Fui, sou e serei sempre um jornalista do papel. Podem mandar-me jornais através de e-mails ou de aplicações de telefone, inteiros e perfeitamente legíveis, mas não resisto ao toque do papel, aquele estalar confortável das folhas, ao prazer de comprar os exemplares nos quiosques e nas papelarias, agora que já não há ardinas pelas ruas de Lisboa, de saco ao ombro, arriscando a vida na vertigem dos semáforos, os gritos inconfundíveis – «Olhóóó Lesboa!!! Olhóóó P’laaaariiii!!!» -, uma saudade magoada de aprender a dobrar, na praia, contra o vento, os broadsheets em quatro, quase como livros, uma técnica apurada que, depois, se revoltava contra os continuados, os textos deslizando pela primeira página (continua na página 9; continua na página 20), recordo o tempo em que a velh’ A Bola obrigava a maravilhas de x-ato na lisura da preparação dos linótipos, o Paiva com a sua barriga grande a tirar medidas com um fio, cada nó à distância certa do seguinte e, volta e meia, se mudava o continuado de página depois da que indicava o número da continuação ter viajado para a gráfica ao cuidado meio descuidado do Neres ou do Rodrigues, e o pobre do leitor que levava com o erro ter de investigar o jornal à procura do final da peça no dia seguinte.
Há que dizer que, pelo caminho, a fotografia sofria. Como até a publicidade sofreu antes de tomar em mãos a vida de todos os jornais. Agora deixam-se de fora notícias e crónicas para que os anúncios ocupem o seu trono imperial. Dantes, saíam para que a reportagem se espalhasse. As fotografias, essas, eram cortadas a eito para desespero dos fotógrafos. A palavra erguia-se acima da imagem. A palavra punha e dispunha. E, no entanto, tive a alegria de trabalhar com fotógrafos formidandos. E agradeço-lhes, do mais fundo que posso.
Há uns anos fui a uma exposição, ali em Alcântara. Exposição do Eduardo Gageiro. Como diria Otto Lara de Resende: «Uma figura! Uma figura!». Com ele fiz, aqui e ali, sortidas para entrevistas, reportagens num Século que descera do Bairro Alto para se instalar na Rua Augusta. Apanhávamos o carro que ainda se estacionava no centro da Praça do Comércio e eu calava-me na esperança de o ouvir falar, porque o Eduardo tem um Portugal inteiro dentro dele, um mundo inteiro dentro dele, vidas inteiras dentro dele e, ainda por cima, a generosidade de se explicar numa serenidade a preto e branco que fascina pelos gestos, pelas expressões, pelos olhares, pelas luzes e pelas sombras. Essa exposição do Gageiro deu um livro, Olhares, que guardo com o carinho da sua dedicatória.
Quando chega o momento de escolher a ilustração de uma crónica, ao género desta, procura-se algo que fixe o olhar do leitor. Eduardo Gageiro, Eusébio, Simões. Tenho-os todos como amigos, mesmo que um tenha partido para aquela planície eterna onde mora a nostalgia, mesmo que há muito, muito tempo não encontre por aí o Eduardo, talvez esteja lá na sua Sacavém onde cresceu e começou a trabalhar na Fábrica de Louça, sempre de olhar afiado e atento como lâminas recortando raios de sol na planura dos seus chiaroscuros.
A fotografia apaixona-me embora não seja capaz de passar horas debruçado em conversas sobre máquinas e técnicas, deixo isso para as tertúlias do Fernando Soromenho e do Luís Sá, em Alcácer do Sal, pelas horas de jantar tardias à medida que o Porto Santana vai ficando vazio na expectativa de nova enchente para o almoço que se segue. Andei pelo mundo, por todo o mundo, de Ougadougou, no Burkina Faso, a Xigatze, no Tibete, com uma velha Nikon ao ombro e três objetivas no saco com rolos, sempre com rolos, fui do papel, sou do papel, serei sempre do papel, não me entendo com a digitalização, com a metralha das imagens consecutivas, quase em filme, sinto falta do cálculo, disparo não disparo?, à espera, como quem caça, às vezes ao longe, procurando rostos na multidão, como uma vez no mercado de Djené, no Mali, mulheres fortes, cheias, de roupas absurdamente coloridas, ou de oura vez na estação de comboios de Tirichurapalli, na Índia, recolhendo os movimentos lentos dos carregadores amolecidos nas suas camisas de um cor-de-rosa-inexistente, um cor-de-rosa à moda de Caetano Veloso, um cor-de-rosa que simplesmente não há.
Terá a visão dos fotógrafos algum traço imprevisto, risco de giz num quadro negro, rabisco de carvão numa folha grossa de papel Cavalinho? Eusébio era todo ele movimento quando jogava. Não há lugar para todo aquele movimento no país dos mortos. Não o imagino quieto, fechado, amarrado. Olho para a fotografia de Eduardo Gageiro, revejo as fotografias do meu querido Nuno Ferrari, e Eusébio sai do papel e entra no universo onde as estrelas e os cometas bailam a sua dança de um brilho insólito e enigmático. Tenho a certeza de que, quando abrir este jornal, nesta página precisa, o ouvirei gritar. O Eduardo ecoou-lhe o grito para sempre.