fazer canções, a falar e a pensar sobre isso. O José Carlos trabalhava durante o dia, numa agência de publicidade, chegava a casa cansado mas com vontade de mudar a agulha.

Conheceram-se no Festival da Canção, não foi?

Conheci o Zé Carlos na Rua Nova do Almada, nos escritórios da Valentim de Carvalho, que eram no terceiro andar de um prédio que ardeu. Tinha sido convidado finalmente para ir cantar ao Festival da Canção, estamos no final de 68, e chego lá acima…

É um ‘finalmente’ relativo, que ainda era muito novinho.

Pois, tinha 20 anos. Mas já tinha passado os últimos quatro anos a tocar nos conjuntos pop e rock e portanto chego ali, a um meio com os grandes cantores daquela época – a Simone de Oliveira, o António Calvário, o Jerónimo Bragança, entre outros – e vou um bocadinho intimidado. Já tinha contrato assinado com a Valentim de Carvalho por causa dos Sheiks, e quando chego ao escritório o Nuno Nazareth Fernandes – que é o primeiro compositor, e grande compositor, que trabalha com o Ary dos Santos, e é ele que faz a ‘Desfolhada’, a ‘Canção da Madrugada’, grandes êxitos dessa parceria–, vem muito tranquilamente ter comigo, cumprimenta-me e diz: ‘Quero apresentar-te o Ary dos Santos’. E o Ary dos Santos logo com aquele ar dele: ‘Mano, e tal, como é que estás’. Foi o Nuno que provocou isto.

Gostava de recuar à meninice. Nasceu nos Anjos. Quais as suas primeiras memórias de infância?

Tenho a lembrança de com uns quatro anos ter atirado um relógio despertador que havia no quarto dos meus pais pela janela fora, não faço ideia porquê. Um bocadinho mais para a frente lembro-me da primeira vez que o som da música começou a fascinar-me: foi num cabeleireiro na Avenida da Igreja. No Natal, a dona montava uma árvore gigantesca e pendurava muitos brinquedos para os filhos das clientes. No meio daquela panóplia toda, soldados e carrinhos, tirei a corneta de plástico, vermelha. A minha mãe até me perguntou: ‘Então no meio de tanta coisa tiraste uma corneta?’. Foi pelo som, era a música. Depois os vizinhos contam-me que eu passava as manhãs sentado na varanda de casa, na rua Acácio Paiva. Havia aquelas carcaças deliciosas e uma manteiga que creio que era Primor, fantástica, e eu enchia umas cinco ou seis carcaças de manteiga e sentava-me na varanda a comer e a cantar.

O que faziam os seus pais?

O meu pai era industrial dos isolamentos acústicos e térmicos de cortiça. Começou como operário: veio de uma aldeia ao pé de Alenquer era quase uma criança. Depois vai ainda como operário para a Mundet, uma empresa de cortiça no Seixal, e acaba por se estabelecer por conta própria devido ao seu talento, à sua capacidade. O meu pai era um inventor, completamente autodidata. A minha mãe era doméstica. Ninguém tinha qualquer relação com ninguém da música.

O que ouvia em casa? Só rádio?

Às tantas o meu pai, com o seu crescimento económico, começa a ter dinheiro para comprar isto ou aquilo. Vou dar um exemplo: sou sócio do Benfica desde 1952 – não sou desde 48, quatro anos antes, porque o meu pai não tinha dinheiro para pagar as quotas. Pagava as do meu irmão mas para mim ainda não chegava. Por isso é que às vezes digo que a única coisa que não desculpo ao meu pai é isso – mas estou a caminho dos 70 anos de sócio, ainda lá chego. Há um crescimento económico na família e às tantas resolvem comprar um gira discos alemão, um móvel, aliás, que de um lado tem uma porta que abre e sai a estante dos discos, no outro lado abre-se e é um bar. Depois tinha um botão ao meio e vinha de lá o gira discos. Havia um botão que dizia UKW no qual eu me fartava de carregar não percebia porque não transmitia nada., fazia-me cá uma confusão… Era a frequência modelar. Já existia nos anos 50. E só muitos anos depois é que descobri o que era. (risos)

Passava então montes de tempo à volta desse aparelho!

Era onde passava as minhas horas, com discos do Tony de Matos e do meu ídolo de sempre, Francisco José. Aquela coisa de nunca ter tido qualquer espécie de problema de cantar na língua portuguesa vem daí, aprendi-a com esta gente.

Conheceu o Francisco José?

Estive uma vez na vida com Francisco José, em 1984, num programa gravado no Casino Estoril. Ele viu-me entrar, interrompeu o ensaio – realmente aconteceram coisas na minha vida absolutamente inacreditáveis – e pergunta de cima do palco: ‘Você é que é o Fernando Tordo?’. Fiquei à rasca, disse que sim. E diz ele de cima do palco para o microfone: ‘Pedindo desculpa a estes companheiros que estão todos aqui, você é a voz de que mais gosto em Portugal’. A primeira e a única vez que estive com o meu ídolo de sempre, até hoje é o mesmo, e diz uma coisa destas. Depois do ensaio fui ter com ele. Nessa altura ele já estava muito doente, tinha problemas cardíacos, e contei-lhe que era fã dele desde criança. Trocámos mais umas frases e ele diz-me uma coisa de que nunca mais me esqueci, por mais que me tenha doído: ‘Acha que devo continuar a cantar?’. E neste momento o mundo que tinha na cabeça como que dá uma volta, estilhaça-se.
A única vez que estive a falar com o meu ídolo e ele pergunta-me se deve continuar a cantar…

O que lhe respondeu?

Ele de facto não sabia que estava a falar com um fã tão grande, não terá entendido a profundidade que tinha para mim. Disse: ‘Uma voz como a sua não pode deixar de cantar. Tem que ser até morrer’. O que é um rapaz como eu naquela altura, com 40 anos, responde ao seu ídolo numa altura destas? Ficou muito feliz com a minha resposta e disse uma frase engraçadíssima, mas muito profunda, que não posso aqui repetir.

Alguma vez fez essa pergunta a si próprio? Nem quando embateu com as editoras pensou nisso?

Não. Sou completamente invulnerável por via do meu trabalho e da minha capacidade de ter resistido 54 anos nesta profissão e hoje estar muito bem. Ainda hoje me mandaram os parabéns pelos duetos, pessoas que mal conheço ou não conheço de todo. Tive sempre uma espécie de carapaça.
A confiança que tenho em mim próprio é agora a de chegar ali acima e saber exatamente o que vou fazer. Pegar na viola, no gravador, pegar nos poemas e saber o que vou fazer. Não há ninguém em nenhuma editora discográfica, em qualquer parte do mundo, que ultrapasse isso.

Já tem o sentimento de realização dentro de si?

Só posso ficar um bocadinho triste, mas de qualquer modo sinto que o trabalho está feito. Tive sempre a preocupação de gravar tudo aquilo que fiz. Se as pessoas me pedirem uma cantiga que tenho na gaveta não há: está tudo gravado. Tenho discos que ainda não foram editados. Justamente por causa desta incompreensão com as editoras, que querem um iogurte com um prazo de validade. As editoras preferem uma menina bonita a um homem com 70 anos. Eu compreendo, mas isso não interfere nada com a minha capacidade de fazer música! Era o que faltava.

Com este aparte descambámos da história da sua vida. Como foi o seu percurso escolar?

Chego ao liceu Camões com nove anos. Detestei. Tinha um diretor que era um senhor muito conhecido a quem a gente chamava-lhe ‘Cabeça de Martelo’. Era uma figura que durante as sessões da Mocidade Portuguesa passeava com um olhar terrível a olhar para a formação. Depois faziam-se guerras, e uns tipos queriam ser comandantes de castelo, uma coisa completamente nazi. Era copiado de lá. E detestava aquele tipo de matéria: físico química, matemática, era terrível. O ensino de música era cantar o Hino Nacional e o da Mocidade. E os meus pais mudaram-me para a secção de Alvalade do Liceu Camões. Aí tive um desentendimento com o senhor padre e tive uma chatice em casa por causa disso. E começo a rejeitar, a ter grande aversão.

O que fez ao padre?

(sorri) Não estava muito interessado na matéria e ele escreveu um papel para os meus pais com duas palavras que nunca mais me esqueço: trejeitos e momices. Veja lá o que me marcou que nunca mais me esqueci (risos) Passaram 60 anos! A minha mãe acaba por ir inscrever-me no Colégio Moderno. Quando chego encontro o doutor Mário Soares com 33 anos, a doutora Maria José, e o meu querido amigo Bastos Gonçalves que debaixo do braço para a escola levava uma viola.

Foi lá feliz, então.

Fui! O professor de música era meu querido Joel Mascarenhas, que entrava nas aulas e em vez de dar isto ou aquilo a primeira coisa que perguntava era: trouxeram a viola? Isto agarra uma pessoa para a música. Quem ama a música não se esquece. Com 14 anos já sabia que queria a música. Tenho aquelas memórias de tirarmos as violas que levávamos escondidas debaixo do saco, ou que ficavam nas camaratas dos alunos internos… Era uma coisa louca. Foi o Bastos Gonçalves que me ensinou os meus dois primeiros acordes, o de ré maior e o de lá maior. E de repente a descoberta mais fantástica para mim: dentro desses dois acordes, cabia quase toda a música que a gente ouvia, portuguesa e estrangeira. E a vida mudou completamente.

Como era Mário Soares como professor?

Adorava as aulas dele. Às vezes digo na brincadeira que não sei se o que ele dizia era verdade ou mentira, mas que era fascinante era. Ele nem pegava no livro, contava aquilo de tal maneira que a gente só ficava a ouvir. Simultaneamente, vem daí aquilo a que posso chamar, passe a expressão, de alguma consciência política. Fui várias vezes chamado ao gabinete, por indecente e má figura…

Afinal o Colégio Moderno não lhe moldou as tropelias!

(risos) Tudo o que fosse reagir a matemática e físico-química era comigo. Protestava, fazíamos greves (risos). Isto vinha a propósito de?

Da consciência política.

Isso. Às vezes chegávamos cedo à rua de Malpique, para ir a uma pastelaria que tinha as melhores bolas de Berlim do mundo, e havia uns carros pretos estranhos. Era a polícia política que vinha buscar o doutor Soares. Sabíamos que era isso porque depois entrávamos no portão da escola e aparecia a doutora Maria de Jesus com o ar que qualquer mulher deve ter quando sabe que o marido vai preso e provavelmente vai levar uma carga de pancada. Esta tomada de consciência de que isto é possível, de irem buscar um tipo a casa de manhã cedo, faz muita confusão. E depois a razão. É por ter roubado? Não, é por uma questão política.

Muitos anos mais tarde, em 91, filia-se no PCP. Álvaro Cunhal ainda liderava o partido. Pesou na sua decisão?

Falei com ele várias vezes, é alguém a quem chamo com letra grande e alta um Artista a todos os níveis. Mas isso a partir de um determinado momento deixa de contar, falamos de uma pessoa, e estamos a falar de um partido político. Quando me juntei foi porque considerei que no caso de haver alguma reversão é ali que está organizada alguma coisa muito séria. Simultaneamente, à medida que uma pessoa vai sendo solicitada para isto e aquilo –o chamado ir a todas – vemos que o partido tem os mesmos defeitos que os homens têm. A ambição do poder, o sentido de superioridade sobre o outro, a tentação de uns serem tratados muito bem e outros não…

Desencantou-se.

Mas completamente! Pergunta-me assim: era capaz de pertencer a outro partido político? Não. Porquê? Porque os partidos políticos, para mim, são redis onde se junta umas tribos, ou milhões, ou milhares, ou apenas centenas de pessoas. Eles são necessários à democracia, e acho que são porque existe a liberdade. E enquanto existir a liberdade… O meu lado da barricada chama-se liberdade. E se houver algum partido político, seja ao centro, à esquerda ou uma coisa assim, e que diga que a bandeira deles é a da liberdade, eu estou desse lado. Mas não estou dentro de nenhum partido.

Chegou a dizer que a dada altura foi prejudicado na sua carreira por ter estado. Em quê?

Fui prejudicado não pelo partido a que pertenci, mas pela imagem que isso projeta. A seguir ao 25 de Abril o problema não era ser de esquerda ou de extrema-esquerda, os partidos de extrema-esquerda eram muito convenientes à direita. O que era necessário era combater o PCP, o inimigo, a organização, era ali que estava a capacidade invulgar de mobilização. Artistas mais ou menos ligados à extrema-esquerda sempre foram apoiados, não tiveram grandes problemas. É a primeira vez que estou a dizer isto, mas hoje vale a pena dizer, porque a gente recorda as circunstâncias assim: do PCP nem pensar, da extrema-esquerda era fantástico, servia inclusivamente para chamar aos ministros revisionistas, social-fascistas (risos).

Fez em fevereiro cinco anos desde que abandonou o país e foi para o Brasil. Foi uma forma de intervenção?

Foi. Ao princípio as pessoas não perceberam, fui muito insultado, eu e a minha família fomos muito agredidos, a mando da tropa de choque que o Passos Coelho tinha neste país.

Tropa de choque? Acha que foi orquestrada a opinião?

Completamente. Aquilo que escreveram não é orquestrado, foi mesmo uma tropa de choque montada mais ou menos perto do poder político para destruir quem quer que seja, disso não tenho dúvidas nenhumas. E esse fulano Passos Coelho se ele se insinuar para ser ainda alguma coisa, se eu tiver força, faço as malas outra vez e vou-me embora. Disso não tenho qualquer espécie de dúvida. Pertenço a uma geração que antes, durante e depois do 25 de Abril trouxe aquela coisa que para mim é fundamental que é a liberdade. Não aceito que através desta conquista que foi feita possa governar o meu país um indivíduo como ele: incompetente, um neoliberal desatino. Por causa do Passos Coelho existiu um tipo chamado Miguel Relvas, está tudo dito. Isto para mim é inaceitável. Amanhã Portugal vai ser governado por um partido de direita? Bem, isso faz parte da democracia, vai acontecer assim como aconteceu. Que eu não quero que isso aconteça é verdade que sim, mas não é isso que está em causa – o que está em causa é o que essas pessoas, através do voto popular, são capazes de fazer e que responsabilidade assumem perante um povo. E isso para mim é inquestionável – metem esta gente no governo e eu vou-me embora outra vez. Sou o 139029 do arquivo de identificação de Lisboa. Não sei porque é que as televisões foram atrás de mim quase até ao avião quando me fui embora, era evidente por que ia! Eu disse: não quero esta gente a governar o meu país. Mas sou só um e ninguém tem que vir atrás de mim.

Se vier um partido de direita para o poder, o que lhe interesse é quem assume a liderança, a sua opinião muda consoante isso?

Interessa que seja uma coisa muito difícil de ser: ser gente séria. Que não se deixe comandar pelas troikas e destroikas, que não permita isso.

Não tem nada pessoal contra Passos Coelho?

Pessoalmente não, enquanto político tenho tudo.

Nunca se arrependeu de ter ido para o Brasil?

O Brasil acaba por ser outra experiência gigantesca. Passo quase quatro anos no Brasil a fazer rigorosamente aquilo de que mais gosto que é música. Mas em simultâneo assisti ao dia a dia, a hora a hora, do desfazer daquele país gigantesco. Vivi os quatro anos que os jornalistas deviam ter vivido. Vi como os erros sérios de Dilma Rousseff foram aproveitados pelos donos do Brasil para por Jair Bolsonaro como presidente. Soube à hora de almoço aqui em casa que o Temer é um santinho, nunca fez mal a ninguém, não tem dinheiro de nada. Fartei-me de rir. Vi o hora a hora, a necessidade absoluta de prender Lula da Silva. Os motivos ou são verdadeiros ou falsos, mas puseram-no preso ate provavelmente ao fim da vida dele. Como é que o tipo a quem aparentemente ofereceram um tríplex é o problema mais complexo comparado com o Temer que esteve quatro dias preso e foi libertado? Acho engraçadíssimo como isto se desenrola e como se chega a um fascista que ouvi aos gritos no senado, em direto, a louvar um major que foi um torturador da ditadura brasileira.

Podemos dizer que também fugiu do Brasil para voltar a Portugal?

Não, não. Achei que estava na hora. No fundo Portugal, em meu entender, é de há uns anos a esta parte um país onde sinto a liberdade. Claro que há opiniões que dizem que está melhor, outras pior, enfim, as guerras políticas do costume.

Queria só falar de mais um capítulo da sua vida que tornou público no ano passado, que foi a luta contra o alcoolismo. Disse que resolveu partilhar porque sente uma espécie de missão. Esta sua missão já deu frutos, já ajudou outras pessoas com a sua história?

Inevitavelmente sim. Em todas as coisas precisamos de exemplos. Os AA preservam essencialmente na sua estrutura o anonimato, não é possível chegar a uma reunião, como cheguei há 13 ano e ir de máscara. Depois passa aquele primeiro impacto de surpresa, as pessoas vão estabelecendo mais contacto. No entanto depois das reuniões as pessoas vão à sua vida, ninguém estabelece em princípio laços de amizade. A recuperação do alcoolismo é muito complexa, que se consegue apenas fazer se a pessoa tiver muita vontade e se conseguir atingir aquilo que é, no fundo, a bandeira, o ponto mais alto dos AA, que é o primeiro passo: o reconhecer que se é alcoólico. Enquanto não for capaz de dizer assim: ‘Eu sou o Fernando e sou alcoólico’ você vai ter muita dificuldade. Tem que aprender a humildade e outra coisa enorme que é aquilo a que se chama o poder superior. Na oração da serenidade usamos a palavra Deus conforme o que cada um de nós entende por Deus. Se me perguntam se tenho um Deus, digo que tenho – é o meu poder superior, que é o que me mantém sem beber, equilibrado, certo. Consegui por isso é natural, até porque o tornei público, que haja gente que possa seguir o meu exemplo. A ocultação é uma coisa negativa, e quem faz mal é a nós próprios.

Ocultou durante muito tempo a si próprio que era alcoólico? Antes de dar o primeiro passo.

Tive uma vantagem muito grande que foi a vontade imensa que tinha de deixar de beber. A maior parte dos companheiros que conheci foram como que obrigados, porque tinham a família devastada, o emprego por um fio, estavam fisicamente de rastos. Eu não, fui com uma vontade muito grande porque sabia que independentemente dos tratamentos que já tinha feito e dos milhares que já tinha gasto a tentar-me tratar havia sempre uma única coisa que fui tentando evitar, que era chegar aos AA. Não sei porquê. Tinha a ideia de que quando lá chegasse poderia ser então o ponto correto.

Socialmente como se gere isto?

É muito normal, em casa, em família, e fora, acompanharmos as refeições com bebida, para lá da vida artística. É o beber social, ao almoço bebe–se um copo, ao jantar outro, e aí está tudo bem.

Mas consegue fazer isso?

Não! Se ingerisse uma gota de álcool era o maior desgosto da minha vida porque isso é uma recaída. Nem uma gota! Uma recaída é o ponto zero, e o meu ponto zero foi há 13 anos. Não é uma questão de teimosia, é porque não me apetece. E abro as garrafas de vinho, gosto de ler os rótulos.

Não lhe faz impressão?

Não. Faço coisas que muitos alcoólicos não conseguem fazer. Há alcoólicos que não conseguem estar sentados a uma mesa onde haja sequer uma garrafa de vinho, é demolidor para eles. Eu abro, cheiro, gosto de ver as pessoas beber. A única coisa de que não gosto é de ver um tipo que está claramente com os copos dizer que controla perfeitamente a bebida. Isso incomoda-me.