Uma prática primitiva? Um símbolo distintivo dos marginais? Uma moda contemporânea? As tatuagens podem ser tudo isso. As suas origens perdem-se na noite dos tempos, mas a primeira referência escrita inequívoca remonta a Marco Polo, o viajante veneziano que no final do século XIII viajou pela Ásia e foi recebido pelo Kublai Khan, o imperador mongol, em Pequim. Sobre a cidade de Quanzhou, Marco Polo escreveu: «Muitos vêm para cá da parte superior da Índia para terem os seus corpos pintados com uma agulha […], havendo muitos adeptos deste ofício na cidade».
Quatrocentos anos mais tarde, seria outro explorador e viajante a dar um impulso fulcral a esta prática. Em 1774, no regresso da sua viagem pelo Pacífico, o capitão da Marinha Real Britânica James Cook trouxe consigo da ilha polinésia de Huahine um nativo tatuado que faria sensação na Europa. Durante dois anos, Omai abrilhantou as festas da alta sociedade inglesa, foi apresentado ao Rei Jorge III e até teve direito a um retrato pintado por Joshua Reynolds. O artista favorito da aristocracia britânica representou-o com uma espécie de túnica de tons claros e com um turbante na cabeça. Observando o quadro com atenção, é possível ver as tatuagens nas costas da mão esquerda do retratado.
Manifestações artísticas características de povos distantes e exóticos, as tatuagens eram naturalmente associadas às viagens longas. Tornaram-se apanágio dos marinheiros e, a pouco e pouco, também dos marginais. Evidentemente, não podiam deixar de ter conotações negativas, dado serem populares entre os povos menos evoluídos. No final do século XIX, o barão de Haussman, o ‘inventor’ dos boulevards e responsável pelo urbanismo de Paris sob Napoleão III, opunha-se a que se pintasse o interior das igrejas com base num argumento curioso: «Faz-me lembrar as tatuagens que os povos bárbaros usam em vez de roupas para disfarçarem a nudez».
Também em Portugal, no final do século XIX e início do século XX as tatuagens começaram a tornar-se cada vez mais comuns entre as camadas populares. E eram mesmo consideradas uma marca distintiva de quem se movimentava nos meios marginais. Nas palavras do médico e investigador Carlos Branco Ferreyra, que estudou a coleção do Instituto de Medicina Legal, acreditava-se que «se a tatuagem era um processo doloroso um indivíduo só se tatuava porque não tinha empatia pelo seu corpo. E se não tinha empatia pelo seu corpo, muito menos tinha empatia pelo corpo do outro, pelo sofrimento do outro e portanto tinha uma predisposição para cometer crimes. Achava-se que havia uma relação muito estreita entre a tatuagem, o tatuado e o criminoso. Era considerado um comportamento desviante».
Teoria científica ou preconceito, o facto é que as tatuagens e o mundo do crime têm andado frequentemente de mãos dadas. O filme de David Cronenberg de 2007 Promessas Perigosas mostra como, entre os vori da máfia russa, a pele tatuada fala pelo passado de quem a ostenta.
‘Nenhuma parte do corpo é considerada inacessível’
Mas o que significam afinal estes desenhos? Federico Varese, professor de criminologia em Oxford que estudou este fenómeno, descodifica em Mafia Life (ed. Desassossego) o sistema de códigos das tatuagens no seio da máfia russa.
«Após a cerimónia [de ‘batismo’], o novo vor [membro da organização criminosa] pode, finalmente, mandar tatuar a marca do seu novo estatuto no seu corpo. É um processo brutal, em que o desenho é aplicado na pele com a ajuda de uma agulha e de uma lâmina de barbear. As escolhas mais frequentes recaem sobre as imagens religiosas. O crucifixo é a marca distintiva de um chefe com autoridade, enquanto o número de cúpulas de igrejas indica o número de penas cumpridas. Para os vori, cumprir pena equivale a cumprir um dever religioso. A imagem da Virgem e o Menino, retirada da tradição iconográfica da Igreja Ortodoxa, significa ‘a minha consciência perante os meus amigos está limpa’ e ‘nunca trairei’. A figura isolada da Virgem quer dizer ‘a prisão é a minha casa’. Outras imagens de um vor legítimo são o Rei de Paus e o Rei de Espadas assim como caveiras e asas (em particular, as asas de águia e, por vezes, de morcego) Estrelas, caveiras e coroas também são indicativas de um vor respeitável, embora devam ser acompanhadas de imagens religiosas e de animais ferozes».
A coragem, o estatuto, a ferocidade – todas elas são qualidades associadas às tatuagens. Mas estas assumem-se ainda como um misto entre insígnias militares, medalhas de guerra e testemunhos da experiência de vida.
«Todos os feitos e fracassos, promoções e despromoções, as estadas na prisão e transferências são meticulosamente gravados na sua pele», explica Varese no seu livro. «Nenhuma parte do corpo é considerada inacessível, pelo que chegam a ser inscritas imagens nas pálpebras e no pénis. Uma colher de metal é inserida debaixo da pálpebra, para evitar que a agulha toque no olho».Isto, porém, não é ainda o mais impressionante.
«Se os vori descobrem que um recluso ostenta tatuagens às quais não tem direito, é de esperar a aplicação de um castigo cruel que poderá passar pela morte. Se o impostor tiver tatuado um anel no seu dedo, por exemplo, este é amputado. Em certos casos, a tatuagem é arrancada à força juntamente com a pele, mas a vida do sujeito em causa poderá ser poupada. Os detidos de estatuto elevado (conhecidos por ‘autoridades criminosas’) costumam perguntar aos novos reclusos: ‘As tuas tatuagens falam por ti?’. Se estas não refletirem a posição do criminoso, ele será obrigado a removê-las com a ajuda de uma faca, uma lixa, um pedaço de vidro ou de tijolo».
‘O grande teste de resistência à dor’
Entre os membros da Yakuza, a máfia japonesa, as tatuagens também são populares. Normalmente requerem autorização do chefe. «Recebem-nas entre o final da adolescência e os vinte e poucos anos no momento em que se tornam membros ou quando ainda ocupam um posto nos escalões mais baixos da hierarquia da organização», refere Varese. «Segundo David Stark [antropólogo autor de uma tese de doutoramento sobre a Yakuza], em 1978 […] o preço de uma tatuagem integral das costas, da nuca às nádegas, ascendia aos 4 mil dólares e demorava 100 horas a realizar. Atualmente, o mesmo trabalho pode custar até 20 mil dólares. […] A maioria dos membros começa por fazer uma tatuagem no ombro, a qual cobre metade do tórax superior, uma omoplata e o bicípite correspondente. Posteriormente, tatuam o outro ombro. Por fim, segundo descreve Stark, é acrescentada uma imagem nas costas que cobre toda a parte superior do corpo. Quando esta fica concluída, fazem uma tatuagem no estômago. Tal como entre os vori [os membros da máfia russa], as tatuagens nas pálpebras e no pénis são consideradas o grande teste de resistência à dor e conferem enorme prestígio».
E donde vêm os motivos? Embora dispensemos pouca atenção ao valor artístico destes desenhos, eles até podem ter uma origem erudita, como explica o autor de Mafia Life.
«As tatuagens dos membros da Yakuza são trabalhadas à mão. Uma grande parte desconhece as origens ou pormenores das figuras lendárias desenhadas na sua pele: apenas lhes interessa ter uma imagem chamativa. Muitas das tatuagens são escolhidas a partir de cópias de gravuras de Utagawa Kunyoshi, um artista japonês do século XIX, feitas pelo tatuador, entre as quais se destacam a imagem de um conhecido monge budista embriagado, a figura de um dos primeiros Yakuza travando um disputado duelo com um dragão, um demónio que aterroriza e come crianças, um crisântemo em flor, que representa a beleza da juventude, e um dragão ascendente (ou descendente)».
Cúpulas de igrejas, imagens da Virgem, Reis de Paus e de Espadas, dragões, demónios, crisântemos e monges embriagados. Já sabe: se algum dia vir estes desenhos tatuados na pele de um desconhecido, tenha medo, tenha muito medo. É sinal de que, provavelmente, está metido em maus lençóis.