A teia dos interesses…

Há uma legislatura à beira do fim. A ‘geringonça’ permitiu a um derrotado governar com maior à-vontade do que se tivesse ganho por ‘poucochinho’. António Costa pode gabar-se do feito. Os portugueses não. 

Na mesma semana em que foram aprovadas no Parlamento três leis integrantes do ‘pacote da transparência’, com os votos do PS, um título do Expresso revelava que, dos autarcas constituídos arguidos nos últimos dois anos, a ‘maioria absoluta’ era socialista: 11 em 15. Triste sina. 

Já bastava ao PS ter no seu histórico Armando Vara, ex-governante e ex-banqueiro, agora preso em Évora, e José Sócrates, ex-líder e ex-primeiro-ministro, suspeito de não poucas malfeitorias, em vilegiatura na Ericeira a aguardar o desfecho da instrução do processo.

Desgraçadamente para a família socialista, chegou a vez dos autarcas para estragar a festa e apoquentar a fase de ‘aquecimento’ para as legislativas de outubro. Depois, em cúmulo, noutra frente espoletada por Berardo, a ‘amnésia seletiva’ de Vítor Constâncio. É muito azar. Houvesse oposição a sério e não faltaria. 

Claro que o mesmo Expresso já sabia – e apressava-se a sublinhá-lo – que a direção do PS estava «atenta» e iria agir para evitar a «contaminação nas listas de deputados com casos». Compreende-se. É uma indesejável vaga de gente com nome na praça a contas com a Justiça ou com histórias mal contadas. Não é bonito. 

A propensão de muitas autarquias para as atividades ‘paralelas’ ficou, aliás, demonstrada através do relatório anual do Conselho de Prevenção da Corrupção (CPC), divulgado no DN, pelo qual ficou a saber-se que, dos 604 casos de corrupção analisados ao longo de 2018, 48% ocorreram «em entidades dos universos da Administração Local».

Justifica-se, por isso, o afã legislativo, ao introduzir a novidade de uma ‘Entidade para a Transparência’, um anacronismo encostado ao Tribunal Constitucional – que, obviamente, já reclamou mais meios para cumprir essa incumbência, embora com a ‘geringonça’ no Governo e um Presidente constitucionalista tenha pouco que fazer. 

Para elaborar tão ‘transparente’ pacote, os deputados precisaram de quase três anos de trabalho – o que desmente quem insinuar que o Parlamento é um santuário de ‘faz-de-conta’. 

Na mesma linha de nobres intenções, o PAN – esse azougado partido devoto da causa dos animais – apostou em disputar o protagonismo mediático aos seus parceiros de esquerda ao apresentar uma higiénica ‘lei das beatas’, inquieto com as sete mil (!!!) que, segundo as suas contas, são atiradas diariamente à rua pelos impenitentes fumadores.

Claro que, ao contrário das ‘beatas’, o PAN já relativizará provavelmente a higiene urbana se esta for apenas violada pelos contributos regulares de milhares de animais de companhia que circulam pela cidade sem respeitarem passeios, relvados ou canteiros, em ativo alívio, livres de trelas ou enquanto os donos os passeiam… 

Como o Bloco se antecipou nas questões de ‘género’, o novel partido optou por alinhar noutras cruzadas e mimou-nos, até, com a singular proposta de proibir a colheita mecanizada de azeitonas à noite, para proteger as aves migratórias. 

O projeto deu entrada no Parlamento e propõe contraordenações a quem não cumprir com o estipulado e perturbar o sono das pobres aves. 

O impagável deputado André Silva justificou a iniciativa com as «consequências desastrosas nas populações» se aquelas aves mudarem de poiso. 

No extremo oposto deste estremecimento, a pretexto da proteção ambiental, nem o PAN nem os autarcas se incomodam com a ruidosa animação noturna que invadiu o coração de Lisboa, com consequências nefastas para os residentes, fartos de protestar contra os decibéis e a balda instalados junto de bares e discotecas. 

Inventam-se proibições absurdas, com tiques policiescos, enquanto se encolhe os ombros diante do agravamento da poluição sonora nos ‘bairros da moda’. 

Finalmente, para dar um ar da sua graça, até Ferro Rodrigues se lembrou de propor a consagração do 17 de Junho como o Dia Nacional em Memória das Vítimas dos Incêndios Florestais.

O gesto obteve uma rara unanimidade na câmara, enquanto Pedrógão e outros lugares devastados pelas chamas estão longe de cicatrizar as feridas, no meio de um deprimente ‘jogo de empurra’, paredes-meias com inconfessáveis aproveitamentos da desgraça alheia. 

Honrar a memória das vítimas da incúria do Estado – e da ineficiência da Proteção Civil – seria acelerar a reconstrução sem desvios e punir quem andou mal. Mas, como já se percebeu depois da inflação de inquéritos, a culpa ‘vai morrer solteira’. 

Pode diagnosticar-se a ‘crise da direita’ para encobrir a ‘crise da esquerda’. Mas não há decreto que molde o caráter, neutralizando a corrupção, nem solidariedade que liberte o país de arrivistas e de oportunistas, muitos deles a viverem à sombra de partidos e a soldo do Estado. 

Há uma legislatura à beira do fim. A ‘geringonça’ permitiu a um derrotado governar com maior à-vontade do que se tivesse ganho por ‘poucochinho’. António Costa pode gabar-se do feito. Os portugueses não. 

Nota em rodapé – A escolha do jornalista João Miguel Tavares para presidir, este ano, à comissão organizadora das comemorações do 10 de Junho, surpreendeu muita gente e causou não poucos engulhos. O discurso que proferiu em Portalegre, sua terra natal, não surpreendeu menos pela certeira irreverência. Já o discurso em Cabo Verde, ao defender o ensino do crioulo nas escolas portuguesas para facilitar a integração, a aprendizagem e o acesso dos afrodescendentes ao «elevador social», foi uma deriva escusada, que embaraçou dois Presidentes – o anfitrião e o visitante. 

E por que não ministrar o ensino noutros dialetos das antigas colónias, de onde são também oriundos muitos africanos que vivem e trabalham em Portugal? E por que não ensinar em bantu, forro, angolar ou tétum? E, mesmo em relação ao crioulo, qual deles? O das ilhas de Barlavento ou o das ilhas de Sotavento? E, para os alunos de ascendência guineense, será o crioulo falado em Bissau ou o de Cacheu, a norte? Como se vê, são inesgotáveis as hipóteses, se quisermos levar à risca as ideias plantadas no Mindelo. 

Esqueceu-se o orador de que a língua portuguesa foi o verdadeiro elo unificador entre tantas etnias angolanas, moçambicanas, guineenses, são-tomenses, timorenses ou cabo-verdianas. E foi pena. Dialetos identificados, só em Angola são 90. Bastava consultar a Wikipedia …