Rodrigo Alvarez passou os últimos 14 anos fora do Brasil. «E do jeito que as coisas estão agora, não penso regressar tão cedo», acrescenta. Esteve como correspondente da TV Globo em Nova Iorque, Jerusalém e Berlim. Em janeiro de 2018 foi colocado em Paris, onde reside atualmente.
Aos 44 anos, o jornalista natural do Rio de Janeiro tem já um longo currículo. Entrevistou personalidades como Fidel Castro e Võ Nguyên Giáp, o general vietnamita que comandou o exército comunista contra as tropas americanas. Além disso, é o autor de livros de temas religiosos mais vendido no Brasil. Conversámos com ele em Lisboa, a propósito de Jesus – A biografia do homem que ensinou a Humanidade a amar e que dividiu a História em antes e depois, que acaba de ser publicado pela Porto Editora.
Antes de passarmos propriamente à história de Jesus, falemos das fontes. Além dos Evangelhos, que outros textos nos falam da vida de Jesus e que credibilidade podemos atribuir-lhes?
Nas últimas décadas foram feitas descobertas revolucionárias na área das religiões judaica e cristã. Principalmente, duas bibliotecas importantíssimas, uma delas em Qumram, em Israel, que é atribuída aos essénios, e uma outra no Egito, a biblioteca de Nag Hammadi, que tem aqueles que hoje são conhecidos como os evangelhos apócrifos. São textos que estiveram escondidos por muitos anos em jarros e foram encontrados por beduínos. Chegaram até nós por sorte porque, se dependesse de quem comandava a Igreja no começo…
Teriam sido destruídos?
Como foram os outros. Quanto à credibilidade que podemos atribuir a esses textos, a meu ver é a mesma que podemos atribuir aos Evangelhos. Não há nenhuma razão para que se considere os Evangelhos como superiores a esses documentos que são da mesma época, escritos na mesma língua, pelo mesmo tipo de pessoas – seguidores de Jesus Cristo, em grande parte dos casos. Quando comecei a fazer pesquisa para este livro, percebi que havia algo de libertador na leitura desses originais. Ao descobrir que existem outras fontes riquíssimas contando outros momentos desta história, e também que a veracidade desses documentos pode ser atestada, que não foram fabricados com qualquer intenção de produzir notícias sensacionalistas, você percebe que durante dois mil anos estivemos cerceados, fomos censurados no nosso conhecimento, e que, agora sim, podemos abrir horizontes e dizer que há muito mais sobre o cristianismo e o judaísmo do que a gente imaginava. De há algumas décadas para cá, vivemos um momento de uma nova compreensão do que foi a presença de Jesus Cristo na Terra.
Dado o facto de esses textos não terem passado pelo ‘crivo’ da Igreja, eles mostram-nos outras dimensões de Jesus que não estavam nos Evangelhos e que podem ser incómodas para a ‘versão oficial’?
A própria versão oficial, quando analisada minuciosamente, já não é tão cómoda assim. A análise pura e simples dos Evangelhos já gera desconforto. Há diversas incoerências, há contradições, há passagens difíceis de serem explicadas. Quando se chega a algo que não foi filtrado, que não foi censurado e alterado intencionalmente, surgem passagens muito incómodas para aqueles que defenderam uma certa limitação da realidade. E a mais incómoda, que é a presença de Maria Madalena ao lado de Jesus. É difícil hoje negar que ela tenha sido uma apóstola de Jesus.
Além de apóstola, há quem diga que pode ter sido sua amante. Das leituras que fez, a que conclusão pôde chegar?
Sobre Jesus, a cada década que passa há uma nova onda de sensacionalismos. Nos anos 1960 falava-se da inexistência de Jesus [como figura histórica]. A mais recente é essa possibilidade de Maria Madalena ter sido amante, mulher ou mesmo a mãe de filhos de Jesus. O que temos de prova sobre isso? Nada. Há uns anos investigadores encontraram túmulos em Talpiot, uma parte hoje residencial de Jerusalém, com nomes que pareciam pertencer à família de Jesus. E a partir daí afirmou-se que Jesus tinha filhos. É impossível afirmar isso. A única coisa que há de concreto são esses documentos originais de que falei. E aí encontramos afirmações divergentes, também. Maria Madalena seria uma discípula, uma apóstola, refere-se a Jesus como ‘mestre’, ele refere-se a ela como ‘irmã’, tal como se referia aos outros apóstolos como ‘irmãos’. Mas há algumas menções que sugerem um relacionamento mais íntimo. São essas que geram as dúvidas. Por exemplo, a afirmação de que Maria Madalena beijava Jesus na boca com alguma frequência, e que isso gerava ciúmes nos apóstolos. Esse é o indício mais forte que temos de um possível relacionamento amoroso. Mas, como a gente sabe, entre os homens o costume de beijar era muito comum.
Mas não na boca…
No rosto. A meu ver não é possível chegar a uma conclusão definitiva, porque há textos que divergem, que mostram uma relação de mestre e seguidora.
O que vem nesses textos entra muitas vezes em contradição com os Evangelhos?
Diria que eles mostram mais coincidências com os Evangelhos do que visões alternativas. Os gnósticos – que eram místicos e se inspiravam em religiões da Pérsia – tinham uma perceção do que era o espírito diferente da dos judeus. Acreditavam na reincarnação, acreditavam que Jesus seria capaz de aparecer agora num corpo e amanhã noutro corpo. Mas se você estuda esses textos e os coloca em paralelo com os Evangelhos, começa a achar que os evangelistas também tiveram essa visão. Nos Evangelhos também Jesus aparece no corpo de um jardineiro. E de repente você começa a ler os Evangelhos como se Jesus tivesse a possibilidade de encarnar como espírito em vários corpos diferentes. E aí vem a pergunta dura para os cristãos: Jesus ressuscitou em carne e osso ou ressuscitou em espírito? E a pergunta mais dura ainda: Jesus ressuscitou mesmo ou foi uma visão dos seus apóstolos e seguidores? Em todos estes textos – e aí os evangelhos coincidem com os apócrifos – Jesus aparece de formas diferentes.
Aliás é muito intrigante como aparece aos apóstolos e eles ao início nem o reconhecem.
Ele entra na sala onde estão sem que as portas sejam abertas. A primeira impressão que se tem, numa leitura mais ‘científica’ do Evangelho, é que foi um espírito que entrou naquela sala, ou que Jesus tinha a capacidade de atravessar paredes, o que nunca é dito nos Evangelhos. Mas também há diversas discordâncias entre os textos apócrifos e os Evangelhos. Por exemplo, Maria Madalena é tratada como prostituta ao longo da História, ignorada como desimportante, e extremamente importante na visão dos evangelhos apócrifos.
Há pouco falou numa ‘pergunta dura para os cristãos’. O Rodrigo não é cristão?
Eu sou batizado, tenho a primeira comunhão, estudei em colégio católico e universidade católica. E nesses meios aprendi cedo que queria descobrir exatamente o que estavam me dizendo. No Colégio Santo Agostinho, no Rio de Janeiro – um colégio muito rigoroso –, eu me encantava com as histórias que os padres me contavam, especialmente com os Evangelhos. Mas sempre me perguntava até onde deveria acreditar. Com o tempo comecei a pesquisar e fui viver em Jerusalém, onde tive oportunidade de visitar os lugares e de morar muito perto de onde tudo aconteceu e consigo hoje ter uma visão muito diferente daquela que me ensinaram.
Mais distanciada?
Sou cristão, católico, culturalmente sempre serei. Mas não sou um seguidor da religião.
A sua fé foi afetada pelo que descobriu?
O estudo, a pesquisa séria, a leitura de investigações científicas e arqueológicas levam-me a ver com clareza que a história de Jesus Cristo foi muito alterada ao longo de todos estes anos. E aquilo que nos chegou não é crível a ponto de ser algo em que a gente possa acreditar sem ver, como nos sugere a ideia de fé. Penso em Jesus Cristo muito mais por ter mudado a história da humanidade, por ter trazido para o mundo inteiro a ideia judaica, mas que não era muito difundida, do amor ao próximo, a ideia de que não é através de guerras que se vai obter aquilo de que se precisa. Toda essa visão filosófica para mim é muito mais importante hoje do que qualquer visão religiosa.
Cristo tem essa mensagem de paz mas também tem momentos de grande dureza. Lembramo-nos por exemplo do episódio da expulsão dos vendilhões do templo. Jesus tinha esses dois lados – um mais pacífico, outro mais violento?
Como revolucionário isso tinha de acontecer. A história de Jesus começa como alguém que questiona o statu quo. Se ele vai atrás de João Batista, isso é claramente um sinal de que ele está insatisfeito com o que se passa em Jerusalém. Os essénios viviam à beira do mar Morto a poucos quilómetros do rio Jordão. Fugiram de Jerusalém porque queriam afastar-se da corrupção. Achavam que aqueles sacerdotes de Jerusalém não representavam o judaísmo em que eles acreditavam. Ao ser batizado por João Batista, é como se Jesus dissesse: ‘Aqui está nascendo um revolucionário’. E com os poderes daquele batismo, que era também um banho de purificação, Jesus começa a pregar, justamente contra o statu quo. Então penso que é natural que em diversos momentos – e não só naqueles que aparecem relatados nos Evangelhos – ele tivesse atos violentos. Quando os soldados do sumo sacerdote chegam para prender Jesus aos pés do Monte das Oliveiras, um pouco antes de eles chegarem, pergunta: ‘Vocês têm armas? Peguem nas vossas capas e troquem-nas por armas’. Ele não pensava entregar-se sem resistência. E houve uma luta. E há um episódio em que Pedro, que anda sempre com uma arma, corta a orelha de um soldado. Não dá para pensar nesse mero pacifismo.
Um dos aspetos que o seu livro toca é a relação de Jesus com a família. Ele diz, por exemplo: ‘Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim’ ou ‘Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe’. Podemos deduzir que Jesus não amava assim tanto a sua família ou tinha, pelo menos, uma relação desprendida com os seus familiares de sangue?
Seria muito difícil responder a essa pergunta porque essa parece ser uma das incoerências dos Evangelhos. Mas depois de termos acesso ao manual com as regras da comunidade essénia – e se insisto nos essénios é porque é impossível dissociá-los dos princípios do cristianismo, há um elo dos essénios para João Batista, de João Batista para Jesus, e de Jesus para os primeiros cristãos – descobrimos que entre os essénios as mulheres não eram bem-vindas. Para se juntar a essa comunidade um religioso precisava de abrir mão de tudo o que tinha, doar os seus bens e deixar a família para trás. A primeira decisão praticamente da Igreja é o celibato. Aqueles que serão os religiosos não podem ter família. Não podem casar. As mulheres então não eram bem-vistas, eram consideradas traiçoeiras, e aquele que tivesse bens tinha de os doar à comunidade. Daí vem muito da filosofia inicial de Jesus.
Jesus, segundo a Bíblia nos diz, tem uma dupla natureza, terrena e divina.
Posso corrigi-lo? A Bíblia não o diz, são os primeiros cristãos que dizem isso. Isso já é uma interpretação, que foi inclusive objeto de uma discórdia muito grande entre os primeiros cristãos. Se havia uma dupla natureza, se uma natureza única, se elas eram concomitantes.
De qualquer modo, enquanto humano é natural assumirmos que tinha falhas. Há muitos indícios das fraquezas de Jesus como homem?
Diria que onde há mais referências às fraquezas do ser humano Jesus é nos Evangelhos. Mas quando vai aos textos de Nag Hammadi, os evangelhos apócrifos e outros, você encontra esse Jesus que tem um discurso agressivo, às vezes impaciente. Uma das questões que me propus quando escrevi este livro foi tirar aquele hermetismo do Evangelho para enxergar cada momento com clareza. Porque ao longo do tempo as pessoas começaram a ter a impressão de que cada frase dos Evangelhos foi escrita por Deus. Esquecem-se de que houve autores – e nem se chamavam Lucas, Mateus, Marcos e João – que escreveram segundo o estilo literário da época. Preocupei-me muito em abrir o olhar do leitor para que ele pudesse ver que em cada momento do Evangelho há muito mais do que a gente enxerga quando olha com o olhar viciado que nos foi ensinado ao longo de dois mil anos. Há muitas frases de Jesus que são de uma beleza filosófica enorme mas que de tão repetidas perdem a força. Há que ler aquilo como feitos de seres humanos. E temos de ter o conhecimento do judaísmo da época. Jesus nasceu e morreu judeu. Não podemos olhar para aquela história sem entender que é uma história judaica. Quando temos isso em consideração, é como se tirassem uma nuvem da frente dos nossos olhos.
Gostava que me falasse um pouco dos anos que viveu em Jerusalém. Ao ver e pisar aquelas pedras antigas sentiu-se mais próximo da presença de Jesus?
É incrível como me senti próximo de Jesus caminhando pelos desertos da Judeia, pelas pedras de Jerusalém ou no Monte das Oliveiras. Há muitos lugares onde temos a certeza de que Jesus esteve lá. Há outros que não. Por exemplo, a Basílica do Santo Sepulcro – não há certeza de que Jesus foi crucificado ali. Mas há tanta energia, tanta carga histórica, que mesmo os lugares onde eu penso que provavelmente Jesus não esteve têm um simbolismo muito forte. Mas o mais importante de ter vivido em Jerusalém por tanto tempo foi o facto de ter respirado aquele ar, atravessado grande parte do deserto que vai da Galileia até Jerusalém, tocar naquelas pedras – isso ajuda a entender o que aquele homem pode ter sentido. O que há ali hoje são vilarejos apenas maiores do que havia antes, e muitas áreas vazias, desertas, exatamente como antes. O mar da Galileia continua lá, o rio Jordão continua lá, o mar Morto também, o Templo de Jerusalém não está mais, mas temos a parede de Herodes, onde certamente Jesus esteve. É tudo muito forte – forte porque fala da nossa história e de tudo o que nos constitui. Sejamos religiosos ou não, é do cristianismo que nós viemos.
Houve algum lugar mais marcante?
Há na Via Sacra pedras que têm mais idade do que a crucificação de Jesus e ficam exatamente no lugar onde se supõe que ele tenha passado. É um lugar que me tocou muito porque você pisa exatamente na mesma pedra onde talvez Jesus tenha até caído durante a caminhada para a cruz. E todos aqueles desertos. Quando você cruza com pastores e ovelhas, percebe que pouca coisa mudou e que está no mesmo lugar por onde Jesus caminhou.
Além dessas coisas antigas, Jerusalém não tem uma vida moderna?
Tem um mercado onde há alguma movimentação noturna, mas ainda há ali uma concentração muito grande de religiosos ultraortodoxos. Às vezes, consoante os bairros, dá a impressão de que estamos vivendo no séc. xix. E há todo o problema do conflito. Belém, a cidade onde se supõe que Jesus nasceu, é toda murada, parece uma prisão. O que há de moderno em Jerusalém é o conflito.
Passou por muitos incómodos por causa do conflito?
O tempo todo.
É opressivo viver lá?
Como não somos palestinos nem judeus, não somos afetados diretamente. Mas é impossível não se sensibilizar com o sofrimento das outras pessoas. A toda a hora somos lembrados de que existe um povo muito armado e um povo que não tem nenhum exército, e que um domina o outro. Há esse estado policial que vigia tudo e todos e há situações em que o conflito torna-se desumano. Vou-lhe dar um exemplo. Em Hebron tem ruas em que os palestinos são proibidos de caminhar. O único regime recente que me lembra isso é o apartheid na África do Sul, onde uma pessoa, pela sua origem, era tratada de forma diferente, tinha direitos diferentes da outra. Os judeus podem tudo, os palestinos têm limites impostos pelos soldados. Não é o que a gente espera de lugar nenhum do mundo, não é aceitável, dá um desgosto muito grande vivenciar essas coisas. Eu voltei de lá agora, passei 12 dias em Jerusalém, e saí pensando que talvez não devesse nunca mais voltar.
Sentiu revolta?
O nível a que chegou o conflito israelo-palestino e o nível a que chegou o desprezo dos Estados Unidos, agora com o apoio do Presidente brasileiro, está levando à dizimação de um povo, a uma humilhação constante e a um sofrimento que ninguém, nem a ONU, tem poder para desfazer.
Se têm áreas desertas, como ainda há pouco me disse, porque estão os israelitas a ocupar outras?
Porque não querem a presença do outro povo ali. Netanyahu disse numa declaração recente que Israel não pode viver em segurança se houver um Estado árabe ali tão próximo. Não é uma questão de falta de terra, é uma questão de intolerância, de não aceitar outro povo.
Viu o filme de Mel Gibson, A Paixão?
Vi e preferia não ter visto.
Ficou impressionado, foi?
Acho que é um sensacionalismo violento, desnecessário. A única qualidade do filme foi ter reconstituído diálogos em aramaico de uma maneira interessante. Mas aquela exploração da violência que Jesus sofreu… é de mau gosto.
Não é fiel ao que se passou?
Não. Não há relatos de que as crucificações fossem antecedidas de tamanha brutalidade. A crucificação por si só já era uma brutalidade. E há outras coisa de que as pessoas às vezes se esquecem: a crucificação de Jesus não foi um facto político importante na época. Não havia um grande interesse naquele homem. O maior historiador da época, Flávio Josefo, a única referência que faz a Jesus é através do seu irmão, Tiago, que foi apedrejado muito mais tarde e aí sim, ele faz uma referência a Jesus. Imaginar que tudo parou para aquela crucificação, que Jerusalém parou para ver a Via Sacra, isso não aconteceu. Havia mais dois crucificados ao lado de Jesus no mesmo dia, muitos outros naquela semana e centenas naquele mês.
Era uma coisa comum?
Corriqueira. Essa supervalorização do momento da morte de Jesus é posterior. Foi importante para os cristãos, mas não para os judeus da época dele.