Um grupo de ex-administradores da Caixa Geral de Depósitos após 2008 – mandatos de Faria de Oliveira (de 2008 a 2010) e José de Matos (2011 a 2016) – vai contestar a auditoria realizada pela EY, que avaliou os atos de gestão do banco público entre 2000 e 2015. A auditoria deu conta de negócios ruinosos na ordem dos dois mil milhões de euros – as perdas acumuladas registadas pela EY são de 1706 milhões de euros pré-2008, 230 milhões de euros entre 2008 e 2010 e 36 milhões de euros pós 2010 – o que obrigou a uma recapitalização de mais de cinco mil milhões de euros.
O SOL sabe que, um dos pontos -chave por detrás da contestação por parte deste grupo está o facto da auditoria ter sido realizada pela EY SA e não pela EY Audit & Associados SROC.
A explicação é simples: só a segunda é que é regulamentada pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) e, por isso mesmo, defendem que o documento que está a servir de base à comissão de inquérito no Parlamento é encarado não como uma auditoria, que foi o que foi precisamente solicitado pelo Ministro das Finanças, mas como um ‘relatório’.
Também o controlo de qualidade do documento foi efetuado pela PWC Assessoria de Gestão que, tal como a EY SA não é uma auditora. Mais um argumento que «tira qualquer credibilidade ao trabalho, uma vez que não sendo regulado não tem valor como auditoria», e que será usado pelos ex-administradores do banco público, apurou o SOL.
Os problemas não ficam por aqui. Os antigos administradores da Caixa apontam para dezenas de alegados «erros e incorreções infantis» que encontraram na auditoria aos atos de gestão do banco público. Uma situação que a CMVM eventualmente poderá não avaliar, uma vez que o documento não estará, na esfera de supervisão do regulador de mercados.
De acordo com este grupo, as conclusões da auditoria apresentam «inaceitáveis vícios de forma, ao ignorar o contexto macroeconómico e regulamentar. Não distingue os diferentes mandatos ao longo do periodo em análise e não efetua o benchmarking face aos outros bancos», acrescentando ainda que «não releva as condicionantes de política económica do período mais desafiante da gestão de um banco público em Portugal e apresenta inúmeros erros e inconsistências infantis e inaceitáveis para um relatório desta responsabilidade».
Uma fragilidade que levanta outras dúvidas aos ex-administradores da Caixa: «Como é que uma empresa que não é auditora, mas com uma designação parecida com a EY Audit pode efetuar uma ‘auditoria’ sobre um tema tão relevante e mediático como os atos de gestão na CGD. E se uma empresa não licenciada e não supervisionada pela CMVM decidir operar, sem o devido consentimento, em áreas que são supervisionadas pelo regulador dos mercados (ex: corretagem) essa empresa não será imediatamente punida por atividade ilícita? Não será esse o caso da EY SA que afirma ter efetuado uma ´auditoria`», questiona ao SOL este grupo de ex-presidentes.
Aliás, esse argumento não é novo. Faria de Oliveira quando foi ouvido na comissão de inquérito à Caixa, no início de maio, apontou o dedo ao trabalho da consultora, considerando-o «enviesado» e «descuidado». E as críticas não ficaram por aqui. O atual presidente da Associação Portuguesa de Bancos (APB) garantiu ainda que o documento «tem vícios evidentes e conclusões erradas» que evidenciam «o quadro mental e a perceção de quem tem de fazer a avaliação».
Um argumento que voltou a ser repetido pelo ex-administrador do banco público, Francisco Bandeira -que esteve à frente da Caixa entre 2005 e 2011, passando também pelo mandato de Faria de Oliveira – ao afirmar que o relatório de auditoria realizado pela EY ao banco público «enviesado» e avaliou normativos antigos com regulamentos posteriores. «É um relatório enviesado porque assenta numa amostra que não é minimamente representativa, baseado nos casos que geraram maiores imparidades», disse esta semana, no parlamento.
O responsável classificou ainda de «inconsistente» e «pouco rigoroso» o documento, acrescentando ainda que é «descuidado, dado que são identificados inúmeros erros e incoerências», nomeadamente «quatro situações que se referem a factos que não são verdadeiros ou não ocorreram».
Contactada pelo SOL, a CMVM não quis comentar.
CGD esclarece
Já fonte oficial da Caixa disse que «o pedido inicial efetuado foi à EY enquanto prestadora de serviços, não tendo feito distinção na forma. Foi o âmbito do trabalho que acabou por orientar a sua realização pela EY, SA. Apesar de denominada como auditoria independente aos atos de gestão da CGD entre 2000 e 2015, o serviço prestado pela EY, SA, não foi uma auditoria no sentido estritamente financeiro, ou clássico do termo, de análise ou verificação de contas», e acrescenta: «O âmbito dos serviços a prestar pretendiam a realização de uma análise à conformidade dos atos de gestão da CGD praticados entre 2000 e 2015 pelas diversas administrações, relativos a uma amostra de operações de crédito, aquisição e alienação de ativos e operações relacionadas com decisões estratégicas. Nesse sentido, porque não se pretendia analisar ou verificar as contas da CGD, mas sim processos e procedimentos, a entidade a contratar foi a EY, SA».
Só o total de crédito concedido à Artlant foi de 381 milhões de euros e, em 2015, a exposição da CGD a este projeto era de 351 milhões. Também problemático foi o empréstimo de 180 milhões de euros para a compra de ações no BCP à Investifino. A instituição financeira agora liderada por Paulo Macedo tinha uma exposição de 138 milhões de euros no final de 2015 e imparidades de 133 milhões de euros.
Já ouvido no Parlamento, o administrador José Manuel Fino garantiu que a sua empresa não tem «meios financeiros para a pagar». O empresário revelou ainda que a Investifino «não tem mais património do que deu como garantia à Caixa», daí a sua atual situação ser de incumprimento.
Este património está relacionado sobretudo com ações da Cimpor que foram entretanto vendidas, ações do BCP que sofreram forte desvalorização e ainda da construtora Soares da Costa, empresa que está atualmente em fase de reestruturação.
Mais polémica foi a verba cedida a Joe Berado e que totalizou 350 milhões de euros, juntando-se a este montante mais 50 milhões de euros atribuídos à Metalgest, holding do empresário madeirense, também para a aquisição de ações do BCP. No final de 2015, a exposição a estas duas operações do empresário madeirense ascendia a 321 milhões de euros, para uma imparidade registada de 152 milhões de euros. O empresário madeirense já foi ouvido no Parlamento e já se assistiu a uma verdadeira guerra aberta com os deputados.
Joe Berardo pediu acesso à transcrição e à gravação vídeo da sua audição no parlamento a 10 de maio com vista a avançar com um processo judicial contra os deputados presentes.
Nesse dia, o empresário pediu para que a sua audição não fosse transmitida em direto pela ARTV, o que não impediu a sua transmissão. Uma situação que levou o advogado de Berardo a considerar «totalmente ilícita» considerando ser um direito do seu cliente o direito à imagem.
As suas respostas na comissão de inquérito à CGD provocaram um coro de críticas, principalmente depois de ter garantido que os valores em falta aos bancos (incluindo o banco público) não são dívidas pessoais, mas de entidades ligadas a si e que tentou «ajudar os bancos» com a prestação de garantias e que foram estes que sugeriram o investimento em ações do BCP.
‘Bode expiatório’?
O empresário viu-se obrigado a justificar o seu comportamento e acabou por admitir que se tinha excedido, «dando algumas respostas impulsivas e não devidamente ponderadas». No entanto, garantiu num comunicado que não tinha a intenção de «ofender quem quer que seja, muito menos faltar ao respeito devido à Assembleia da República». Ainda assim, o empresário considerou que estava a ser usado como «bode expiatório de todos os males do sistema financeiro português desde 2007» e garantiu que não iria «aceitar passivamente».
No início do ano, o ministro das Finanças garantiu que a auditoria pedida à EY seria diferente de todas as outras anteriores.«Foram sete governos e oito ministros das Finanças», disse Mário Centeno, acrescentando: «Durante os últimos 20 anos houve dezenas de auditorias à CGD. É um banco auditado e as contas estão validadas neste longuíssimo período de tempo por todos os responsáveis, por todos os reguladores e os auditores, quer internos quer externos. Mas esta é uma auditoria muito específica aos grandes créditos e imparidades».
Constâncio de volta à AR
Os trabalhos da segunda comissão parlamentar de inquérito à recapitalização e gestão da CGD vão ser prolongados por 40 dias. A comissão foi aprovada no Parlamento em 15 de fevereiro e tomou posse a 21 de fevereiro. Nessa altura, Ferro Rodrigues expressou o desejo de que a nova comissão fosse ‘mais longe’ no apuramento de factos do que a anterior. Além das audições parlamentares há vários que vão responder por escrito aos deputados: Almerindo Marques, João Salgueiro, José Sócrates. Já esta sexta-feira, os deputados aprovaram nova audição a Vítor Constâncio, depois de não ter dito aos deputados que autorizou Joe Berardo a financiar-se junto da CGD para comprar ações do BCP, em 2007.