Sem carisma ou paixão, o ministro da Defesa sudanês, Awad Mohammed Ibn Auf, anunciou na televisão estatal o fim da governação autocrática do Presidente sudanês, Omar a-Bashir, no poder há 30 anos. Saíram tanques à rua, foram libertados presos políticos, o chefe de Estado ficou detido no palácio presidencial e multidões mobilizaram-se para abraçarem este novo capítulo da sua história coletiva. O golpe de Estado foi o culminar de meses de protestos nas ruas contra o regime de al-Bashir e o antecipar de um outro golpe de Estado de uma ala islamita do regime, segundo o Sudan Tribune, apoiada pelos serviços secretos e por uma parte dos militares,
Os protestos começaram por ser contra o aumento do preço do pão, elemento essencial na dieta da grande maioria dos sudaneses, mas rapidamente evoluíram para reclamar reformas económicas estruturais económicas e o fim do regime. Aos protestos, o regime respondeu com balas de borracha, gás lacrimogéneo e, no limite, com balas reais. Pelo menos 50 pessoas morreram desde o início dos protestos.
Deposto o ditador, os militares anunciaram o encerramento do espaço aéreo e das fronteiras até a situação acalmar, a suspensão da Constituição e a formação de um conselho militar, responsável pelos próximos dois anos de governação até serem realizadas eleições. Não se sabe se os militares se agarrarão ao poder, mas a desconfiança sobre essa possibilidade não é pouca.
«Apenas aceitaremos um Governo de transição civil», disse à agência Reuters Omar Saleh Sennar, membro da Associação de Profissionais Sudaneses, que liderou os protestos. Na quinta-feira à noite, manifestantes e militares entraram em choque: os segundos impuseram o recolher obrigatório, mas os primeiros recusaram-no e mantiveram-se nas ruas. Sabem que para manter a pressão não podem voltar às suas casas, não podem simplesmente entregar o poder aos militares que ainda há semanas apoiavam Al-Bashir. «O antigo Governo é essencialmente o novo Governo», disse Magdi el-Gizouli, analista sudanês do Instituto de Valley Rift, ao Washington Post, referindo que a «natureza do poder foi seriamente contestada, mas não alterada».
Pressão que parece ter dado os primeiros frutos, pelo menos ao nível das palavras. «Somos os defensores das exigências do povo», disse Omar Zein al-Abideen, membro do conselho de transição militar, garantindo que «não estão gananciosos por poder». Para o militar, as soluções para a crise política que se vive no país devem partir dos manifestantes, acrescentando que os militares não irão interferir. Por agora, continuou, o conselho militar vai reunir-se com todos os grupos políticos nacionais e líderes dos manifestantes para se formar um governo civil.
No caminho de uma verdadeira revolução
«Não haverá muito interesse em afrontar diretamente os manifestantes e [os militares] devem olhá-los como força de apoio», explica ao SOL Daniela Nascimento, professora na Universidade de Coimbra, investigadora do Centro de Estudos Sociais e especialista no Sudão. «A reação dos militares será de aproximação aos manifestantes», acrescenta.
Mesmo com estas garantias, os manifestantes, ou pelo menos uma parte deles, representados na Associação de Profissionais Sudaneses, mantêm a desconfiança. «Ainda estamos no caminho da verdadeira revolução», disse a associação em comunicado, criticando o conselho militar por ser «incapaz de criar a mudança».
«O argumento principal deles [manifestantes] é não quererem ninguém do antigo regime ou do antigo partido governante a participar no conselho de transição», relatou a jornalista Hiba Morgan, da Al-Jazeera.
A exigência dos manifestantes será difícil de fazer cumprir. «O regime era particularmente fechado e resistia à oposição, abertura e a qualquer questionamento das suas políticas», diz Daniela Nascimento. Um cenário em que a elite governante não se renovava e a da oposição não tinha outra alternativa a não ser abandonar o país, quando tinha forma de o fazer. Além disso, acrescenta a investigadora, «os partidos existentes, mesmo os da oposição, eram partidos fantoche controlados pelo partido de Al-Bashir».
Como se estas dificuldades não bastassem, tem de se ter ainda em conta a questão do recenseamento eleitoral: que forças políticas que vão a votos e em que condições. «Vejo com alguma dificuldade organizarem-se eleições livres, justas e com todas as garantias de participação de todos os setores do país, que é muito grande, diverso e com diferentes reivindicações, num espaço mais curto», antecipa Daniela Nascimento, referindo-se ao período de dois anos previsto pelo conselho militar para a realização de eleições.
Ainda assim, a especialista em política sudanesa admite estar divida: por um lado, há grandes condicionantes para a realização de eleições, mas, por outro, pode ser considerado demasiado tempo e os militares podem agarrar-se ao poder, dado o predomínio de homens do antigo regime. É precisamente esta a preocupação dos manifestantes e o desafio é, acima de tudo, a limitação do poder dos militares e a criação de instrumentos e cultura democráticos num país há muito dominado pelo exército e sob o tacão de ferro de uma ditadura ainda há anos acusada de promover o terrorismo internacional.
Um regime fechado que aguentou 30 anos com Al-Bashir na liderança, lá chegado também por via de um golpe de Estado sangrento em 1989, mas que não aguentou a secessão do Sudão do Sul, o acordo de paz e a crescente atrofia económica. «Desde 2011/2012 que – com a secessão e independência do Sudão do Sul e o acordo de paz que terminou com o conflito violento com o Sul – claramente o presidente Al-Bashir e o regime por si liderado ficaram muito fragilizados. Houve um certo cansaço e fadiga», analisa Nascimento, explicando que os protestos foram o resultado do avanço do regime numa direção de ainda maiores «restrições óbvias às liberdades fundamentais e participação política» e do «aumento do preço dos bens essenciais, como o pão».
Ainda que os militares mantenham o poder, é possível que exista uma ala de apoio ao regime que possa de alguma forma representar uma ameaça à nova situação política – a ala que iria fazer o seu próprio golpe de Estado –, não esquecendo as milícias que, ao serviço de Al-Bashir, atacaram os manifestantes anti-regime. Além disso, ainda antes do golpe de Estado já havia defensores do antigo líder a sair à rua e a manifestar apoio ao governante agora deposto. Na quinta-feira, tornaram a tentar fazê-lo, mas os militares proibiram-nos – tanto por se tratar de um ato simbólico de contestação como por, eventualmente, temerem a violência que poderia originar. «Desde o início dos protestos que Omar al-Bashir tem tido manifestações significativas de uma franja da população que podemos considerar estar mais ou menos instrumentalizada por um discurso muito islamizado», diz Daniela Nascimento.