Boa parte de nós ainda se criou num tempo em que era nos livros que se esperava que o pó finalmente assentasse, esse pó que cintila pelos séculos, e nos dá um retrato essencial das coisas: a História. Só que, nestes últimos anos, algo de profundo mudou na cultura. Os livros de História apenas acolhem um rumor quase indignado, uma explicação mais longa e que perde audiência a cada reviravolta. A letra impressa não tem já forças para puxar a manga da História, e os jornalistas não são historiadores do instante, nem do quotidiano, nem de coisa nenhuma. É o cinema hoje, com todo o seu pleonástico arsenal, que dita o que há-de ser lembrado. Veja-se como Elton John, essa lenda viva da música pop, parece uma figura de cera, ou mesmo a viúva que vem colher, de lágrima no olho, os louros, todas as honrarias em nome daquele magistral cantor e compositor, que teve o mundo aos seus pés numa era que, nos registos históricos da pop, é o equivalente ao período jurássico – a década de 70.
Na sequência de Bohemian Rhapsody, o bio-pic à volta de Freddie Mercury, o vocalista dos Queen, que superou todas as expectativas nas bilheteiras, e marchou triunfalmente até à cerimónia dos Óscares, onde arrebatou quatro estatuetas, surge agora Rocketman, para dar às novas gerações uma ideia de quem foi este outro ícone gay, um que se safou aos aspetos trágicos e acabou por pagar o preço de se tornar parte da mobília pop: um enormíssimo piano mecânico no centro do salão tocando sozinho velhos êxitos que se recusam a morrer.
Ursinho de peluche O mais difícil no caso desta nova fita biográfica é fazer esquecer esse personagem que se tornou demasiado óbvio, essa estrela pop com ar de «ursinho de peluche», como notou Bill Wyman, que no lugar da exuberância, apenas deixa à sua passagem um perfume que, de tão doce e persistente, se torna enjoativo. O John que a maioria de nós pôde conhecer, era já esse ícone gay envelhecido, inseguro quanto à oportunidade de sair de cena, e que surgia tantas vezes como o número de entretenimento da realeza britânica. Por essa razão, este novo bio-pic está a funcionar como resgate mais até do que como homenagem. Elevando a parada no que toca ao ultraje, com o brilho ousado da estética glam-rock, desta vez houve margem para apresentar este grande ato musical de uma forma bem menos higienizada.
Os produtores sabiam que o material deixaria sempre algo de sobra fosse qual fosse a direcção que tomassem. Num texto no The Guardian, Elton John revelou que os estúdios queriam ir pelo seguro, e tentaram ao máximo conter o retrato no que tocava à espiral de abusos no que toca a sexo e drogas, e isto para garantirem uma classificação PG-13 (para maiores de 13 anos). «Acontece que eu não vivi uma vida confinada aos limites PG-13», frisa o músico. E John diz que se não contava que a biografia fosse uma descida aos infernos, cheia de drogas e sexo, por outro lado, «toda a gente sabe que eu fui longe no que toca a ambos nas décadas de 70 e 80, e não me parecia que houvesse sentido em fazer um filme que desse a ideia de que, depois de cada concerto, eu me enfiava pacatamente nagum quarto de hotel tendo por companhia um cop de leite quentinho e a Bíblia».
Infância atribulada Não faltaram rumores de que o realizador Dexter Fletcher sentia a trela ficar tensa sempre que ia um pouco mais longe nas cenas de sexo, mas, há poucos dias, em Cannes, o produtor Matthew Vaughn disse que John chegou a pedir-lhe para ir o mais longe possível e forçasse os limites da classificação para retratar a sua infância bastante atribulada, e depois os problemas com o abuso de drogas e álcool, as reabilitações ou a a sua vida sexual. Claramente, Elton não estava interessado em que este sublinhado cinematográfico da sua vida se revelasse um modo de revisionismo histórico. Os estúdios sabiam que, com Fletcher na realização, tinham a pessoa certa para afinar o lado de predestinação de um miúdo anafado e de gafas, que cresceu num acanhado súburbio de Londres, e que, na ascensão a deus do rock, não se poupou a nenhum dos aspectos mais retorcidos da tão desejada fama.
O filme tem sido descrito como um «musical de fantasia», e espera-se que, tal como aconteceu com Bohemian Rhapsody, também as vendas dos álbuns de John disparem nos próximos meses, com muitos dos seus êxitos a cavalgarem as tabelas, influídos de uma segunda vida. Mas, com todo o poder de Hollywood para podar os aspectos mais espinhosos de um grande vulto, Elton é já o quinto artista com mais álbuns vendidos – mais de 300 milhões em todo o mundo-, só ficando atrás dos Beatles, Elvis, Michael Jackson e Madonna. Nada mau para o miúdo de Pinner, que cresceu debaixo da saia da mãe depois de o pai ter abandonado a família, e foi educado num ambiente muitíssimo conservador, tendo demorado uns bons anos para se livrar do nome de baptismo -Reginald Dwight -, e que só pelos trinta, numa temporada que passou em São Francisco, que começou a deitar-se com homens.
Elton Hercules John, o nome que adoptou, começa por um roubo, pois Elton era o nome de um dos colegas de banda, abre caminho depois aos doze trabalhos, e acaba na calorosa simplicidade de um apelido que sabe finalmente a nome próprio. Rocketman devolve-nos à improbabilidade daquele puto, Reggie Dwight, vir um dia a tornar-se um deus.
A busca do destino por meio de uma série de desastres É certo que, muito embora a sua figura não impressionasse, revelou-se desde cedo um prodígio musical. Aos 11 anos entrou na Royal Academy of Music com uma bolsa. Talvez a sua tenebrosa timidez tenha feito por ele toda a escola de que precisava, e aos 17 anos, largou os estudos, e andou aos caídos durante uns bons cinco ou seis anos, a tapar buracos na cena musical londrina, até conseguir entrar para a tal banda, chamada Bluesology. Era um de muitos, mas muitos, a tentar encontrar um rumo, algum traço distintivo naquela espécie de «apocalipse que se deu no pós-Beatles na paisagem da pop» britânica. Nesse sentido, a originalidade de Elton é um a construção atenta a todas as crateras que marcavam um território onde, num período de uns poucos anos, se fartaram de cair meteoros musicais. Antes de dominar as tabelas de vendas na década de 1970, com sete albuns consecutivos a chegarem ao primeiro lugar nos EUA, um domínio de 39 semanas ao longo de um período de apenas três anos e meio, John, ao contrário de outras figuras como Bowie ou Lou Reed, conseguiu um nível de sucesso bem maior sem nunca ter encontrado propriamente uma identidade. Ele é o talento que não podia ser ignorado na pele de um homem que não podia ficar quieto, e assim, a sua história é a busca insaciável de um destino por meio de uma série de desastres, mas a busca de um génio que podia errar tanto quanto quisesse, porque o seu talento não era humano mas divino. De resto, um dos aspectos centrais da trama de Rocketman mostra-nos a relação platónica entre Elton e Bernie Taupin, tendo os dois formado uma das mais bem sucedidas parcerias na história da música, sendo que, depois de se terem conhecido em 1967, produziram juntos um cancioneiro que talvezperdure enquanto o ouvido humano registar uma melodia robusta, capaz de embalar a comédia e o drama, com aquela cumplicidade entre o piano e a voz, que consegue criar a atmosfera, num exercício terapêutico para ajustar o balanço entre os graves e os agudos, num registo muito próximo dos altos e baixos da prória vida.
E para se perceber a dimensão do talento que está aqui em causa, é preciso saber que a astúcia de Elton estava não só em saber de onde lhe vinha a sua força, como em reconhecer os seus limites. Por isso, nunca quis escrever as letras das suas canções, deixando essa tarefa para Taupin e outros depois dele. O processo de composição sempre foi o mesmo. Elton recebia um envelope, alguns rascunhos, letras soltas, e a partir delas, tantas vezes em não mais que 15 ou 20 minutos, criava estas canções que, hoje, para quem só chegou depois, dão à música essa propriedade tão natural e estruturante que faz dela, depois da terra, do ar, do fogo e da água, o quinto elemento.