A serra-mãe, os penhascos, o rio azul…

Quando um dia nos encontrarmos, olharemos noutra dimensão para a ‘Serra-Mãe’, para os penhascos, para o mar a perder de vista.

Sebastião da Gama, um dos maiores vultos da poesia setubalense, elegeu a imponente Serra da Arrábida, designando-a como a ‘Serra-Mãe’. 

Dizia ele que a conhecia como ninguém e era lá que se refugiava, pois a vegetação, o silêncio, os recantos, os penhascos e a vista fantástica sobre o mar, Troia e Setúbal com o seu rio azul, convidavam à meditação. Quantos poemas não foram inspirados naquele cenário riquíssimo e mais tarde construídos a partir dali? 

Quantas pessoas não procuraram nela ‘abrigo’ e um caminho para os problemas das suas vidas? E quantos não encontraram paz quando a ela recorreram com o coração pesado e em momentos dramáticos? Tudo isto para recordar e homenagear alguém para quem a ‘Serra-Mãe’, com todos os seus elementos integrantes, foi igualmente uma referência na sua vida: Ricardo Jorge Seabra Gomes.

Nome sonante da cardiologia, conceituado professor, cientista de prestígio internacional, Seabra Gomes ficará para a história da cardiologia e da medicina em Portugal, não só por ter sido o responsável pela realização da primeira angioplastia coronária no nosso país em 1984, facto considerado pela Sociedade Portuguesa de Cardiologia como uma verdadeira revolução na medicina, mas essencialmente pelo testemunho que nos deixa e pelo exemplo que conseguiu transmitir aos mais novos e a todos aqueles que, tal como eu, tiveram o privilégio de com ele ter colaborado.

Além de colegas, éramos amigos. Os nossos pais, ambos médicos e da mesma geração, exerceram em Setúbal a sua atividade profissional. E Ricardo Seabra Gomes tinha sido aluno da minha mãe no Liceu de Setúbal. Quando me encontrava, a primeira pergunta que me fazia era: «Como está a tua mãe?». 

Aprendi com ele muito do que julgo saber na área da Cardiologia e assisti a algumas intervenções hospitalares por ele efetuadas. Lembro-me de muitas coisas que me ensinou, dos casos clínicos que discutimos, e de ele estar sempre disponível não só para mim como para os outros colegas e doentes. 

Tinha especial atenção com os mais novos, a quem recomendava insistentemente a necessidade de se manterem atualizados. «As pessoas têm de investir nelas próprias. Não é aceitável que falhem por falta de formação. Está nas vossas mãos lutar por ela. Procurem ser o melhor possível à custa do sacrifício». 

Se a vertente científica era para ele uma prioridade, a família, os amigos e a sua cidade não o eram menos. O lado poético da sua vida foi um aspeto particular que me marcou e recordo com saudade. «Tens ido a Setúbal?», perguntava-me muitas vezes, e depois continuava: «A Serra da Arrábida, os penhascos, o mar a perder de vista, Setúbal com o rio azul ao fundo, dão-me conforto à alma». 

Ouvia sensibilizado e em silêncio aquelas palavras – e, em sinal de concordância, abanava com a cabeça imaginando aquele cenário fascinante que eu bem conhecia. Aliás, as nossas conversas acabavam quase sempre com a imagem da ‘Serra-Mãe’ como pano de fundo.

Ricardo Seabra Gomes deixou-nos em dezembro passado, próximo do Natal, partindo para a morada eterna na Casa do Pai. Para trás, fica uma vida dedicada aos outros e um exemplo difícil de atingir. Recordo um homem bom, simples, discreto e bom amigo. Fiquei chocado com a sua partida, apesar de saber que passei a ter mais um intercessor no Céu. Partilhávamos as mesmas ideias e comungávamos dos mesmos ideais, defendendo a mesma Fé. Por isso, deixo aqui o meu testemunho e a minha sentida homenagem a quem, para mim, foi uma referência e um modelo que procuro seguir.

Meu caro amigo, peço-lhe que olhe por nós até um dia nos encontrarmos. Quando chegar esse momento, sentar-nos-emos à mesma mesa e conversaremos sobre muita coisa. Falaremos dos amigos, do liceu, da família, do exercício da nossa profissão, do que os nossos pais nos ensinaram e olharemos noutra dimensão para a ‘Serra-Mãe’, para os penhascos, para o mar a perder de vista, para Setúbal com o seu rio azul…