Só num país tão contraditório como a Argentina é que uma ex-Presidente com mais de 10 acusações de corrupção e cinco mandatos de captura poderia ser a candidata mais popular nas eleições presidenciais. Mas o país de Cristina Fernández de Kirschner não é um país qualquer. Nem o é a sua tradição política, o peronismo, uma estranha mistura de ideais de esquerda – como justiça social e antimperialismo – com um corporativismo literalmente inspirado no fascismo. Não seria de esperar menos do legado conjunto do general Juan Domingo Perón – que galvanizou apoio popular contra duas ditaduras mas deu abrigo a criminosos de guerra nazis – e da sua segunda mulher, Evita Perón, uma atriz de origens humildes, o mais amado símbolo do movimento sindical argentino – de tal modo que nunca abandonou a consciência coletiva daquele país. A memória de Evita ainda ressoa na narrativa à volta de Cristina, a primeira mulher eleita Presidente da Argentina, que cresceu e começou a sua militância política entre os apoiantes do casal Perón. E que assegurou que as mulheres da sua geração têm uma grande dívida para com Evita, pelo seu «exemplo de paixão e combatividade».
Aliás, tal como os Perón, que fundaram o Partido Justicialista, Cristina também teve o seu poderoso par em Nestor Kirchner, o seu falecido esposo, que a antecedeu na liderança do partido e como Presidente argentino. Os Kirchner conheceram-se em 1973, quando ambos estudavam direito na Universidade de La Plata, em Buenos Aires. Foi aí que Nestor começou a introduzir Cristina nos debates políticos do tempo, no ano do regresso de Juan Perón do exílio, que morre pouco depois de ser eleito Presidente. Mais uma vez, as dinâmicas familiares da política argentina entraram em jogo, quando a vice de Perón, a sua terceira mulher, Isabella, se torna Presidente. Mas Isabella não era Evita, acabando por se aproximar dos esquadrões da morte da Aliança Anticomunista Argentina – a quem deu poderes para aniquilar os ativistas de esquerda. A manobra deu início à chamada Guerra Suja, que resultou na tortura, morte ou desaparecimento de 30 mil pessoas, e que continuou após o golpe de Estado que instaurou uma ditadura militar entre 1976 e 1983.
Logo após o golpe de Estado, os Kirchner mudaram-se para a cidade natal de Nestor, Río Gallegos, em Santa Cruz, na Patagónia, que se tornaria na base de poder político de ambos, onde abriram o seu próprio escritório de advogados. Apesar dos Kirchner terem continuado ativos no movimento peronista durante a ditadura – tendo sido detidos várias vezes e tido muitos dos seus companheiros assassinados – a sua atividade profissional tem sido alvo de críticas dos seus opositores políticos, como Julio César Strassera. O procurador encarregue do julgamento contra a junta militar, em 1985, não hesitou em acusar os Kirchner de hipócritas, por não terem participado na defesa legal de prisioneiros políticos, preferindo lucrar a trabalhar para bancos em casos de despejos por incumprimento de empréstimos.
Subida ao poder
Esta mistura de radicalismo e capacidade de compromisso com os poderes dominantes marcou toda a carreira política de Cristina e Nestor – que continuaram inseparáveis. Cristina teve a primeira experiências de governação no Governo provincial de Nestor, eleito governador de Santa Cruz em 1991. Por entre uma grande recuperação económica na região – bem como acusações de autoritarismo por parte da oposição – a notoriedade ganha por Nestor acabaria por catapultá-lo para a presidência, em 2003, e com ele foi Cristina, como primeira-dama. Ao mesmo tempo, Cristina continuou como senadora, encabeçando as tendências sociais-democratas do seu partido, pouco depois da suspensão de pagamento e da restruturação da dívida Argentina, no rescaldo da crise financeira global de 2001 – que resultou num crescimento económico anual entre 7% a 9% até 2005. Uma bonança económica capitalizada pelos Kirchner, que canalizaram fundos que de outra maneira teriam ido para os juros da dívida, aproveitando para reconstruir o tecido industrial nacional, bem como investir em serviços e obras públicas – que lhes granjearam grande popularidade. Para surpresa de todos, Nestor recusou concorrer de novo às presidenciais de 2007, apoiando a candidatura de Cristina, uma manobra vista pelos seus opositores como tentativa de contornar o limite de mandatos de modo a conseguir ficar mais tempo no poder. Seja como for, Cristina venceu a disputa na primeira ronda, conseguindo mais de 45% dos votos. Dos doze ministros do seu Governo, 7 tinham sido ministros de Nestor, anunciando uma continuação das políticas do seu antecessor. Mas se o marido de Cristina planeava regressar ao poder, o seu coração não o permitiu, tendo falecido subitamente de um ataque cardíaco em 2010, aos 60 anos. Nas eleições de 2011 quem concorreu foi de novo Cristina, agora viúva, que conseguiu consolidar o seu poder dentro do Partido Justicialista e ser eleita Presidente pela segunda vez, com 54% dos votos. Foi ela que em 2014 tentou negociar com os chamados «fundos abutres» – a minoria dos credores que não aceitaram a renegociação da dívida em 2001 – continuando a exigir o pagamento integral das dívidas, levando a uma nova declaração de bancarrota. O facto de Cristina não ter podido concorrer nas presidenciais em 2015, devido à limitação de mandatos, resultou na eleição de Mauricio Macri – antigo presidente do clube de futebol Boca Juniors e governador de Buenos Aires. Macri pôs em prática um programa neoliberal – com grandes cortes no investimento público, subsídios e pensões – que se tem tornado ainda mais impopular ao longo do seu mandato, perante a desaceleração do crescimento económico e o aumento generalizado da pobreza. De tal modo que nem o início dos vários processos de corrupção contra Cristina – o primeiro deles relativo a obras públicas suspeitas, na sua província de Santa Cruz, avaliados em cerca de 1,16 mil milhões de euros – parece abalar a popularidade da ex-Presidente. Nas redes sociais multiplicaram-se os apoios a Cristina, que não hesitou em qualificar as investigações como «uma cortina de fumo para distrair os argentinos da sua dramática situação». E que até abdicou da sua candidatura presidencial para o peronista centrista Alberto Fernández, quando liderava as sondagens. A justificação de Cristina, de querer aumentar a base eleitoral da sua candidatura, esbarra nas acusações dos seus adversários, que notam que como vice-presidente controlaria o Senado, aumentando a duração da sua imunidade parlamentar – que impediu que fosse detida até agora , além de possibilitar que Fernández conceda um perdão presidencial à sua vice. Os vícios da política argentina, entre testas-de-ferro e nepotismo, parecem continuar ecoar na campanha presidencial para as eleições de outubro, que começa agora.