Svetlana Alexievich chamou-lhe «acontecimento-monstro». A escritora bielorrussa galardoada com o Nobel da Literatura em 2015, diz-nos que «numa só noite deslocámo-nos para um outro lugar da História». E explica que na noite de 26 de abril de 1986, depois de uma série de explosões ter destruído o reactor n.º 4 da Central Nuclear de Chernobyl, e com aquele que viria a revelar-se o maior desastre tecnológico do século XX, «demos o salto para uma nova realidade, e essa realidade ultrapassou não só o nosso conhecimento, mas também a nossa imaginação». Adianta que foi como se a ligação entre os tempos se rompesse… «O passado de repente revelou-se indefeso», e isto porque o «arquivo da humanidade não dispunha de chaves para abrir esta porta».
Esta prodigiosa cronista, em grande medida, criou-se a partir das exigências de explorar e expor metodicamente o terror e o absurdo inauditos que marcaram o século passado. Em Vozes de Chernobyl, Alexievich conta que nas entrevistas que fez nos dias que se seguiram ao desastre, muitas vezes as testemunhas tinham de debater-se com a dificuldade de encontrar palavras e descrever algo que nunca tinham visto ou vivido. Sem antecedentes, sem livros ou filmes que servissem de apoio, estava-se diante de algo que resistia a ser explicado. «As pessoas não encontravam palavras para as novas sensações e não encontravam sensações para as novas palavras, ainda não sabiam expressar-se, embora estivessem a mergulhar gradualmente na atmosfera de uma nova reflexão», lembra Alexievich.
Mas se há um efeito de abalo, e o risco é o de ser impossível trilhar um caminho verdadeiro reconstituindo os factos, a escritora apercebeu-se de que, se «os factos pura e simplesmente já não chegavam», isso não significava que a verdade estivesse para lá do nosso alcance. Por uma vez, na rede de vozes e preces que a bielorussa aprendeu a captar e entretecer, sentiu que o homem, sujeito a um tal efeito de abalo, estava a dizer-lhe novos textos… «De vez em quando, as vozes vinham como que atravessando um sonho ou um delírio, de um mundo paralelo. Ao lado de Chernobyl, todos começavam a filosofar. Tornavam-se filósofos. As igrejas encheram-se novamente de gente… Crentes e, ainda há pouco, ateus… Procuravam-se respostas que a física e a matemática não podiam dar. (…) O infinito deflagrou.» Alexievich conta que naqueles primeiros dias «os filósofos e escritores que se viram fora dos habituais eixos de cultura e tradição calaram-se» e «era mais interessante conversar com velhos camponeses do que com cientistas, funcionários do governo e militares com grandes platinas. Aqueles vivem sem Tolstói e Dostoiévski, sem a internet, mas a sua mente acomodou de alguma forma o novo cenário do mundo».
‘Soviéticos’ espantados com o nível de detalhe
Chernobyl, a mini-série de cinco episódios da HBO, conseguiu recentrar-nos na realidade, um feito notável se considerarmos que a sua estreia coincidiu com o desfecho de a Guerra dos Tronos, essa monumental saga de fantasia que transformou um canal de culto da televisão norte-americana num gigante dos serviços de subscrição a nível mundial. O enorme impacto que a série está a causar está relacionado, em parte, com o imenso escrúpulo por parte da equipa responsável pela série, sendo que Craig Mazin, o seu criador, guionista e produtor-executivo, passou dois anos e meio a investigar a fundo o desastre e as suas circunstâncias, bem como as causas e as consequências. Embora o nome de Alexievich inexplicavelmente não surja nos créditos, a dívida não apenas foi reconhecida por Mazin, como a escritora foi paga, e bem paga, para que alguns dos testemunhos que recolheu integrassem a narrativa. De resto, ela admitiu numa entrevista que, ao ser contactada por causa dos direitos, a primeira reacção que teve foi revirar os olhos, e pensar que viria aí mais outra dramatização desastrosa a partir daquele desastre, e a única coisa que alimentou em si o benefício da dúvida foi a avultada soma que lhe foi paga.
Se no seu livro, publicado em 1997, Alexievich condensou de forma pungente e lírica um legado de coragem, Mazin, um guionista de 48 anos de Brooklyn, admitiu que, no longo período de pesquisa a que se dedicou, Vozes de Chernobyl foi como o pilar sobre o qual assentou a sua percepção do drama humano dessas personagens secundárias que são os grandes desapossados da História. Numa entrevista à Vice, Mazin diz que leu tudo aquilo a que conseguiu deitar a mão, desde artigos de jornais científicos, relatórios governamentais, memórias escritas por cientistas soviéticos que estiveram em Chernobyl, além dos livros dos historiadores ocidentais. Também viu os documentários e filmes, mas assume que Alexievich trouxe essa outra dimensão ao desastre: «Costumamos ver a história pela perspectiva dos grandes protagonistas, e ela mostrou-nos a história do prisma das pessoas comuns». Ou seja, aquelas que são capazes de nos dar a sentir intimamente o desastre, na forma como põe fim aos nossos sonhos e aspirações, aninhando-se no mais profundo dos nossos receios.
Num artigo na New Yorker, a premiada autora e jornalista russa Masha Gessen não perdoa à série certos desvios, atalhos, erros de percepção e mesmo o tipo de perdas com as quais toda a tradução tem de viver, mas se acredita que, em muitos aspectos, esta ajudou a aprofundar distorções no retrato das relações de poder no regime soviético, não disputa evidentes méritos ao nível da recriação do ambiente e da atmosfera. Gessen admite que ela, como tantas outras pessoas que nasceram nas antigas repúblicas soviéticas, ficou espantada com o nível de detalhe com que foi reproduzida a cultura material, tanto nos cenários, objectos e figurinos, como na atitude das personagens. E diz que nenhuma outra produção televisiva ou cinematográfica ocidental conseguiu ir tão fundo nessa caracterização. Mas a jornalista sublinha que a resignação era o traço que definia a atitude geral da vida soviética. Ora, segundo Gessen, a resignação é algo um tanto depressivo, não serve como base para um espectáculo de telegenia, e os criadores de Chernobyl preferiram uma versão alternativa, «imaginando situações de confronto onde este era impensável». Por essa razão, Gessen foi duríssima na sua sentença, afirmando que eles cruzaram a linha daquilo que seria conjurar uma ficção no sentido de revelar a verdade, e o que fizeram foi contar outra mentira.
Craig Mazin fez questão de acompanhar a emissão de cada um dos episódios através de um podcast em que elevou a um outro nível o grau de transparência no trabalho de dramatização que realizou, comentando e justificando cada decisão que foi tomada pela sua equipa, e na entrevista que deu à Vice, mostrou-se bem consciente dos riscos que corria, e da actualidade de muitas das questões que o enredo vai levantando. «No cerne desta história está uma pergunta: o que acontece quando nos desconectamos da verdade?», disse Mazin. «E o sistema soviético era, basicamente, um monumento à mentira útil. Eles elevaram a mentira a uma arte: mentiam uns aos outros, mentiam aos superiores, mentiam aos subalternos e faziam-no por um instinto de sobrevivência. Ao fim e ao cabo, isso tornou-se numa coisa com que todos já contavam e a própria ideia de verdade foi degradada. Quando a verdade ameaçava emergir, era atacada. Portanto, achei que a pior maneira possível de contar esta história seria contribuir para o problema com demasiada ficção ou dramatização.»
Mazin revela ainda que o realizador, Johan Renck, não foi menos rigoroso na direcção dos actores, e trabalhou com eles para que, tanto no aspecto como no comportamento, fossem fiéis a uma reflexão física do estupor soviético. «Há ali um peso específico. A experiência daquelas pessoas, em 1986, era a de quase um século de dificuldades, miséria, guerra e fome, e isso está-lhes nos ossos», adianta Mazin.
A série começou por ser recebida com um entusiasmo e até fervor não só junto da crítica como das audiências, e com apenas três episódios exibidos já estava no cimo das listas das séries mais bem cotadas nos rankings dos sites da especialidade. No New York Times, Henry Fountain, colaborar especializada em temas científicos, e alguém que participou numa expedição à central nuclear de Chernobyl em 2014, reconhece que se há muito nos cinco episódios da série que é inventado, se muitas das cenas fogem à reconstituição, e a ficção domina a narrativa, nada disso realmente importa porque, no fim, o retrato daquele acontecimento é bastante fiel à realidade. É claro que a tensão dramática precisa de saltar a grande embrulhada e o pânico que se gerou nos dias e meses que se seguiram ao desastre. Um período de confusão e crise agravado pelos jogos de fumo e espelhos de um regime treinado para produzir um labirinto de ilusões, e apenas sete meses depois os restos letais do reactor foram cobertos pelo sarcófago de aço e betão que pôs fim à contaminação radioactiva que se estendeu a três quartos da Europa.
Kremlin responde com sabotagem
Depois de inicialmente mesmo na comunicação social russa as primeiras reacções terem sido bastante positivas, a máquina do Kremlin já pôs em marcha um plano de contenção, com vista a minorar o impacto na imagem da União Soviética, sendo que a Rússia de hoje, não evoluiu assim tanto, estando nas mãos de uma máfia de grandes oligarcas, e, entretanto, o estação estatal já avançou que irá produzir a sua própria série em resposta à da HBO. Esta irá esforçar-se por retratar o patriotismo russo, buscando factos alternativos, e investindo na tese de que houve um agente da CIA infiltrado na central nuclear e que, de alguma maneira, o desastre no reactor 4 resultou de um acto de sabotagem dos norte-americanos.
Outro sinal perverso do imenso impacto da série está ligado a, numa altura em que o verão se aproxima, se ter registado um aumento vertiginoso no turismo que tem a central nuclear de Chernobyl como destino. Segundo uma notícia da Reauters, houve um aumento de mais de 40% nas marcações para os autocarros com guia que, ao longo de um dia, e por pouco menos de 100 euros, levam os passageiros a conhecer o cenário do maior desastre nuclear da História. A série terminou a 3 de junho e, desde então, com o aumento do turismo naquela zona da Ucrânia, as redes sociais foram invadidas por selfies tiradas nas imediações da central nuclear. Isto levou Mazin a pedir, no Twitter, às pessoas que visitem a zona para não esquecerem que aquele foi o cenário de uma tragédia terrível e a comportarem-se com respeito para com «todos os que sofreram e se sacrificaram».
Se tem havido um forte debate sobre a série e os seus muitos méritos ou falhas, se há uma coisa que terá certamente deixado os criadores orgulhosos é o facto de Svetlana Alexievich ter assumido que ficou muito impressionada com o resultado. Se o seu livro foi publicado uma década depois do desastre, como Masha Gessen frisava, mesmo depois deste tão valioso monumento à coragem e ao sofrimento da população soviética, o «vácuo histórico» persistiu. Até hoje ainda se debate o verdadeiro número de vítimas mortais, com estimativas que variam entre as centenas e as dezenas de milhares, mas foi o próprio Gorbatchov quem assumiu que o desastre foi o acontecimento que desencadeou a sucessão que levaria ao fim da União Soviética em 1991.
Para Alexievich a série vem agora alterar completamente a percepção que as pessoas tinham do desastre, e defende que mesmo para os seus conterrâneos, o que este relato fez foi abrir-lhes os olhos para a verdadeira escala da tragédia. E a escritora bielorrussa sublinha que não se trata apenas de um documento importante para compreender o passado, mas que ajuda a equacionar o presente e a tragédia que nos aguarda. «Não é por acaso que tantos jovens se sentiram tocados por esta série. Dizem que assistiram a ela reunidos em clubes e que a discutiram. Hoje, eles não são como a geração dos pais deles. Para estes jovens, há um risco muito real que se coloca por questões ambientais, e particularmente no Ocidente, é sobre essa lente que estão a perspectivar as ameaças que vão marcar as suas vidas.»