À medida que o sol caminha para o seu lugar vertical de meio dia, a manhã torna-se translúcida sobre Ulaan Baatar e sobre o lugar tranquilo de Gandantegchinlen, o mosteiro de Gandan. Os meninos de bochechas vermelhas escuras correm divertidos com o barulho que a gravilha faz por debaixo das suas pequenas botas recurvas, as «mongol gutal» que se vendem baratas no zahk – o Mercado dos Ladrões como lhe chamam – nos arredores da cidade. Monges de vestes púrpuras deslocam-se solenemente como visões feéricas por entre os grupos grandes de pessoas que vêm dedicar-se às orações. As pombas amontoam-se agitando as asas nos telhados verdes e ondulados do templo.
Foi um monge que falava em alemão cantado e em inglês grosso que me contou a lenda de Gandantegchinlen, abandonado durante os anos do comunismo fossilizado do PRPM, o Partido Revolucionário do Povo Mongol, o tempo em que os monges eram perseguidos e o lamaísmo proibido – cerca de 700 mosteiros foram destruídos, mais de 14.000 monges foram perseguidos e mortos. Mas o ano redondo de 1990 e seu terramoto político trouxe os mongóis de novo aos mosteiros de Gandan e Choijin, na capital, arrastou-os até Manzshir Hiid, no vale de Zuunmod, para sul, e para lá de Harhorin, a velha Karakorum, capital o império mongol antes de Kublai Khan se ter mudado para Pequim, onde se ergue o mosteiro de Erdenezuu, o primeiro centro budista da Mongólia, construído em 1586. O tal ano redondo de 1990 devolveu-lhes o orgulho da sua história religiosa, o orgulho de um final de século em que a antiga Da Khure, ou a Urga dos russos, era uma urbe insegura de gente nómada constituída por yurts que surgiam e desapareciam como cogumelos brancos em redor da lamasseria onde se instalava o Buda Vivo, o Dalai Lama, uma das três reencarnações do Buda, estando as outras nas cidades sagradas de Lhasa e Pequim.
O Buda Vivo da velha Urga era geralmente uma criança que morria cedo, ou antes, era assassinada ainda no início da adolescência pois acreditava-se que a alma de uma divindade só poderia viver no corpo de um menino.
À medida que o monge fala do tempo das lendas, o sol vai ganhando um calor forte, as pombas esvoaçam em matizes de cinzento, os meninos correm nas varandas de madeira e os velhos absorvem uma luz azul pelas frestas esforçadas dos olhos baços.
Urga é agora Ulaan Baatar, ou Ulan Bator, conforme o grafismo que se adote. A cidade do Herói Vermelho, pois é isso que o seu nome significa. É uma cidade nova, renomeada e reconstruída a partir de 1921 com fortíssimas influências da antiga União Soviética, espaços abertos, avenidas largas, praças, monumentos, subúrbios de blocos inexpressivos e austeros edifícios oficiais. Mas a base nómada dos yurts não desapareceu, tornou-se apenas sedentária. Milhares de pessoas vivem ainda nas enormes tendas brancas. À sua volta foram crescendo vedações de madeira que as protegem dos ventos gelados das estepes e lhes dão o aspeto tristonho de pobres bairros de lata levantados em pano.
O poeta das planícies
«Esta, esta é a minha terra,
O país amado – minha Mongólia.
Os mais belos rios de Orkhon, Selenge e Khukhui,
Montanhas e desfiladeiros – as fontes de metal e pedras,
Velhas estruturas e ruínas de cidades e fortalezas,
Caminhos e estradas correndo para países distantes;
Esta, esta é a minha terra,
O país amado – minha Mongólia.
As coroas altas das montanhas brancas de neve brilhando ao longe,
A terra virgem e infinita debaixo de um céu azul claro,
Os picos nobres e quietos vistos à distância,
E os campos por cultivar onde a nossa alma encontra finalmente a sua paz».
Excerto de um poema chamado My Native Land e escrito em 1933 por Dashdorjyn Natsagdorj, quatro anos antes da sua morte. Nascido em 1906, filho de um aristocrata falido, Natsagdorj é hoje tido como o grande escritor mongol e levou a sua vida devotado à causa do desenvolvimento da moderna cultura da Mongólia de que foi o precursor. A sua obra é considerada extremamente acurada em variadíssimas vertentes, marcada por uma crítica feroz para com tudo o que foi feito anteriormente e pelo elogio do futuro. As suas primeiras obras incluíam os dramas Ushaandar, The Cruel Deeds of Sando Amban e Not Me, todas traduzidas para inglês. A mais famosa das suas peças de teatro é Three Fateful Hills.
Poeta e contista, foi também autor de My Native Land e Star (poemas) e de A Son of the Old World, The Black Tears at the New Year e Fleet Footed Bay (novelas), sendo igualmente um linguista de conhecimentos profundos de russo, inglês, alemão e manchu, tendo contribuído para a tradução das obras clássicas em mongol.
Apesar de ter morrido muito jovem, o número dos seus seguidores é enorme: Babain Akhtaan, Sodnombaljiryn Buyannemekh, Nasan-Ochiryn Navaan-Yunden, Sonomyn Udval, Begzyn Yavuukhulan e tantos outros a quem Pablo Neruda, quando visitou Ulaan Baatar, chamou de «os meus irmãos poetas distantes» e perfeitamente desconhecidos entre nós mas que merecem um pouco da atenção de quem se interessa por este país ainda tão misterioso. Para isso nada como comprar a Modern Mongolian Poetry, por exemplo, que se encontra à venda no Armazém do Estado por uns modestos 12 tugriks.
Língua que soa a música, o mongol. Raízes da família Ural-Altaica que inclui o finlandês, o turco, o kazaque, o uzbeque ou o coreano. A unificação da linguagem oral vive, no entanto, a confusão da diversidade da linguagem escrita. Desde 1944, foi adotada uma versão do cirílico russo, embora com mais dois carateres do que os 33 usados pelos russos. A escrita tradicional mongol, herdada dos uigurs chineses, que a trouxeram do Médio Oriente é esteticamente muito agradável e composta apenas por 26 carateres, escrevendo-se na vertical com início no canto esquerdo da página, mas esteve «bafada durante cinquenta anos». Só em 1994 é que foi ressuscitada, tornando-se oficial, embora muito poucos mongóis ainda a dominem por completo atualmente.
Hoje em dia, o russo é largamente falado por todo o país bem como o alemão, por via dos estreitos contactos existentes entre a Mongólia e a antiga RDA antes da queda do muro de Berlim. A minha versão de Modern Mongolian Poetry, em papel barato, acessível a todos, é bilingue. Mesmo que não entenda, deixo-me fascinar pelas linhas escritas em mongol. Tem o traço inconfundível dos planaltos…
A cidade parada no tempo
O trânsito é escasso, os autocarros decrépitos andam apinhados de um lado para o outro desta cidade plana, os táxis são antiquíssimos automóveis de fabrico soviético, os sinais praticamente não existem, muitas das ruas não têm nomes visíveis, muitos prédios não exibem números. O ar é fresco das brisas das montanhas. Quem caminha para sul ao longo da Avenida Chengis passa sobre a linha de caminho-de-ferro e sobre o ribeiro de Selbe Gol e sobe depois ao monte Zaysan de onde se vê como Ulaan Baatar se espalha num planalto suave até aos seus horizontes fumarentos das fábricas de curtumes. É possível que neste lugar alto, vizinho das águias que traçam elipses lentas em redor, o silêncio dos murais que contam a luta quotidiana do povo mongol pelo trabalho e pela família seja interrompido pelo canto gargarejado desses trovadores mongóis que não têm paralelo no mundo: sons agudos como assobios de pássaros, versos entrecortados como vozes de ventríloquos voam então, por sua vez, ao encontro da surpresa das aves. Por vinte, trinta tugriks, que é o preço de um cantor que se levanta cedo.
A praça de Sukhebaatar é o centro da cidade. Famílias inteiras alinham-se frente às máquinas fotográficas para que os seus sorrisos tenham como pano de fundo os edifícios solenes da ópera, da biblioteca que parece a maternidade Alfredo da Costa, a estátua equestre ou o mausoléu de Sukhebaatar, o herói da revolução mongol.
O espaço de cimento rachado do pavimento é enorme, alguns carros governamentais passam de quando em vez provocando agitação nos transeuntes, no céu da tarde farrapos de nuvens brancas deslizam devagarinho para norte e para a placidez de Dukham onde os khavtgai, estranhos camelos de bossas desacertadas, vivem nas margens do Selenge.
É a hora em que os poucos turistas se sentam um pouco na esplanada do Green Club, esse restaurante meio bar soixante-huitard de desenhos nas paredes e rabiscos de nomes portugueses nas mesas de madeira forte relembrando a passagem de um Camel Trophy, ouvindo os sonhos de Bath, um jovem mongol que conheci em Novosibirsk e vive a ansiedade contínua da partida.
No muro do prédio em frente, uma pintura enorme de Sukhebaatar ocupa o espaço da vista a par com os traços azuis, vermelhos e dourados do Soyombo, o símbolo da Mongólia, o emblema da bandeira, a imagem da liberdade e da independência que vem do séc. XVII por muitos tratos de polé que tenha levado desde então.
Há sempre, por todos os lugares da Mongólia, uma sensação profunda de solidão. Nas súbitas ausências completas de ruído; no zumbido das abelhas às dezenas, procurando humidade nos passeios; num arco-íris que surge ao longe, volta e meia, anunciando pingos esparsos de chuva sobre as florestas de pinheiros e de eucaliptos; nas canções da lua do poeta Yavuukhulan; nas folhas mortas que o vento espalha pelas praças de bancos de pedra onde se sentam velhos pensativos; no edifício do Circo do Estado que anuncia espetáculos já passados enquanto a companhia viaja por longínquas cidades da Europa e da América; nos fantasmas que garantem existir no palácio de Bogdo Khan, uma espécie de Cidade Proibida pequena e abandonada à beira da corrente do Tuul Gol; nos balouços ferrugentos do Parque de Nairamdal; no brilho das estrelas em Terelj; no reflexo das águas azuis turquesa do lago Hovsgol; nas gargalhadas sonoras dos homens que bebem vodka à porta dos cinemas que têm filmes chineses em cartaz.
O airag (ou kumiss), feito de leite de égua ou de burra, é a bebida nacional. A revista Mongolia Magazine, feita de propósito para estrangeiros, dá este utílissimo conselho aos apreciadores da beberagem: «Antes de beber agite o airag muito bem. Mantenha-o num odre de pele suspenso na parede do seu yurt e misture-o periodicamente com uma batedeira». Nada como estar informado, não vá dar-se o caso de pensar em emigrar para as estepes mongóis e sentir uma necessidade súbita de beber tal mistela.
A cerveja mongol não é das mais saborosas. É fraca e meio aguada. O chá é muito particular: tem um toque de sal e pode levar ainda leite e açúcar. O sirop é uma bebida doce e espessa. O arkhi, o vodka local, caríssimo. Pode chegar aos 900/1000 tugrik por litro. O que não chega para funcionar como dissuasor do seu consumo. A Mongólia vive terríveis problemas de alcoolismo e é frequente assistirem-se a confusões de rua provocadas por homens de mau vinho ou, neste caso, mau vodka.
Talvez por isso, para quem gosta da noite, a noite em Ulaan Baatar não exista. Gasta-se lentamente em conversas mansas até que um fio de luz anuncie o sol na terra de Genghis Kahn que hoje não passa de um nome de uma cadeia de lojas de hambúrgueres.