Quem me falou pela primeira vez em telemóveis foi, há uns 30 anos, um amigo chamado Rui Câmara e Sousa, hoje já falecido, barbaramente assassinado em Angola. Contava-me que um dia, na Suécia, caminhando na rua com um amigo sueco, ouviu uma campainha tocar, viu o amigo tirar um aparelho do bolso e – perante a sua estupefação – começar a falar com alguém através do dito aparelho.
Rui Sousa nunca tinha visto uma coisa assim: uma pessoa a falar ao telefone em plena rua, sem estar ligado a um fio. E, ao ouvir esta história, percebi que ia haver uma revolução nas comunicações. Ninguém iria conseguir fugir àquele sortilégio. Poder falar no meio da rua para qualquer sítio do mundo, com quem se quisesse, era uma coisa admirável. Irresistível. Toda a gente iria querer ter um objeto daqueles, por mais pobre que fosse.
E assim foi. Os telemóveis vulgarizaram-se rapidamente em todo o Globo, avançando como fogo em palha, e ao fim de pouco tempo ninguém os podia dispensar. E foram-se sofisticando. Primeiro eram enormes, depois reduziram-se, ficando do tamanho de uma caixa de fósforos, finalmente voltaram a crescer, à medida que as suas potencialidades aumentavam: receber e enviar emails e mensagens, ouvir e gravar músicas e outros sons, ver televisão, tirar fotografias, ver e gravar vídeos, consultar arquivos e todo o tipo de informação, falar ao telefone vendo o rosto do interlocutor, eu sei lá!
Hoje as pessoas fazem tudo com o telemóvel. E, assim sendo, não podem largá-lo um segundo.
Passo por uma escola secundária, à hora da saída. Há uns anos, os alunos e alunas vinham em alegre vozearia, gozando a liberdade depois de estarem fechados durante horas nas salas de aula; agora vêm isolados, cada um para o seu lado a olhar para o ecrã do telemóvel.
No restaurante ao meu lado um casal espera pela chegada da refeição, que está demorada. Não trocam uma única palavra. Ambos têm os olhos fixos no telemóvel.
No banco do jardim, à minha frente, senta-se um casal com dois filhos adolescentes. Os filhos não falam um com outro nem olham para os pais: passam todo o tempo a olhar para os telemóveis.
No carro que pára ao meu lado no semáforo o condutor não olha para fora nem para os carros que o rodeiam: tem os olhos em baixo, seguramente a olhar para o telemóvel. Mais à frente, uma senhora faz uma manobra de estacionamento agarrando o volante só com uma mão – pois na outra segura o telemóvel, para o qual vai deitando o rabo do olho.
Uma fotografia tirada no Open do Estoril mostra um conjunto de pessoas na bancada. A maioria não olha para o court: tem os olhos colados ao telemóvel.
Vivemos outro tempo. Para muitas pessoas, o telemóvel é tudo. É o modo como se relacionam com os amigos, lêem os títulos dos jornais, namoram, falam às escondidas com as amantes ou os amantes, consultam as enciclopédias, ouvem música, espreitam a TV, vêem futebol, jogam.
As pessoas ocupam hoje muito tempo a jogar no telemóvel. Jogos tradicionais, como as cartas, ou outros, mais sofisticados. E nessa medida o telemóvel conduz a uma certa infantilização dos adultos. Com o telemóvel, adultos e crianças fazem basicamente as mesmas coisas.
As trocas de mensagens ao telemóvel são primárias: frases muito curtas, nada de ideias. Número de palavras reduzido ao mínimo. Vocabulário rudimentar. Ao telemóvel tudo se simplifica, tudo o que é complexo desaparece. O mundo reduz-se à dimensão do pequenino ecrã.
Chama-se a isto alienação. Os telemóveis foram inventados para servir as pessoas, mas hoje as pessoas são dominadas por eles. Os telemóveis monopolizam-lhes a atenção de todas as maneiras. Não há como fugir. Já vejo pessoas com dois e três telemóveis.
A geração dos telemóveis será muito diferente da dos pais. Porque o contacto físico vai desaparecendo. Aquilo a que chamamos ‘calor humano’ perde-se. A nossa relação passa a ser com uma máquina. Relacionamo-nos com tudo através da máquina.
E isso vai ser devastador para a humanidade, porque as pessoas precisam de contacto, de se olharem, de se tocarem.
Para nos libertarmos desta escravidão, proponho que se crie o Dia Mundial Sem Telemóveis. Há dias para tanta coisa… e este poderia ser muito pedagógico.
Nesse dia, todas as pessoas desligariam o telemóvel e veriam como é a vida sem ele. Seriam levadas a olhar à volta e a ver o mundo de outra maneira. Não aprenderiam decerto a viver sem telemóvel – mas, pelo menos, perceberiam que há mais vida para lá do telemóvel.