«O Ocidente não tem sido razoável. Quer democracias funcionais instantâneas».
Ismael Serageldin
Diretor da biblioteca de Alexandria
Vivemos tempos desafiantes na política europeia, com repercussões nos vários países. Desafios decorrentes de muitos fatores endógenos e exógenos à democracia europeia e aos sistemas políticos nacionais.
E também decorrentes da complexidade não só de muitos problemas mas também do aumento alucinante do grau de exigência dos cidadãos. E da velocidade estonteante da intermediação mediática e da (des)informação dos media tradicionais e das redes sociais.
Os media já não são o quarto poder. São o primeiro. E infelizmente são cada vez mais um ‘equívoco’, em virtude das expectativas que criam e de algumas ‘mentiras’ que divulgam até à exaustão. As mentiras que encantam suplantam as verdades que incomodam.
Dir-se-á que este é um risco que tem de se correr pela qualidade da democracia e por valores como a liberdade de opinião e de informação. Que seja assim. Em nome do muito que alguns de nós têm defendido e praticado durante anos para preservar o Estado de direito democrático: a separação de poderes, os direitos, liberdades e garantias, a integridade e a transparência, a ética e a moral públicas e republicanas.
Mas é preciso que estes valores sejam temperados com outros, capazes de equilibrar as ‘arruaças mediáticas’, os ‘massacres’ nas redes sociais, o respeito pelo bom nome, as fugas ao segredo de Justiça, a integridade e a reserva pessoal, familiar e profissional. De tudo isto temos hoje vários tipos de vítimas. Muitas que não são mais do que gente ‘esmagada’ e esbulhada da sua dignidade, injustamente e em nome de vinganças, invejas e ajustes pessoais, políticos, sociais, etc.
Será típico dos tempos que vivemos. Tempos em que, das ‘coisas mais pequenas’ às ‘coisas maiores’, todos queremos e exigimos democracias funcionais instantâneas. No sentido lato, democracias que – funcional, orgânica e materialmente -, de forma instantânea, se concretizem em relação a quase tudo.
Trata-se de uma reclamação desafiante e justa.
Mas que, mesmo com a maturidade de muitas instituições, é difícil atingir com a rapidez que queremos e na amplitude que gostaríamos.
Até porque, nas atuais sociedades contemporâneas, inclusivas e plurais, as exigências são muito grandes. A partidocracia (europeia e nacional) tem andado nas últimas décadas a prometer e a vender mais direitos do que a chamar a atenção para os deveres. Exemplos não faltam. Com a queda do Muro de Berlim, desinvestiu-se nos orçamentos da Defesa e apostou-se no Estado Social europeu e nacional de cada país.
Quem estiver de parte a ouvir-nos, dirá que estamos desencantados, zangados e que tudo piora a cada dia. E, no entanto, a maioria da população do mundo vive felizmente cada vez com mais liberdade e começa a ter mais acesso à saúde e à educação.
Mas a nossa Europa, dependente do chapéu tecnológico e militar dos Estados Unidos da América de Trump, comete erros impensáveis há uns anos atrás. Desde o laicismo radical até à desastrosa política de imigração, asilo e refugiados, cedendo aos racistas, xenófobos e populistas de extrema-direita e, até, alguma direita europeia. Esquecendo-se de que precisamos de mais imigração e de mais Europa nestas matérias.
Até esquecemos que já nasceram um milhão de bebés filhos de casais que se conheceram no programa Erasmus, das fronteiras e espaços abertos da integração europeia. Aliás, a este propósito, parece não querermos entender que a geração Erasmus já tem sucessora – que é a ‘geração easyjet’, que não quer uma Europa fechada. Antes pelo contrário: viajar e constituir família, para muitos, é hoje algo normal fora de portas.
Nas últimas semanas não tem sido fácil ultrapassar o impasse institucional na União Europeia.
Quem assiste a tudo com um farto sorriso são os populistas e os não democratas, porque não precisam de ganhar as eleições europeias para fazerem os piores estragos possíveis ao projeto europeu.
Não vivemos tempos fáceis. Vivemos tempos ocupados com discussões estéreis, em salões bonitos, com declarações pomposas, muitas vezes gerais e abstratas. As maiorias descontentes vêem-se e sentem-se cada vez mais como minorias esquecidas e esmagadas (em relação aos costumes, às garantias e à segurança económica e social) – e estão à beira da revolta.
Existem cada vez mais ‘tribos’ sociais que se manifestam de várias formas, algo que nunca antes lhes tinha passado pela cabeça. Que estão cansadas de algumas das discussões e dos debates à volta da sociedade aberta, etc. Que estão cada vez mais desconfiadas das diferenças entre as democracias europeias e nacionais de produção e as democracias europeias e nacionais de distribuição.
Recentemente, em discreto mas sólido grupo de reflexão de gente boa, cosmopolita, responsável, quase todos os participantes assumiram que os tempos exigem democracias funcionais instantâneas. O problema é que, com tudo isto, o alheamento de muitas pessoas válidas vai aumentar e será cada vez maior e definitivo. Qualquer dia muito dificilmente se conseguirá fazer o recrutamento adequado às necessidades dos nossos tempos. Não só para a vida política, mas até e sobretudo para as instituições associativas e afins.