‘Custa muito ver o SNS de costas viradas para os privados’

João Paço despediu-se esta semana da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, com uma lição de jubilação com casa cheia. Cinco décadas de professor e médico foram o mote da aula e também desta conversa com o otorrino maratonista, diretor clínico do hospital CUF Infante Santo.

Nasceu aqui no hospital CUF da Infante Santo, que anos mais tarde viria a tornar-se a sua casa profissional. Foi premonitório? 

Foi uma coincidência. E quem me fez nascer foi o D. Pedro da Cunha, que na altura era diretor clínico. O hospital começa em 1945 e eu nasço em 1948. 

Que imagem guarda dessa Lisboa dos anos 50 em que cresceu?

Fiz o liceu em Oeiras, um liceu muito arejado, com professores extraordinários. Morava em Belém e todos os dias fazia a viagem para Oeiras de comboio. Andar de comboio para cá e para lá dava-nos uma grande liberdade. Claro que os pais da altura não são os pais de hoje, tínhamos de chegar a horas. Depois sempre quis ir para Medicina e veio o estudo.

Foi uma vocação precoce?

Não sei dizer. Havia sempre aquelas pessoas que tinham dúvidas, se iam para Económicas, para isto, para aquilo. Desde o princípio quis ir para Medicina, não me pergunte porquê.

Tinha médicos na família?

Tinha um primo. O meu pai era economista, a minha mãe era de História. E havia este primo do meu pai que era como que médico de família em Mafra, ia a casa das pessoas. Houve ali uma vocação muito cedo. Rapidamente fui para a alínea f, entrei na faculdade. Tive 17 a Anatomia e por ter essa nota fui convidado para ser monitor. Começo logo no segundo ano a dar aulas. Sou convidado para ajudar nos doutoramentos em Otorrino e começa tudo assim. Desde muito novo que comecei a envolver-me, a ajudar em dissecções para além das aulas.

Era o certinho?

Era bastante certinho. Uma pessoa lá tinha as suas troinices. Entrámos na faculdade em 1969, um ano muito político.

Disse uma vez que nesses seis anos na faculdade, até 1975, aconteceu tudo.

Tudo mesmo. Fui fazer a Tomada da Bastilha a Coimbra, um movimento político de contestação dos estudantes, mas no meio disto chegava-se a dezembro e tínhamos de começar a estudar.  

Nunca pensou em ter um maior envolvimento político?

Nunca foi muito a minha vocação. Gostava de estudar, sabia que tinha de andar para a frente. Claro que estava atento às coisas, os meus pais liam bastante. Não tínhamos televisão em casa, o meu pai foi muito contra essa história, portanto obrigatoriamente tinha de ler. Vivíamos as coisas intensamente, o hospital esteve várias vezes cercado pela PIDE. Lembro-me de uma vez partirem o vidro, fugimos todos por ali abaixo. Consegui escapar, corria muito.

Desde miúdo?

Fazia remo de competição na altura e tinha uma boa preparação física. Corri e não me apanharam, mas senti o cassetete a passar-me pelos cabelos. Havia um sentimento anti-regime, vivíamos muito à volta da associação académica, mas não posso dizer que tivesse um envolvimento político. Havia colegas que pertenciam ao PC. Não havia partidos de direita, havia o PC e à esquerda do PC, tudo muito radical. Depois também me envolvi desde cedo em investigação na faculdade. E gostava muito de desporto. Fiz basquete pela faculdade. Fomos campeões regionais duas ou três vezes. Comecei a fazer remo de competição aqui no Tejo, pelo Clube Naval de Lisboa, e fui campeão nacional em 1974. Gostei muito de fazer remo, é um desporto em que se vai numa equipa de quatro mas também isolado. 

Como na Medicina?

Exatamente, uma pessoa pensa muito consigo próprio. Fui campeão nacional mas depois não consegui manter, não tinha tempo para os treinos. Começo mais tarde a correr, precisamente por não poder fazer remo. Apanho aquela fase das corridas do Carlos Lopes, quando ele foi campeão de maratona. Começa a haver um grande movimento popular em torno da corrida, um grande entusiasmo. Começo a fazer a corrida do Diário de Notícias, 10km, depois outra de 15km e de repente atrevo-me a fazer uma meia maratona. 

Isso já com 30, 40 anos?

Sim, já estava aqui na CUF quando faço a primeira maratona.

Tem quantas no currículo?

Dezasseis completas, a última há sete, oito anos, mas já foi a andar. Ganhei numa maratona em Londres uma grande lesão numa anca. Não quis desistir, devia ter desistido ao quilómetro 30. Fui estúpido. A maratona é uma corrida muito psíquica. Tinha de chegar ao fim. 

No auge das corridas, cria o clube do stress. Eram mesmo um clube?

Foi logo nessa corrida no Diário de Notícias.

Tem muitas fotografias no seu gabinete.

Sim, com o Arons de Carvalho, o José Pedro Castanheira do Expresso. Tínhamos de nos inscrever e era mais barato inscrevermo-nos como equipa do que como individuais. Inventou-se o clube do stress e foram-se juntando amigos. Um dia decidimos ir fazer a maratona de Londres, já era a minha terceira. A primeira fiz sozinho, depois do doutoramento. Senti que precisava. Comprei uns livros de corrida, fiz uma certa abordagem científica à questão e fui lá, terminei, chorei.

De emoção?

Sim, por ter conseguido.

É o mistério da corrida?

Sim, é uma coisa que dói tanto, a gente chora no fim e começa logo a pensar na que vem a seguir. E começo a ver que muita gente corria para ajudar e resolvemos começar em Portugal a fazer corridas por beneficência, a recolher patrocínios e a dar o dinheiro a instituições.  Demos 23 carrinhas de apoio a deficientes.

Ainda se juntam aos domingos?

Sim, todos os domingos ali ao pé do Altis de Belém, uns para correr e outros para andar. Foi depois de fazermos essas ações que Jorge Sampaio me deu a comenda, em nome do grupo.

Um ano depois da distinção de Joe Berardo. Como viu a polémica? Também quis devolver o título?

Não estou muito bem dentro da história, mas acho uma tristeza. Não utilizo o título de comendador, foi uma coisa bonita que fizemos e é uma forma de retribuição a um grupo de que eu era presidente.  

A vida de médico é muito stressante?

As pessoas dizem isso. Talvez seja fatigante, stressante não diria.

Tem mais stress desde que é diretor clínico?

Sem dúvida. Como médico consigo antecipar as coisas. Dirigir um hospital deste tamanho, dirigir pessoas, dirigir colegas. Os médicos não são fáceis de dirigir. Não pode mandar, tem de entusiasmar e trazer as pessoas a reboque.

Foi difícil passar para esse registo?

Não foi fácil. Não era hipertenso e passei a ser (risos). Mas é um entusiasmo grande. Tenho uma equipa muito boa. E agora vamos ter um hospital novo, que é uma coisa altamente entusiasmante.

Jubila-se da universidade, mas ficará na CUF mais quanto tempo?

Temos a regra de poder ficar até aos 75 anos. Na faculdade é que passo a ser catedrático jubilado.

Custa ter o jubilado à frente?

Agora quando fiz os 70 anos tive de ir tratar da reforma. O papel que nos dão tem em cima em letras bem gordas: ‘cálculo de pensao da velhice’. Aí pensei: chegou a minha vez. Mas no dia seguinte começam as coisas, doentes, operações e vai-se vivendo. Os 70 anos de hoje não são os 70 anos de há uns anos mas, de qualquer maneira, chega sempre o momento de passar o testemunho. Tenho ali uma fotografia com os meus antecessores, o dr. Bentes e o dr. Girão, pessoas fantásticas, e vou ter de ter alguém a seguir a mim.

É facil para um médico saber quando parar?

Isso tem de ser. Se algum dia sentir que não estou com as condições ideais, páro. Há muita coisa para fazer no hospital sem ser dar consulta e operar. Mas o mais importante é ter a noção de que temos de deixar um legado. Tenho três doutorados na minha equipa, quase quatro. E mesmo na faculdade, faz parte sair, as coisas têm de ser renovadas, tem de vir sangue novo e ninguém é insubstituível. Ai de nós pensar que somos insubstituíveis, não somos.

É uma noção que vem com o tempo?

Sim, se bem que eu quando era jovem dizia que aos 65 ia para casa, passear, fazer cruzeiros. Depois quando cheguei aos 65 pensei ‘mais um bocadinho’.

Fazer cruzeiros ja não parece ter tanta graça?

Até tem. Acho que o importante nisto tudo é ter um bom grupo de amigos. Viver a vida sozinho é uma seca.

Preocupou-o sempre conciliar a medicina com a vida fora do trabalho?

Uma pessoa fica sempre um bocado presa no trabalho. Hoje tento fazer uma coisa que é sempre que chego a casa, 21h15, 21h20, desligo em absoluto. E ao fim de semana desligo em absoluto. Houve muitos anos seguidos que trabalhava ao sábado, domingo, agora não. Tenho uma casa no norte, na Granja, ao pé de Espinho. Dou umas grandes caminhadas nos passadiços à beira mar, penso nas coisas, telefono aos meus assistentes, aos meus doutorados.

Nota diferenças nos jovens médicos de hoje?

Não sei, acho que nós éramos mais ambiciosos, trabalhávamos full time desde os 20 anos. Acho que dos 20 aos 30 trabalhei todos os fins de semana.

Para ganhar dinheiro?

Não, muitas vezes eram coisas de investigação. Só comecei a fazer consultório quando vim para aqui, até aí foi sempre no hospital e a estudar. Faço o exame de saída do internato de especialidade, um ano depois o exame da Ordem, depois o exame de provimento para Santa Maria e depois o exame para chefe de serviço. Seguiu-se o doutoramento, tudo encadeado. Não tinha tempo para mais nada. Tinha sempre a ambição de, no concurso seguinte, ficar no primeiro lugar.

Não ser filho de médico dificultava o trajeto?

Não sei, nem pensava nisso, só pensava que tinha de ficar em primeiro lugar. Como os meus pais morreram muito cedo, pensava que era uma forma de eles verem onde é que eu estava.

Perdeu os pais com que idade?

A minha mãe morreu quando eu tinha 25 anos, tinha ela quarentas, com uma insuficiência renal aguda. O meu pai no mesmo dia faz um AVC, de choque com tudo aquilo. Fiquei eu a mandar na casa, com 25 anos. Foi uma escola de vida. O meu pai viveu mais uns anos mas já não me viu doutorar.

Essa perda influenciou-o na forma como exerceu Medicina?

Em tudo, uma pessoa tem de enfrentar, não sou de me deitar a chorar. Temos de andar para a frente, valorizar o que temos, os amigos.

Santa Maria foi a sua primeira casa.

O início de tudo, a minha escola.

Estava-se no início do SNS, final dos anos 70.

Começa precisamente nessa altura. Antes faço Saúde Pública três meses em Portel e depois faço o Serviço Médico à Periferia em Lagos.

Foi uma grande mudança?

Sim, mas adorei estar em Lagos. Tinha uma equipa que tinha vindo de Benguela, contavam-nos o dia-a-dia de lá. Fazíamos grandes almoçaradas com as sardinhas que os traineiros nos traziam. Depois ia a umas aldeias ali à volta, Barão de S. João e Barão de S. Miguel, fazer consultas. Um dos consultórios tinha um buraco no teto.

Sentiam-se mesmo necessários?

Sim. Foi depois do Serviço Médico à Periferia que vieram os médicos de família. Naquela altura nós éramos 480 e cobrimos o país inteiro.

Olhando para trás, como recorda os primeiros tempos do SNS, faz agora 40 anos?

Acho que foi decisivo. Não penso tanto em Lisboa, mas naquelas terras todas… Tínhamos de estudar muito para não ter surpresas. Não havia telemóvel, não havia Google. Encontrávamos pessoas muito velhas, com muitos problemas de saúde, muito sofridas. Tinha a sorte de ter um cirurgião muito bom, o dr. Gata Gonçalves, que tinha trazido a equipa de Angola, comecei a ajudar muito na cirurgia, que era o que eu queria. Nunca pensei que chatice, que atraso de vida. Penso sempre que fantástico que foi, que sorte que tive. Foi um grande contributo para a minha formação como médico, do ponto de vista humanitário até. Posso fazer um livro sobre o Serviço Médico à Periferia.

Acha que sem essa experiência teriam sido médicos diferentes, mais arrogantes, mais elitistas?

Eu pelo menos sim, deu para bater com os pés no chão e ver como eram as coisas. Chegou-me a passar pela cabeça ficar lá. Mas depois já estava a pensar no doutoramento, numa carreira e acabei por vir.

Como era a vida em Santa Maria? Muitas quintas?

Como interno foi um tempo muito bom, trabalhei com professores fantásticos, aprendi a ser muito gratos aos meus mestres. Claro que depois num sítio destes tem de haver tricas, quintas, jogos de bastidores.

Há uns anos saiu um estudo em que dizia que o hospital era dominado pela maçonaria e pelo PS.

Penso que há um bocadinho de tudo por lá, não me vou esticar por aí, mas é como no país: uns com mais influência, outros com menos, uns ligados aqui, outros acolá. Eu nunca estive ligado a nada, fui fazendo os meus exames. Tive o privilégio de estar com o Ducla Soares, o Arsénio Cordeiro, com o Celestino da Costa, Pinto Correia.

Os grandes professores?

Sim, é uma sorte única. Um Pádua.

Fernando Pádua que subia a pé todos os andares do hospital, até ao nono andar.

Eu também, subia ao último piso de uma vez só e chegava à frente do elevador, encontrava-o muitas vezes.

A sua geração sentiu-se alguma vez sucessora desses ‘princípes da Medicina’ ou essa categoria de médicos já não existe?

São outras pessoas, outras alturas.

Mas o que é que tinham?

Bagagens teóricas brutais. São pessoas filtradas por muitos concursos, pessoas com uma grande sabedoria não só teórica mas humana. Eram personalidades que uma pessoa se sentia bem ao pé deles, em fazer parte daquele clube.

O que mudou?

Já estou fora do Santa Maria há 22 anos, mas penso que se chegasse naquela altura cá fora e perguntasse a uma pessoa qualquer da rua ‘diga-me lá três nomes da faculdade’, eram capazes de caras de dizer três nomes. Um Pádua, um Lobo Antunes. Hoje em dia as pessoas não sabem quem nós somos. Se perguntar quem é o professor de Cardiologia, não sabem.

Os médicos mostram-se menos, têm menos tempo?

Talvez, estão mais enredados nas suas coisas. De qualquer forma, há um trabalho. Agreguei-me na Nova, procurei fazer o que podia criar uma escola, participei em 10 ou 12 doutoramentos de otorrinos – devo ser o professor de Otorrino que mais doutorados deixa. Penso que há uma quebra no nível dos professores de Medicina nos últimos anos. E outra coisa: nas faculdades de Medicina neste momento há muitos professores que não são médicos, são biólogos, farmacêuticos, investigadores. As cadeiras básicas estão a ser invadidas por pessoas que não são médicos, o que não acontecia antigamente. 

Está a falar de que cadeiras?

As farmacalogias, biologias. Claro que pode olhar para mim e dizer ‘é um velho do Restelo’. Eu não quero chegar a umas estribeiras de um Lobo Antunes, tentei fazer o melhor que sei e deixo uma sucessão boa de doutorados, coisa que é muito rara na nossa terra.

Mas perde-se o quê com essa mudança no ensino? 

É fundamental ter contacto com o doente para ensinar medicina. 

Também com os momentos de alegria e tristeza da profissão?

Sim, momentos de grande vitória porque consegue fazer sobreviver uma pessoa, pô-la a ouvir e depois há momentos de grandes tristeza.

Teve-os?

Sim, fiz muita oncologia, tumores da laringe, casos complicados. Hoje em dia estou mais ligado a problemas não oncológicos.

Por que escolheu a Otorrinolaringologia?

Quando fui para Anatomia comecei a ajudar o professor Mário Andrea e achei piada. Tinha um misto de medicina, que é como ser um detetive,  e depois tem uma fase de cirurgia, que é quando não podemos resolver medicamente. A cirurgia de ouvido é muito bonita, são estruturas muito finas, não se pode tremer rigorosamente nada. E hoje somos centro de referência de implantes cocleares.

Pôs muita gente a ouvir?

Tenho mais de 150 implantes, nem todos correram muito bem, mas muita gente ficou a ouvir. Fomos o primeiro serviço com idoneidade formativa no privado, em otorrino. E fomos o primeiro serviço privado a ter uma regente de uma cadeira, até então estavam todos nos serviços públicos. Era um tabu.

Porquê?

Porque o público gosta de os ter. Com o tamanho que têm os privados, acho que temos cada vez mais de pensar em ter um Sistema Nacional de Saúde, SNS e privados. Têm de viver juntos, em entendimento.

Não vê riscos nesse cenário? Não terão prioridade os doentes com seguro?

Não faço distinção nem posso fazer. Acredito no SNS, mas o SNS mudou. Quando começámos não havia privados.

Mas havia consultório à tarde.

Sim, uma pessoa estava de manhã no SNS e à tarde no consultório. Sempre fui contra isso, nunca tive consultório. Em 1995 venho para a CUF a tempo inteiro.

Não foi opção para si ficar nos dois lados, como fazem muitos médicos?

Estive três ou quatro anos mas achei que aquilo não era vida, tinha de estar num sítio só. 

Quando se começava a estar nos dois lados percebia-se que os médicos rendiam menos no público?

Respondo assim: sempre quis ter o meu consultório no hospital, nunca quis ter o consultório numa avenida. Só o tempo que perdia a chegar de um sítio ao outro irritava-me. Quando me deram esta oportunidade, agarrei com as duas mãos. Gosto de desafios, a minha vida é de desafios constantes. Gostei daquele.

Mas precisava do privado por causa do vencimento?

Estive quase até aos 40 anos sem ter consultório e ia vivendo. Não estava obcecado com isso. Agora não vou negar que os proveitos aqui são muito melhores do que os proveitos lá. 

Um médico no privado ganha quanto mais?

É muito variável, mas os mais novos são capazes de ganhar o dobro. Os mais velhos ganham mais, o cirurgião é pago à peça. 

É impossível travar a saída de médicos para o privado sem aumentar os salários no Estado?

Acho que já deviam ter subido os salários no público há que tempos ou então indexar ao movimento. Tem de haver prémios de produtividade. Não pode ter duas pessoas no público, um que não faz nada e outro que trabalha que se farta, a ganhar o mesmo ao final do mês.  Isto não pode ser a União Soviética em que todos ganhavam o mesmo ao final do mês. O que é o meu sonho? É ter uma carreira médica no privado a exemplo da que temos no público. Temos pronta para sair, já foi à Ordem dos Médicos, para termos os mesmos graus de progressão. Isto permite que as pessoas sejam avaliadas periodicamente. Até porque antigamente, quando chegávamos aos hospitais privados, vínhamos todos formados, chefes de serviço. Hoje temos muitos jovens que entram com três quatro anos e não podem passar a vida só a ver doentes e a ganhar dinheiro, vão ter de se submeter a provas para subir de grau para evoluir.

Não avaliam os profissionais?

Avaliamos os coordenadores mas não há uma avaliação dos médicos todos. 

Mas também passa a tabelar de alguma forma os salários?

Sim, mas se houver um cirurgião fantástico que faz 300, 400 cirurgias por ano, podemos aumentar o ordenado dessa pessoa. Além da questão das carreiras, custa muito ver o SNS de costa viradas para os privados, não concebo isso. Uma pessoa tem um acidente na rua, apanha uma ambulância no INEM e tem de ir para o público.

Hoje estão assim tão de costas viradas? Existem convénios na cirurgia por exemplo…

Sim, mas luto por um Sistema Nacional de Saúde, que englobe uma componente pública que tem de existir porque é altamente diferenciada em algumas áreas que são carérrimas e o privado não tem essa capacidade, mas também uma componente privada, que atende muitas pessoas. Há muitas que nunca foram a um hospital público, isto também tem de ser reconhecido. 

Como tem visto o debate em torno da revisão de Lei de Bases da Saúde, a discussão em torno do fim das PPP e a própria ideia do Governo de que o crescimento do privado teve efeitos negativos no SNS?

Custa-me um bocado acabarem com coisas que são boas. Custou-me muito acabarem com Braga, um excelente hospital, com níveis elevados de performance.

Com investimento, seria possível internalizar toda a resposta do SNS no setor publico?

Acho que é impossível, acho que não há dinheiro para isso. Ignorar o setor privado em absoluto é não estar em linha com a realidade. Só quem não vive num hospital público é que não sabe o estado em que as coisas estão. Não há dinheiro para o SNS ficar exclusivamente público, é irreal.

Como é que há dinheiro para construir tantos novos hospitais privados? Tem de haver lucro.

Dá algum dinheiro seguramente. As grandes empresas resolvem investir na saúde como investem noutro negócio. Temos grandes grupos, o grupo Mello que é português, um grupo chinês que é o do Hospital da Luz e um grupo americano que é dos Lusíadas e ainda o grupo Trofa. Estes grupos têm de ter forçosamente lucros.

Não tem sido o Estado, quer por via do SNS quer ao longo dos anos pela ADSE, a contribuir para esses lucros?

Dizer que é o Estado que nos alimenta é uma falsa questão. Eu quase não opero doentes do Estado, a maior parte são de seguros de saúde, o mesmo com exames. São pessoas que não vão ao SNS. Acho que devemos viver com o SNS em irmandade e não de costas voltadas. Somos um país pequeno e não temos dinheiro para não haver sinergias.

Nestes 50 anos de medicina, qual foi a evolução mais positiva?

As pessoas têm hoje muito mais acesso, no público ou no privado. Há muito mais oferta, há muito mais especialistas. Tecnicamente a evolução é brutal. Hoje em dia tenho um robô a operar com resultados cirúrgicos fabulosos.

Imaginava-o em 1969?

Nem de perto nem de longe. A qualidade de imagem, o pormenor, a profundidade do campo cirúrgico. Comecei a operar com um microscópio de lâmpada de filamento, com uma luz amarela. Hoje tenho um microscópio de luz xénon. Os médicos mais novos nem sabem o luxo que têm. As ressonâncias magnéticas, a tecnologia que permite cortar o corpo em fatias e vermos tudo por dentro. Um doente que chega com um enfarte e dantes ficava uma semana, era operado ao coração, hoje em dia entra, faz uma angiografia, põe um stent e no dia seguinte está a ir embora. Cinco dias depois está a trabalhar. Tumores em que se morria e hoje consegue-se sobreviver. Claro que tudo isto custa fortunas. E é perante estas fortunas que eu digo: partilhem os gastos.

E o que é que o deixa mais apreensivo?

As pessoas estarem a ficarem cada vez mais velhas e saber se haverá condições para as assistir bem nos próximos anos. Vamos gastar muito dinheiro com a saúde. E preocupam-me estas guerras políticas. Acho que mais tarde ou mais cedo terá de haver alguma calma. Tem havido muito ideologia, então esta viragem à esquerda na lei de bases da saúde…

Faz sentido a lei como está hoje, a dizer que o Estado deve apoiar o desenvolvimento do setor privado da saúde, em concorrência com o SNS?

As leis têm muitos subterfúgios que permitem interpretações como quiser. Estamos no século XXI e temos de nos adaptar à realidade. Quando fui para o Serviço Médico à Periferia havia este hospital e pouco mais. Hoje veja o que há de setor privado, é uma loucura, e é preciso regulação. E a ministra da Saúde também é minha ministra, não é só ministra do público.

Sente que o setor privado não tem sido bem tratado pela ministra?

Não sinto nada disso aqui. Agora sinto que tem havido alguma agressividade e animosidade para com o setor privado. Isso não posso deixar de sentir, quem não sente não é filho de boa gente.

Nos últimos anos começou a participar em missões em S. Tomé. Quantas já são no serviço?

28.

A primeira vez que lá chegaram não havia um otorrino.

Foi voltar ao zero, não tínhamos nada. Acho que a Valle Flôr, a ONG através qual temos estas missões, tem feito muito pela cooperação. Estamos ali a fazer verdadeira lusofonia. São várias especialidades, não é só a nossa. Começamos por só levar médicos, cirurgiões e enfermeiras e hoje levamos audiologistas, audioprotesistas. Conseguimos implementar língua gestual em colaboração com a Católica.

Como é que as pessoas comunicavam?

Cada um comunicava por si mas não havia uma língua gestual estabelecida. Com a colaboração da Católica e da professora Ana Mineiro conseguimos dar este passo e instituir a língua gestual de São Tomé e Príncipe, que é uma adaptação da nossa. E conseguiu-se criar duas escolas de surdos, eram pessoas que viviam sozinhas. Tem sido uma experiência muito bonita. No meio disto tudo pedi à professora Cristina Carroça que estava a fazer o doutoramento que tentasse perceber o que provocava aquela surdez toda.

E perceberam?

Na sua globalidade não, mas já descobrimos que um dos problemas era não fazerem a vacina da rubéola. Falámos com a OMS, com o apoio do dr. Francisco George quando era diretor-geral da Saúde, e conseguimos que fosse incluída no calendário de vacinação.

Isto tudo em dez anos?

Sim. E todas as semanas falamos por telemedicina. Temos três médicos que ensinámos a fazer as endoscopias e os nossos alunos na Nova assistem. Temos todos os dias aqui 15 alunos, para o ano passamos a ter dez. A regência da cadeira passa para o Egas Moniz.

Que área é mais promissora?

Os implantes da cóclea. São muito caros, cada um custa 35 mil euros, mas mudam a vida de uma pessoa. Pode mudar a vida de uma criança que nasce surda mas tenho aqui casos de pessoas que não ouviam há 20 anos e passaram a ouvir, algumas há 30. Temos pessoas mais antigas que estamos a tentar, vamos ver se conseguimos. 

Nestes 50 anos, se pudesse viajar no tempo, a que momento voltaria?

Acho que gostava de voltar a Lagos, foi um momento muito forte. Pela paz, pelo entusiasmo, tinha 27 anos, conseguia mudar o mundo. Gostava de correr uma maratona outra vez.

Sente a vida a ficar em contrarrelógio?

Sim, mas aceito com calma. O momento de vir para aqui também foi muito forte. Um dia o administrador perguntou-me o queria para vir a tempo inteiro, que escrevesse numas folhas A4. Desenhei um serviço. Passados 15 dias telefonam-me e perguntam-me quando quero vir. Nos primeiros tempos estive mal… era professor da faculdade. Mas formei logo uma equipa, não acredito que possamos fazer coisas sozinhos. Hoje somos 19.

O que vai fazer com o tempo que lhe sobra agora da faculdade?

Vou aproveitá-lo aqui. Vou criar um núcleo de investigação com os doutorados no departamento, é isso que vou fazer. E lançar a CUF Tejo, é um grande desafio.

Tem alguma pergunta que gostasse mesmo de responder?

Ah, isso é se o Benfica é campeão para o ano (risos).