A Cordoaria Nacional, em Lisboa, acolhe até este domingo a Lisbon Art and Antiques Fair. No âmbito da feira, juntámos um colecionador, Carlos Monjardino, presidente da Fundação Oriente, e um psicanalista, Vasco Santos, fundador da editora VS, para uma conversa informal sobre o que está na origem desta pulsão humana e o que motiva o colecionismo.
As coleções têm de começar por algum lado. Dr. Carlos Monjardino, por onde começou a sua?
Eu colecionei várias coisas, depois fui deixando cair algumas e passando para outras. A primeira coleção com princípio, meio e fim foi de relógios de algibeira, as chamadas ‘cebolas’. E comecei por fazer essa coleção porque me apareceu uma pessoa pela porta adentro a oferecer um disparate de relógios – alguns 50 relógios de algibeira, uns a funcionar e a maior parte a não funcionar. Comprei aquilo porque gosto muito de relógios, já gostava antes, e comecei a fazer coleção desses relógios. Hoje tenho muitos, para aí 200, uns bastante melhores que outros. Depois deixei de colecionar relógios de bolso e passei para os de pulso. Ao longo da minha vida deram-me alguns – por exemplo o meu pai – e fui adquirindo outros.
Mas também tem outras coleções, não é?
Paralelamente, desenvolveu-se em mim um gosto pela pintura. A minha coleção de pintura tem uma história mais sustentada, porque eu estava habituado a ver quadros de pintores contemporâneos portugueses em casa dos meus avós e quando os meus avós morreram acabei por ficar com eles.
Herdou.
Malhoas, Veloso Salgado, Falcão Trigoso, por aí fora. Ao mesmo tempo, houve uma altura em que vivi em Paris, e comecei a ter contactos com os pintores portugueses de Paris, nomeadamente com o Eduardo Luiz, de quem me tornei amigo. Fui ficando com uma série de coisas dele, algumas que comprava a prestações, porque não tinha dinheiro para comprar aquilo à cabeça, e outras que ele me ofereceu. Ele era um perfeccionista. Se a ponta de um lenço, por exemplo, saía da tela e passava para a moldura ele dizia que aquilo já não prestava para nada. E um dia chego ao ateliê dele e vejo-o com uma tesoura na mão ir direito a um quadro para o cortar. Era uma pintura de um barquinho de papel, um compasso, um lápis, uma régua… uma trapalhada. Então tinha-se esborratado – estou a falar em termos leigos – uma das figuras, ele irritou-se com aquilo e foi direito à tela com uma tesoura. ‘Está horrível, vou destruir isto tudo’. Eu parei-o e disse: ‘Não faças isso. Deixa-me salvar pelo menos o barco de papel’. Ele cortou aquilo à volta e ofereceu-me o barco de papel. Ainda hoje o tenho lá em casa.
Para um colecionador é muito difícil separar-se das coisas?
Sou um colecionador sem muito dinheiro, então tinha de fazer trocas. Um dia vi um quadro em relação ao qual fiquei de cabeça perdida. Era um Josefa d’Óbidos. Olhei para aquilo e disse: ‘Quero ficar com esse quadro’. Nestas coisas sou um bocado obcecado, portanto fiquei a pensar como é que ia dar a volta àquilo. Fui à Nasoni, a galeria que tinha o quadro, e propus-lhes um negócio. ‘Eu não tenho dinheiro para isto, de maneira que pago uma parte em dinheiro e para pagar o resto dou-vos um outro quadro que tenho lá em casa. E chegámos a um acordo. Dei um Eduardo Luiz – aquele de que eu gostava menos, como é óbvio – e dei mais uns dinheiros e fiquei com o Josefa, que tenho na minha casa de jantar. Uma transação parecida com essa foi feita com um Columbano. Fui a uma galeria e vi um Columbano pequenino, que era um bebedor de vinho já bastante ‘encarniçado’, com o copo na mão. Olhei para aquilo e gostei. Mas pediram-me uma fortuna. Lá lhes disse: ‘Não tenho dinheiro para comprar isto, mas talvez arranje uma ou outra aguarela do Roque Gameiro’, que também tinha herdado dos meus avós. Peguei num ou dois Roque Gameiros dos que gostava menos, levei, dei mais uns dinheiros – não foram tão poucos quanto isso – e lá está o Columbano. Na Fundação [Oriente] produzimos vinho e eu dei a imagem do Columbano, que é um borracho, para ser um rótulo de um vinho extra que a gente vai agora produzir. Já sabe, quando vir o rótulo do Columbano compre, porque o vinho é bom [risos].
Fotografia de Miguel Silva
Dr. Vasco Santos, para o colecionador, os objetos que coleciona são quase como brinquedos. Esta pulsão para colecionar tem a ver com a infância?
Pode ter. Não há uma teoria psicanalítica do colecionismo, há questões individuais. Mas é evidente que, em pequeno, o bebé descobre que não domina o real. A mãe ausenta-se, ele dorme sozinho, e então vai arranjar um objeto que possa dominar. A gente em psicanálise chama a isso o controlo omnipotente da realidade que o bebé começa a fazer. Isso permite controlar angústias primitivas. Numa certa leitura, poderíamos dizer que, ao longo da vida, vamos tendo objetos destes. Um clássico é o automóvel.
CM: Isso é outra coleção que eu tenho, a de automóveis.
VS: Nós podemos ir substituindo estes objetos, e poderíamos dizer que a coleção é uma maneira de controlar o real, já que eu não consigo controlar o mundo. Faço-me entender?
É como um mundo em miniatura de que eu posso pôr e dispor?
Exatamente. O que é interessante é que o ser humano coleciona desde que tem consciência. Isso é interessante, porque se pode colecionar tudo. Folhas, borboletas…
Há até quem colecione anzóis!
Pode-se colecionar tudo. E, para usar uma gramática da minha área, as coleções geralmente projetam a personalidade. A personalidade de um sujeito não é apenas aquilo que ele é, ou parece ser, mas também as coisas que tem. Se eu em casa tiver este sofá, isto fala de mim – se tiver um sofá dos Móveis Brazão já é outra coisa… Tudo é projeção. Claro que em caso maciço de projeção estamos na psicose. Isso é o excesso de projeção. As coleções dizem muito sobre as pessoas. E podem ser sinais de prestígio, de poder. Veja o Abramovich, que deve ter umas coleções de arte…
CM: A gente cá também tem muito disso!
VS: Mas digamos que as coleções podem ser apenas uma reconstrução desse lugar seguro da infância. É curioso, tenho muitos pacientes que colecionam carrinhos de miniatura. E que ocupam muito tempo na pesquisa, na procura, na aquisição. Porquê? Porque lhes dá prazer e porque colecionar é voltar a um lugar nostálgico. O tio Patinhas, a moeda de que gosta mais é a primeira. Portanto há uma afetividade no colecionador. Nesta idade e com as minhas limitações económicas já quero ter pouca coisa. Mas por exemplo, um psicanalista coleciona sonhos. Colecionamos sonhos das pessoas, que é uma coisa fascinante.
Mas às vezes também obsessões…
Também. Mas aí entramos no domínio da patologia. Quando é que uma coleção é patológica? Quando ocupa um espaço exagerado e fora do princípio de realidade. Vimos no dr. Monjardino um grande princípio de realidade: trocava um quadro por outro. Poderia ser uma coisa compulsiva, endividava-se tremendamente para comprar a Josefa d’Óbidos. Aí entraríamos num domínio que passaria da coleção para a adição. E isso seria uma maneira já não de gozo, de jouissance, para usar uma expressão francesa, mas de preenchimento do vazio. A psicanálise nisso também tem uma leitura porreira, que é esta: a avidez não preenche o vazio; cria o vazio.
CM: Cria o vazio e aumenta o vazio.
Dr. Carlos Monjardino, nunca lhe aconteceu a coleção, em vez de ser uma fonte de prazer, tornar-se um motivo de angústia?
Eu sou colecionador em duas vertentes. A pessoal e a da Fundação. Os meios não são os mesmos e os objetivos não são os mesmos. Acabei por colecionar coisas de que gosto, não é por serem muito raras ou valiosas. Gosto mesmo, é uma coisa que me atrai. Por exemplo, sou muito próximo das cores. Na arte, as cores às vezes marcam-me mais do que o traço. Imagine que vou a uma exposição, vejo um quadro a que as pessoas se calhar não ligam nenhuma, de um senhor que ninguém sabe quem é e quero aquele quadro. Porquê? Porque as cores me impressionaram. Não ando como algumas pessoas – ‘agora queria comprar aquele nome que me falta’. Já para a Fundação é diferente, porque tem de tentar completar uma coleção – que nunca se completa. Por exemplo, de arte nanban. Se aparecer num leilão uma coisa nanban vou ao leilão comprar para a fundação, e a fundação, felizmente, tem mais uns dinheiros do que eu. Eu não podia comprar uma peça nanban, e além disso tenho outras prioridades. Mas há pessoas que fixam-se naquilo, vão à miséria e desgraçam-se completamente por causa desta mania de terem mais do que os outros colecionadores.
Aí a competição…
É terrível. A coleção que me deu mais trabalho e dá-me algumas preocupações é a coleção de automóveis antigos, mais que não seja pelo espaço que ocupam. E é preciso dar-lhes assistência. O quadro olha-se para ele, limpa-se com jeito e tem-se lá em casa. Agora, os automóveis… é uma dor de cabeça manter aquilo. Agora vou contar um episódio da minha vida. Para aí 70% do dinheiro que tenho no banco é da venda de carros que comprei há muitos, muitos anos. Além de gostar dos carros, do modelo, achei que aquilo ia ser raro e portanto tinha ali um valor seguro.
Era um investimento.
Era. Mas depois tinha muita dificuldade em ver-me livre deles. É preciso ser-se bastante frio – eu sou assim a jogar. Quando jogava póquer era para ganhar. Chega uma altura em que olho para o valor das coisas e tenho que ser realista. Se tenho um carro que me custou 40 contos e oferecem-me um milhão de euros por ele, é evidente que eu penso duas vezes. Portanto, 70 ou 80% do dinheiro que tenho vem dos lucros que fiz nos carros que vendi – e não foram muitos. Tenho para aí 13 ou 14, mas os dois ou três bons vendi-os e ganhei um disparate de dinheiro. Aquilo até é indecente, até me sinto mal, mas também me sentiria mal em manter aquele valor, sabendo que os meus filhos, um dia que eu feche o olho, não ligam nenhuma àquilo. Acham graça aos carros… mas iam vendê-los a um stand.
Qual foi a maior loucura que se lembra de ter cometido para obter uma peça de coleção?
Acho que foi a Josefa d’Óbidos e o Columbano. E houve também um quadro de um pintor chinês. Eu estava em Macau e deram-me um catálogo de uma exposição que ia ter lugar uma semana depois. Olhei para a capa do catálogo e achei a qualidade daquela pintura extraordinária. Andei à procura do pintor e lá o encontrei em Hong Kong e comprei aquilo. Ainda custou uma quantidade de dinheiro, para aí cinco ou seis mil euros, que na altura era bastante dinheiro. Tenho-o lá em casa: um quadro enorme, muito bonito, ainda por cima com umas maminhas muito bonitas à mostra [risos].
Fotografia de Miguel Silva
Às vezes tem de fazer sacrifícios para adquirir alguma peça?
Faço o possível para não ter de chegar a esse ponto.
Dr. Vasco Santos, colecionar é uma ‘doença’ que contagia sobretudo os homens?
Penso que não. Uma das colecionadoras de que eu mais gosto é a Peggy Guggenheim. O museu dela em Veneza é dos meus favoritos. No meu consultório não me aparecem grandes colecionadores. Aparecem mas mais ao nível do disco de vinil, do livro, da primeira edição de certas editoras de culto, como a &etc. Mas os meus pacientes não têm meios para este tipo de coleção.
CM: Isto tem que ver com o poder económico. Se as mulheres tivessem a mesma igualdade de oportunidades, em termos profissionais, se calhar eram tão colecionadoras como os homens são.
VS: Há uma coisa em que as mulheres são mais colecionadoras. E às vezes de uma maneira que me surpreende: as malas e os sapatos. Malas da Hermès e da Vuitton…
CM: Mas isso é para uso quase diário.
Ou para estarem lá guardados no armário.
CM: Sim, como a Imelda Marcos. [Conta-se que quando abandonou o palácio presidencial, a primeira-dama das Filipinas deixou para trás uma coleção de três mil pares de sapatos].
E as coleções são motivo de conflito entre os casais?
VS: O que eu conheço é mais ao nível dos livros ou dos vinis, às vezes algum comentário por ocuparem muito espaço. Mas em quadros pode-se facilmente gastar muito dinheiro, mesmo de pintura portuguesa. As idas ao ARCO [feira de arte] geralmente são vividas com alguma ansiedade.