Como o ‘Vaza-Jato’ terá desvendado um óbvio Rosebud

Permitam que comece com três apontamentos pessoais, e só depois avance para o tema do título, que pode parecer misterioso, associando dois vultos lendários, Moro e Welles, mas nem tanto, já vão ver. 

Primeiro apontamento: estou por estes dias a convalescer de uma cirurgia, e vejo muito mal e só leio a espaços e muito devagar – e, já agora, por favor, não posso nem rir nem chorar. Donde, admito ter lido mal – embora creia que não – sobre certa estupefação e alguma (pouca, e nalguns casos mal encenada) revolta pelas alegadas revelações do chamado ‘Vaza-Jato’, dando conta de excesso de proximidade entre juiz e MP, ou mesmo cumplicidade, e de intromissão daquele no trabalho deste. Segundo apontamento: lamento qualquer vaza-o-que-quer-que-seja, isto é, intromissões abusivas nas comunicações entre pessoas, e não distingo ‘bons e maus’, nem lamento umas, calo outras e elogio as que me agradam ou convêm (by the way, ainda não ouvi alguns cultores da pirataria louvar quem ‘hackeou’ a ‘força-tarefa’, o que suponho que deva ser da minha convalescença ou do descanso alheio nos feriados…, mas ainda estou à espera, e quem sabe também de alguma generosa fundação que apareça a terreiro). 

Terceiro e último apontamento: não me façam rir nem chorar, por favor, muito menos com surpresas ou revoltas (encenadas ou não) sobre o facto de, afinal, poder não ter havido entre juiz e procuradores aquela saudável e higiénica distância que deve haver entre quem promove a ação penal e quem garante liberdades e decide. Ah, nunca tinham suposto que – independentemente da materialidade dos casos, que para aqui não interessa – poderia haver alguma coisa de menos, digamos, e processualmente falando, angélico e estelar no chamado feixe operático de processos que leva o nome de ‘Lava -Jato’?! Não me digam, santa ou falsa ingenuidade (venha o Diabo, e escolha). Faz-me lembrar um desprevenido cinéfilo que, nos dias de hoje, ainda espere pelo fim do filme de Orson Welles para saber que Rosebud, afinal, era o trenó, metáfora do momento seminal em que a criança foi ou imaginou vir a ser feliz. Ora, para alguém com um certo perfil e num processo como este, estava-se mesmo a ver que Rosebud era aquele momento em que o menino, que veio a ser juiz, queria afinal ser polícia (ou político). O resto serão acidentes ou episódios de percurso e uma imensa e vazia Xanadu. 

Com o devido respeito, que é muito, bastava ter lido com atenção algumas decisões do processo, em especial aquelas partes onde a lei exige que as ‘delações premiadas’ sejam corroboradas por outros meios de prova; ou bastava ter estado atento a certas dinâmicas processuais, comportamentos ou até mesmo às reveladoras palavras e à linguagem corporal; ou bastava ler um pouco e pensar duas ou três vezes sobre o texto e o subtexto de ‘delações premiadas’ (essa quintessência da equidade processual por contrato). Isto para já não falar em atentar, mesmo que por breves momentos, num sistema processual penal em que o mesmo juiz que intervém nas fases anteriores ao julgamento é o juiz que julga (magistral imparcialidade, saudável liberdade intelectual, belo desprendimento). 

Et cetera, mas sempre um et cetera que exige estar atento e vigilante, e não apenas entretido, divertido e até um tudo-nada vingativo com o folclore do dia-a-dia e os episódios da ascensão e queda dos Távoras do século XXI. Não era preciso (e é sempre muito reprovável) ‘hackear’ comunicações, verdadeiras ou falsas ou assim-assim. Mas não me façam rir nem chorar, se faz favor. E também não finjam demasiada revolta ou mesmo mero incómodo, porque fico muito na dúvida se, bem vistas as coisas, a maioria (cá no nosso burgo) não aprecia bem mais juízes que em meninos – Rosebud, Rosebud – queriam ser polícias do que, afinal, juízes que em grandes querem garantir que, entre o mais, o moleiro tinha razões para com galhardia enfrentar a prepotência do kaiser (e essa é que é a verdadeira e única força e a indeclinável soberania de um juiz, sejam quem forem o moleiro ou o kaiser, e independentemente das suas imagens, e já agora da do juiz). Com o que leio e vejo (nestes dias, menos e mal, e em certo sentido ainda bem), e com as pressões e/ou campanhas que por aí às vezes se surpreendem, tenho cá as minhas dúvidas. Mas isso sou eu, que talvez veja demasiados filmes. Et pour cause.