Depois de anos a pôr em causa a atuação dos políticos no Brasil, agora é a vez de o juiz Sérgio Moro e de a equipa de procuradores da Lava Jato serem postos em causa. A publicação de diversas mensagens privadas pelo site Intercept Brasil, que revelam alguma cumplicidade entre o juiz de Curitiba, hoje ministro da Justiça, e o principal investigador do caso, Deltan Dallagnol. Moro terá chegado a dar conselhos e dicas aos investigadores, bem como sugerir por antecipação o sentido da decisão. Quanto aos investigadores do MP, estes terão tentado evitar que Lula da Silva desse uma entrevista, por considerarem que a mesma poderia ser uma mais valia para Fernando Haddad, candidato do PT nas últimas eleições – de que Bolsonaro saiu vencedor.
Mas vamos por partes.
A entrevista de Lula para lançar Haddad No ano passado o Supremo Tribunal Federal, através de uma decisão do juiz Ricardo Lewandowski autorizou que Lula da Silva desse uma entrevsita a um jornal brasileiro, alegando que eram inválidos os argumentos usados para impedir a realização da mesma. A decisão criou perplexidade nos procuradores. Entre os comentários dos procuradores nos chats destaca-se o de Laura Tessler: “Que piada!!! Revoltante!!! Lá vai o cara fazer palanque na cadeia. Um verdadeiro circo. E depois de Mônica Bergamo, pela isonomia, devem vir tantos outros jornalistas… e a gente aqui fica só fazendo papel de palhaço com um Supremo desse… ”
Uma outra procuradora chegou mesmo a dizer que em causa estavam “mafiosos”. Os procuradores terão mesmo passado a delinear qual a melhor forma de, fazendo cumprir a decisão, retirar o máximo de destaque à entrevista. Uma das soluções passaria por transformar a entrevista numa conferência de imprensa. “Plano a: tentar recurso no próprio STF, possibilidade Zero. Plano b: abrir para todos fazerem a entrevista no mesmo dia. Vai ser uma zona mas diminui a chance da entrevista ser direcionada”, disse Januário Paludo no grupo de Telegram. Outra ideia apontada era que a entrevista só acontecesse depois das eleições.
Mas a entrevista acabou por ser autorizada em abril de 2018, tendo Sérgio Moro, já ministro de Bolsonaro, como refere o Intercept, tentado transformar a entrevista numa conferência de imprensa.
A acusação pouco fundamentada A poucos dias de concluir a acusação de Lula da Silva relativa ao apartamento triplex do Guarujá – na tese do MP uma contrapartida recebida por beneficiar a empreiteira OAS – as mensagens divulgadas mostram que Deltan Dallagnol estaria pouco seguro da acusação, nomeadamente pela existência de muita prova indireta. A 9 de setembro de 2016, Dallagnol enviou ao grupo de procuradores que investigavam o caso a seguinte mensagem: “Falarão que estamos acusando com base em notícia de jornal e indícios frágeis… então é um item que é bom que esteja bem amarrado. Fora esse item, até agora tenho receio da ligação entre a Petrobras e o enriquecimento, e depois que me falaram to [estou] com receio da história do apto [apartamento]… São pontos em que temos que ter as respostas ajustadas e na ponta da língua”.
Esta investigação já havia gerado guerra entre Curitiba e São Paulo, com as instituições dos dois estados a reclamarem a si a responsabilidade pela investigação, mas acabou por ir para Curitiba, ou seja, para a equipa da Lava Jato.
Quando se preparava o texto da acusação, a 10 de março de 2016, o procurador Deltan Dallagnol chegou mesmo a vibrar com uma notícia citada, era de 2010 e dava conta de que a falência da cooperativa Bancoop poderia prejudicar Lula e a mulher, que teriam um apartamento no prédio de Guarujá.
“Se ele já era dono em 2010 do triplex… a reportagem é um tesão, mas se convertermos em testemunho pode ser melhor”, disse Dallagnol numa mensagem enviada aos colegas e em que dizia ser importante chegar à fonte da jornalista para transformar em testemunho formal no processo.
Mas a jornalista acabou por dizer que recolheu os depoimentos no local, tendo toda a prova documental e emails sido apagada quando saiu do jornal O Globo. O Intercept Brasil conta que apesar de a notícia, tida como fundamental, apontar que o triplex de Lula era na Torre A, na notícia do Globo de 2010 era referido que a sua casa era na Torre B, até porque à data a A ainda não tinha sido construída.
A 16 de setembro, já depois de entregue a acusação, Dallagnol estava a ser duramente criticado pela fragilidade da prova e decide escrever a Sérgio Moro, o juiz que julgaria Lula: “A denúncia é baseada em muita prova indireta de autoria, mas não caberia dizer isso na denúncia e na comunicação evitamos esse ponto”. E acrescentou: “Não foi compreendido que a longa exposição sobre o comando do esquema era necessária para imputar a corrupção para o ex-presidente. Muita gente não compreendeu porque colocamos ele como líder para imperar 3,7MM de lavagem, quando não foi por isso, e sim para imputar 87MM de corrupção”.
A mensagem de Moro que viria a acalmar o procurador chegou dias depois: “Definitivamente, as críticas à exposição de vcs são desproporcionais. Siga firme”.
As dicas e as influências de Sérgio Moro Entre 2015 e 2017 a relação entre Sérgio Moro e Deltan Dallagnol foram-se aprofundando e em determinados momentos o juiz dá dicas ao magistrado do MP que ultrapassam as suas competências. Em causa estão mensagens privadas. Num dos casos, Moro questiona o investigador sobre a periodicidade das operações: “Não é muito tempo sem operação?”
O juiz sempre defendeu em público não ter qualquer estratégia de investigação. Mas as mensagens agora reveladas mostram como havia sim uma palavra sua em algumas das decisões do Ministério Público.
Em outubro de 2015, Dallagnol perguntou a Moro o seguinte: “Caro, STF soltou Alexandrino. Estamos com outra denúncia a ponto de sair, e pediremos prisão com base em fundamentos adicionais na cota. […] Seria possível apreciar hoje?” O juiz respondeu de seguida: “Não creio que conseguiria ver hj. Mas pensem bem se é uma boa ideia”, acrescentando: “Teriam que ser fatos graves”.
A 27 de fevereiro, Sérgio Moro usa a primeia pessoa do plural para falar de uma possível reação do MP a uns comunicados do PT: “O que acha dessas notas malucas do diretorio nacional do PT? Deveriamos rebater oficialmente?”
A questão da periodicidade das operações foi colocada por Moro a 31 de agosto, tendo Dallagnol concordado com o juiz que era demasiado tempo de intervalo: “É sim”.
Outra situação relatada prende-se com o envio de uma informação informal para o Ministério Público sobre Lula de modo a que a mesma fosse investigada. Mais uma vez Dallagnol acedeu ao pedido: “Obrigado!! Faremos contato”.
Quando em março de 2016 os brasileiros tomaram as ruas para protestar contra o Executivo de Lula, Dallagnol deu os parabéns a Moro por tudo o que fizera e pelas posições assumida. O juiz respondeu: “Fiz uma manifestação oficial. Parabéns a todos nós. Ainda desconfio muito de nossa capacidade institucional de limpar o congresso. O melhor seria o congresso se autolimpar mas isso não está no horizonte. E não sei se o stf tem força suficiente para processar e condenar tantos e tão poderosos”.
A divulgação das escutas de Lula e Dilma quando esta tentou nomear o primeiro para a Casa Civil para que escapasse a uma possível investida da Justiça também foram tema de conversa. O procurador sondou o juiz sobre se a decisão de divulgação seria mantida, tendo Moro perguntado apenas qual a decisão do MP. As escutas foram divulgadas e Moro não se arrependeu, como confidenciou dias depois: “Não me arrependo do levantamento do sigilo. Era melhor decisão. Mas a reação está ruim”.
Moro fala em sensacionalismo e MP em ataque “Sobre supostas mensagens que me envolveriam publicadas pelo site Intercept neste domingo, 9 de junho, lamenta-se a falta de indicação de fonte de pessoa responsável pela invasão criminosa de celulares de procuradores. Assim como a postura do site que não entrou em contacto antes da publicação, contrariando regra básica do jornalismo”, afirmou hoje Sérgio Moro, adiantando: “Quanto ao conteúdo das mensagens que me citam, não se vislumbra qualquer anormalidade ou direcionamento da atuação enquanto magistrado, apesar de terem sido retiradas de contexto e do sensacionalismo das matérias, que ignoram o gigantesco esquema de corrupção revelado pela Operação Lava Jato”.
Já a equipa do Ministério Público que investiga a Lava Jato diz que se trata de uma tentativa de pôr fim à investigação: “Nenhum pedido de esclarecimento ocorreu antes das publicações, o que surpreende e contraria as melhores práticas jornalísticas”, escrevem.
“Além disso, é digno de nota o viés tendencioso do conteúdo divulgado, o que é um indicativo que pode confirmar o objetivo original do ‘hacker’ [pirata informático] de, efetivamente, atacar a operação Lava Jato, aspeto reforçado pelo facto de as notícias estarem sendo divulgadas por site com nítida orientação ideológica”, concluem.
Contactado pelo Intercept Brasil, Lenio Streck, advogado, jurista, pós-doutor em Direito e professor de Direito Constitucional na Unisinos, no Rio Grande do Sul, explica que no Brasil “o juiz acaba sendo protagonista do processo, age de ofício [ou seja, sem ser provocado por uma das partes], busca provas”, o que “acaba fazendo com que o MP, também com postura inquisitiva, acabe encontrando um aliado estratégico no juiz”. “É um problema anterior, de que a Lava Jato é um sintoma”, conclui.