Há cerca de um ano e meio, Philippe Mendes recebeu na sua galeria parisiense uma senhora que lhe trouxe para peritagem uma pintura intrigante. A proprietária, também residente em Paris, tinha acabado de visitar uma grande exposição dedicada ao pintor romântico Eugène Delacroix (1798-1863) no Museu do Louvre e descobrira semelhanças óbvias entre uma das obras expostas e um quadro que tinha há décadas pendurado em sua casa.
O quadro, que representa duas mulheres (aparentemente a patroa e a criada) vestidas com trajes locais no interior de uma residência, foi feito na sequência de uma missão diplomática enviada pelo Rei Luís Filipe a Marrocos, e liderada pelo político e diplomata Conde de Mornay, em 1832. Como pintor oficial da delegação, Delacroix estava incumbido de documentar a expedição e de pintar a assinatura do tratado de paz enviado pelo Rei francês ao sultão Moulay Abd al-Rahman.
No regresso de Marrocos, onde o pintor preencheu páginas e páginas do seu bloco de notas com esboços e aguarelas que revelavam a descoberta de um novo mundo de luz e de cor, a comitiva parou em Argel. Ali, Delacroix teve acesso aos aposentos privados de um dignitário turco e desenhou as suas mulheres, que estariam na base da pintura que apresentou no Salon de 1834 e que se tornaria um ícone da arte francesa do século XIX. Como nos explica Philippe Mendes, o quadro agora descoberto é uma primeira versão dessa obra emblemática.
A proprietária da pintura já suspeitava do que pudesse ter em casa?
Isto passou-se na altura em que houve a grande exposição do Delacroix no Museu do Louvre, há mais ou menos dois anos. Foi quando viu o quadro do Louvre que a senhora relacionou com o dela.
Era sua cliente?
Não, veio ter comigo porque lhe disseram que eu podia ser a pessoa adequada para ver e estudar o quadro.
E o que achou quando o viu?
Tive dúvidas. O quadro do Louvre tem quatro mulheres, o dela só tinha duas. Ainda por cima estava muito sujo, muito amarelo, com o verniz muito escuro. Ao mesmo tempo achei que tinha um toque que só podia ser dele [Delacroix], foi por isso que pedi para limpar o quadro. Quando se limpou apareceram as cores dele, e a partir daí começámos a investigação.
Como é esse processo de autenticação de uma obra destas? Quais são os passos a dar?
Para alguns artistas é mais complicado do que para outros. No caso do Delacroix é mesmo complicado porque ao princípio havia vários conservadores ou historiadores da arte que tinham trabalhado sobre Delacroix, mas nenhum só sobre Delacroix. Tínhamos de falar com essas pessoas todas e de as convencer. Quando limpei o quadro e saiu aquilo tudo, a maneira como estava pintado, aquelas cores fantásticas que só ele utilizava, tudo isso convenceu-me de que era um Delacroix. Mas depois era preciso convencer cada um desses especialistas. Vieram um por um, e todos disseram: ‘Parece completamente, mas como é que podemos dizer que é um Femmes d’Alger?’. É um quadro mítico, icónico da cultura francesa, fazer essa afirmação é uma grande responsabilidade. A partir daí pensei que tinha de fazer um trabalho ainda mais fundo. Começámos a fazer investigação histórica, nos arquivos, pesquisas científicas, de imagem, químicas e de outro tipo, e encontrámos desenhos noutros museus que ainda não tinham sido bem estudados. Por exemplo, no museu de Bremen existe um desenho que vem confirmar completamente o nosso quadro, uma aguarela que representa só estas duas mulheres, a criada e a mulher deitada. Essa aguarela confirmou que ele pensou ao princípio ter só as duas, depois é que acrescentou as outras.
Com essas descobertas a certeza ia-se tornando mais forte?
De cada vex que encontrávamos dados suplementares que vinham confirmar isso tudo voltava a ligar para cada especialista, que vinha cá de novo e ficava cada vez mais convencido. O que veio confirmar de maneira absoluta a paternidade do quadro foi que descobrimos a proveniência toda. Fomos fazer a pesquisa nos arquivos da casa de leilões que fez o leilão da coleção do Conde de Mornay em 1850 e encontrámos o catálogo, onde está escrito: ‘Número 118: Femmes d’Alger dans leur Appartement’. O nosso quadro por trás tem o n.º 118. Isso confirma não só que é o Delacroix como que o quadro vem da coleção Mornay.
Já alguma vez tinha feito alguma descoberta parecida ou este momento é uma espécie de jackpot na vida de um galerista?
Já fiz descobertas muito boas de quadros que tinham desaparecido, de muito bom nível. Mas com estes valores é o primeiro.
Imagino que, no caso desta pintura, ser ou não ser de Delacroix faça toda a diferença…
Sim. Faz toda a diferença ser ou não ser de Delacroix – e este é. Depois, podia ser um Delacroix mas não ser este quadro. Os dois quadros mais importantes de Delacroix são A Liberdade Conduzindo o Povo e as Mulheres de Argel. É com este quadro que começa a modernidade na pintura francesa do século XIX. É com este quadro que se representa pela primeira vez o mundo oriental de maneira não imaginária, mais realista. É por isso que o Picasso adorou este quadro. É um quadro mítico e isso acrescenta muito ao valor. E depois tem um tema muito humano, uma mulher branca, outra mulher preta, uma deitada, a outra em movimento, é uma criada mas que tem uma grande liberdade – e isso interessa muito aos museus, e aos museus americanos ainda mais. E depois a proveniência do conde de Mornay faz a diferença toda.
Confirma que o quadro foi comprado por um museu americano?
Vai certamente ser comprado por um museu americano. Estamos neste momento em conversações com três instituições, a negociação está muito avançada com uma delas, que pediu para não divulgar o nome nem o valor. Vêm para a semana para assinar os contratos de venda.
A confirmação de que se trata de um Delacroix deve exponenciar o valor de uma pintura destas. Por quanto seria vendido se não fosse Delacroix?
Só que é Delacroix… É fantástico, de uma qualidade tão boa que só pode ser de um grande pintor. Se não, teria de ser de um grande mestre desconhecido e no século XIX isso já não existe. Mas claramente se não fosse de Delacroix estaríamos muito, muito longe do valor que eu estou a pedir.
Esta descoberta agitou o meio cultural francês?
Isto começou ontem. A galeria estava cheiíssima e hoje já passou aqui muita gente. Descobertas a este nível, para a pintura francesa, não há já há muitos anos. E claramente que tem uma importância muito grande. É engraçado que este ano vai sair o Caravaggio. A França continua a ser uma fonte muito importante de descobertas essenciais a nível de arte. Temos duas coisas: por razões históricas, de colecionismo, temos ainda muitas coisas em casas de privados que ainda estão para ser descobertas; e temos outra coisa, recursos humanos para isso, os galeristas da nova geração e os conservadores dos museus têm uma formação muito forte. É um país muito rico mas soube apostar na cultura e na formação, e por isso tem sempre a porta aberta para grandes descobertas.
O Philippe estudou em Paris.
Na Escola do Louvre e na Sorbonne.
Imagino que este seja um meio muito competitivo. Foi fácil entrar no meio, abrir uma galeria e conseguir vingar?
Eu tive um percurso um pouco diferente, porque antes de abrir a minha galeria trabalhei no museu do Louvre alguns anos, quando abri a galeria já tinha os contactos institucionais e foi mais fácil. Mas quando cheguei também havia quem se interrogasse: ‘Quem é este galerista novo que apareceu aqui?’. Foi preciso lutar para isso.