O Estádio Nacional é o último baluarte do futebol romântico em Portugal. Uma obra com 75 anos de existência e milhares de histórias vivenciadas no Vale do Jamor. Da glória à tragédia, da euforia à depressão, da magia ao horror, de tudo se passou naquele coliseu de pedra rugosa desde a sua inauguração em 1944. Uma espécie de memória viva daquilo que fomos e somos enquanto nação, que fomos e somos enquanto povo que (supostamente, já nem sei…) ama o futebol. Curiosamente, uma obra de afirmação do regime, de legitimação do Estado Novo e de um homem que nada percebia nem queria perceber sobre futebol. Zero. O desporto que hoje domina o mundo ultrapassava os limites da sua compreensão, embora essa sua inaptidão não o impedisse de reconhecer a força e a importância do jogo enquanto ferramenta de propaganda política, de controlo colonial e de manipulação de massas. Inspirado no antigo Estádio Olímpico de Berlim, o nosso Estádio Nacional ajuda a perpetuar a lenda de que Salazar era um admirador da estética e da ordem germânica, embora a principal razão para ter sido este o projeto aprovado tenha muito mais a ver com estratégias de poupança do ditador do que com qualquer outra coisa. Os projetos entre os quais Duarte Pacheco se preparava para escolher eram construções de raiz, edificadas em terreno plano, mas quando surgiu a ideia de escavar o estádio na rocha, inseri-lo na paisagem, ao ver os custos muito mais reduzidos Salazar nem hesitou: escave-se então! E não se fala mais nisso!
Para a história a preto e branco – e diretamente para o imaginário de quem não sonha que mundo era o mundo antes do nosso 25 de Abril – ficará sempre a crise estudantil de 1969 e a forma como os estudantes clamaram por liberdade. Por direitos. Por democracia. Por cultura. Sinais de um tempo em que as vozes eram mesmo vozes. E eram gritadas! E ouvidas! Não se limitavam a patéticos e inenarráveis posts nas redes sociais. Já a cores, 27 anos mais tarde, o mais inimaginável e macabro episódio – um homicídio presenciado ao vivo por milhares e transmitido na televisão para milhões, tingindo de vermelho-sangue as alvas bancadas do gigante branco. E cobrindo para sempre de vergonha quem permitiu que o derby de 1996 se realizasse naquelas trágicas circunstâncias. Antes e depois, sete décadas e meia de golos, de lágrimas e de emoções fortes. De subidas à Tribuna Presidencial que tanto foram marcadas por aplausos como por cobardes insultos, cobardes ofensas, cobardes agressões e cobardes cobardes, daqueles tão cobardes que fazem do escarro a sua única arma de arremesso. A nata da nata que, amiúde, as derrotas têm o dom de trazer ao de cima nos nossos estádios. Nos acessos pela Praça de Maratona, de tudo um pouco, desde cargas policiais sobre os adeptos a cargas de adeptos sobre os jornalistas. Hoje a caça, amanhã o caçador. É o país que temos. O futebol que temos. E o Jamor que vamos tendo.
Mas o Jamor é também o palco de todos os sonhos de todos os clubes de todos os escalões. É o objetivo por todos sonhado e ambicionado, o tapete onde todos se veem um dia a jogar. É o destino de romarias imensas de adeptos provenientes de toda a parte, é o cenário de repastos bem regados e salutares convívios entre tantas raças, credos, idades e orientações, todos debaixo desse imenso manto que é a tribo do futebol. O Jamor é, no espaço de horas, a festa do futebol no seu estado mais puro e nostálgico. Do plano quase bucólico nas primeiras horas da manhã, ao patamar de saudável loucura que por ali se encontra ao final da tarde e após todas as chuvas coloridas de pirotecnia e confetti. É o exagero do exagero, a hipérbole das emoções e o declínio da modernidade. É acreditar que o jogo ainda se sobrepõe ao negócio e que o povo ainda é mais forte do que o poder corporativo. É a prova-rainha do desporto-rei, o estalo plantado no rosto da sobranceria do futebol noturno em estádios de luxo, o pó acumulado nas cadeiras que são limpas apenas e só para aquele momento.
O sonho. Sempre o sonho. Por favor não nos matem o sonho… Há 11 anos que a final da Taça não é um clássico entre grandes do futebol português e há 23 anos que não é um derby de Lisboa, ou seja, desde aquela fatídica tarde em que um adepto do Sporting foi assassinado. Tem tido sorte a FPF. Tem tido sorte o país. Porque muito mudou neste quase quarto de século e muito mudou nesta última década. Os espíritos estão perturbados entre os vermelhos e os azuis, entre os verdes e os vermelhos, entre os azuis e os verdes. Os tempos estão perigosos. Os ânimos estão exaltados. Receita explosiva para quem tem de montar uma megaoperação de segurança num estádio com 75 anos e cujos argumentos já não convencem a FIFA nem a UEFA a permitir que ali se realizem jogos internacionais. É esse o maior risco da final deste ano – que nos matem o sonho e inviabilizem para sempre que a final da Taça se mantenha naquela floresta de problemas chamada Jamor, mas que os portugueses amam com todas as forças com que (supostamente, já nem sei…) amam também o futebol. «Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso». Se Fernando Pessoa – que nada percebia de futebol mas tudo sabia da matéria de que são feitos os sonhos – já há 100 anos dominava a temática com mestria, que saibam os adeptos de hoje beber das suas palavras e interiorizar os seus ensinamentos. Por favor não nos matem o sonho… «Eu fundi numa cor una de felicidade a beleza do sonho e a realidade da vida. Por mais que possuamos um sonho nunca se possui um sonho tanto como se possui o lenço que se tem na algibeira, ou, se quisermos, como se possui a nossa própria carne». O sonho é vosso. É nosso. Mas só até ao limite da possibilidade de se possuir um sonho. Não é vosso para matar. É vosso, apenas e só, pelo direito de o sonhar. Por favor não nos matem o sonho…