Portugal está entre os países onde mais se consomem psicofármacos. A conclusão foi um dos destaques de um relatório sobre o setor da Saúde conhecido esta semana, que dava conta de que, em 2017, Portugal ocupava o 1.º lugar mundial na venda de ansiolíticos e terceiro na de antidepressivos, só ultrapassado por Canadá e Espanha.
O que aconteceu desde então? Ainda não há dados comparáveis com outros países, mas informação fornecida ao SOL pela consultora IQVIA, que faz a monitorização dos medicamentos vendidos nas farmácias, revelam que em 2018 se atingiu um novo recorde nacional nos antidepressivos: foram vendidos 9,76 milhões de embalagens, mais 370 mil do que em 2017. São 26 739 por dia, mais de mil hora, e um aumento de 19% em cinco anos. Representaram gastos de 105 milhões de euros, dos quais 35 milhões comparticipados pelo Estado.
No caso dos ansiolíticos, registou-se pelo segundo ano consecutivo uma quebra, mas houve ainda 11,28 milhões de embalagens dispensadas. Dava mais de uma caixa por português. Este ano, as vendas continuam a baixar nos ansiolíticos e, no caso dos antidepressivos, a subir cerca de 5,5%.
Que ilação tirar? Para o presidente do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e para o bastonário dos Psicólogos, existe um problema, mas o consumo de psicofármacos não deve ser visto como um mal em si. É antes um sintoma de um sistema em que a medicação é, para muitos, a resposta acessível. E será possível diminuir os comprimidos? A tendência é dizer sim, mas a questão não é linear.
Só um terço dos psiquiatras trabalha no SNS Miguel Bragança, presidente do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, recusa dramatismos em torno da prescrição dos psicofármacos: se os dados epidemiológicos nacionais sugerem uma população envelhecida e com uma carga de doença mental elevada – embora sublinhe que dois terços da patologia são situações menos graves como ansiedade e fobias – é expectável um consumo elevado de medicação. Dito isto, o subfinanciamento nesta área é evidente e menos debatido do que a medicação, o lado visível da resposta que é dada aos doentes. «Em todos os países a psiquiatria e a saúde mental são o parente pobre, desde logo porque as pessoas que melhor reivindicam os seus direitos são os doentes e a doença mental, em si, inibe essa manifestação. Mas em Portugal o financiamento é mínimo, é mais do que o parente pobre», sublinha. «Somos de longe a especialidade mais depauperada e sem recursos».
O Colégio está a ultimar o censos da especialidade e, dos 1150 psiquiatras a exercer no país, só 416 trabalham no SNS, um terço. «Faltam psicólogos, terapeutas ocupacionais, cuidados de proximidade, toda uma rede. No caso da psiquiatria, todos os serviços pedem mais médicos, existem centenas de médicos mas não abrem mais vagas», resume.
O tempo de espera para consultas é «variável», mas supera um ano em alguns pontos do país, diz Bragança. Quantos médicos seriam precisos? «Se se pretender que as pessoas possam recorrer aos serviços do Estado, temos de duplicar ou triplicar. Se se acha que estão bem no privado, é deixar estar. Não temos cuidados primários com resposta, não existem cuidados continuados em psiquiatria, apartamentos protegidos. Temos os planos de saúde mental, leis brilhantes, mas tem faltado no terreno o investimento e pôr as coisas a funcionar».
Com o tempo contado, a resposta torna-se a possível, acrescenta. «A psiquiatria, mais do que qualquer outra especialidade, precisa de dar tempo ao doente. Quando vemos 15 doentes numa tarde ou numa manhã está-se a ver que não vamos fazer um bom trabalho», diz o médico, recusando, ainda assim, a ideia vertida do relatório do Observatório Português dos Sistemas de Saúde, que conclui que, perante 139 idosos em cada 1000 a tomarem ansiolíticos a par de outros medicamentos, também antidepressivos, há um «problema grave» em termos de adequação da terapêutica prescrita aos doentes. «Isto não pode ser uma conversa de café, são precisos estudos concretos, saber quem está a fazer que tipo de medicação. O Canadá prescreve mais psicofármacos do que nós e é dos países com mais investimento». Bragança dá outros elementos para reflexão: perante os riscos de habituação associados às benzodiazepinas, as orientações indicam cada vez mais o uso de antidepressivos para o tratamento da ansiedade, bulimia ou fobias, o que tenderá a levar a um aumento dos antidepressivos a par da diminuição dos ansiolíticos. Por outro lado, há fatores sociais, desde logo o envelhecimento, associado a mais casos de cancro, que também pode suscitar uma intervenção com psicofármacos, tal como a fibromialgia ou enfarte – em que se sabe que há um maior risco de depressão nos meses seguintes. «Com a idade, as pessoas têm mais probabilidade de ter ansiedade, medos. Mais ansiedade leva mais pessoas a deprimir. Temos pessoas a viverem sozinhas, velhos a serem abandonados pelos filhos, situações de ansiedade e depressão em que os antidepressivos permitem manter funcionalidade.»
E mesmo o recurso a psicofármacos para dormir pode ser posto em perspetiva. «É verdade que os idosos estão a fazer muita medicação para dormir, o que não é bom. Mas isto é um problema que ninguém quer enfrentar. Aumentou a esperança de vida, mas as noites continuam a ter a mesma duração e uma pessoa com 70, 80 anos, não precisa de dormir mais de cinco, seis horas». Para o médico, para lá de um problema de prescrição, há um desafio civilizacional. «As pessoas não querem estar acordadas na cama e há uma pressão grande sobre médicos de família e psiquiatras para forçar sono artificial. Prescrevemos? Sim. Não foram criadas alternativas. Um idoso vai cedo para a cama. Vamos criar grupos de apoio? Às 21h30, em Viana do Castelo, a chover torrencialmente?».
Da mesma forma, laços familiares mais frágeis e falta de estruturas comunitárias acabam por levar a que a medicação seja uma forma de manter a autonomia. E há ainda que ter em conta mudanças nas expectativas, que levam mais pessoas a procurar ajuda e/ou a sentirem-se em risco. «As sociedades ocidentais estão mais frágeis. As pessoas têm uma intolerância maior à frustração e acreditam na tecnologia, na Medicina. Não sei se há mais patologia, mas as pessoas procuram mais ajuda. Antes tinham Deus, havia famílias muito coesas. Hoje valorizam o bem-estar, são educadas em grandes expectativas e a capacidade de espera pelo reforço tornou-se curta. Os medicamentos vão ao encontro das necessidades das pessoas, do alívio rápido. Claro que podemos dizer que é um sol enganador, mas se os medicamentos fossem maus, as pessoas abandonavam a medicação».
A porta de entrada no sistema onde não está quase ninguém No Relatório do OPSS, um dos enfoques era a falta de psicólogos no SNS, em particular nos cuidados de saúde primários. O alerta não é de agora e, para o bastonário dos Psicólogos, continua quase tudo por fazer para que a população tenha acesso a intervenções eficazes para além do controlo de sintomas oferecido pela medicação. O relatório apontava para a existência de 600 psicólogos no SNS. Segundo a Ordem, existem mil, mas a carência nos centros de saúde é preocupante. São cerca de 250 e era necessário o dobro. Esta legislatura abriu pela primeira vez um concurso, mas só com 40 vagas. «Nem se pode falar em tempos de espera. Há seis meses em Évora podia esperar-se até quatro anos para ter resposta de psicologia em caso de depressão. Até podemos ter filas curtas para primeira consulta, mas as pessoas não chegam a ter uma segunda consulta, o que não serve para nada», diz Francisco Miranda Rodrigues.
No Relatório da Primavera, os autores citam um estudo que conclui que o investimento em psicologia poderia poupar cerca de 20% a 30% dos custos com menos problemas de saúde mental e menos idas às urgências e internamentos. O bastonário acrescenta: «30% a 60% das pessoas que vão aos cuidados de saúde primários apresentam problemas do foro psicológico. Na Noruega, o primeiro contacto já é um psicólogo. O que defendemos é que pelo menos haja o mínimo de recursos para que o médico de família, que é a porta do sistema, possa referenciar estes casos».
Para lá do SNS, há outros problemas que podem explicar o maior recurso a medicação, aponta o bastonário. São poucos os seguros que abrangem consultas de psicologia e, na ADSE, a comparticipação depende de prescrição médica. «Não faz sentido ser um médico a prescrever o acesso a uma profissão autónoma».
Miranda Rodrigues sublinha, por fim, que não seria só o acompanhamento dos casos do foro mental que ficaria a ganhar com uma aposta na intervenção psicológica. «Continuamos com um modelo de trabalho que ignora a evidência científica, que revela o benefício da psicologia para intervenção em problemas com causas comportamentais, como a obesidade, a diabetes, doenças cardiovasculares». Não existindo respostas, nem investimento, a solução resume-se a comprimidos, cada vez mais comprimidos. «O sistema hoje garante uma coisa: que se gasta bastante dinheiro com psicofármacos, que o Estado comparticipa e todos pagamos. Se não se trabalhar as causas, não se consegue fazer com que as pessoas desenvolvam competências, ajuda-se na criação de uma dependência. O Estado tem de decidir se quer gastar dinheiro a comprar psicofármacos ou se quer investir sustentavelmente na saúde dos portugueses».