Banco público não foi gerido de forma prudente, diz relatório da comissão de inquérito

Relatório diz ainda que Banco de Portugal pôs em causa utilidade da supervisão.

A Caixa Geral de Depósitos não foi gerida de forma prudente e o Banco de Portugal pôs em causa a utilidade da supervisão na forma como exerceu os seus poderes. Estas são algumas das principais conclusões do relatório preliminar da comissão de inquérito ao banco público.

As 366 páginas, da autoria do deputado do CDS-PP João Almeida, não deixam margem para dúvidas: ficou evidente “que a CGD não foi gerida de forma sã e prudente, na concessão de vários dos créditos analisados”. 

Já em relação à atuação do Banco de Portugal (BdP), os deputados consideraram que a supervisão do sistema financeiro foi feita “de forma burocrática, não procurando olhar para além dos rácios de solvabilidade e níveis adequados de liquidez de cada banco, e não percebendo o risco sistémico de algumas operações”. 

E apesar de o relatório da EY não falar diretamente de Vítor Constâncio, o certo é que foi este que esteve à frente do banco central durante grande parte do tempo em que foi feita a auditoria à Caixa. A comissão de inquérito debruçou-se sobre o período entre 2000 e 2015: Vítor Constâncio foi governador dez anos, sendo seguido por Carlos Costa.

O documento foi mais longe: “A supervisão seguiu acriticamente as notas técnicas dos serviços do BdP, não exigindo mais informação do que aquela fornecida, demonstrando mais receio no confronto jurídico com os supervisionados do que com a possibilidade de erros ou fraudes”, acrescentando que o regulador “não seguia os problemas detetados, assumindo que as suas orientações eram executadas, o que muitas vezes não acontecia”, e teve “uma confiança extrema nas linhas internas de defesa das instituições”, caso de direção de risco, auditoria, administração, assim como nas “externas”, os revisores e auditores, pelo que “nem perante reparos, ênfases ou denúncias públicas atuou com celeridade, colocando assim em causa a utilidade da sua supervisão”. E aponta o dedo a um dos empréstimos mais mediáticos em torno da Caixa. É o caso do financiamento de Joe Berardo, em 350 milhões de euros, para a compra de ações do BCP. “Na concessão do financiamento de 350 milhões de euros à Fundação José Berardo, o Banco de Portugal deveria ter realizado uma análise real da instituição em vez de aceitar informação de fraca qualidade dos seus serviços. Uma análise completa poderia ter inibido os direitos de voto e exigido contrapartidas adicionais”, afirma.  

As críticas não ficaram por aqui. O documento do inquérito parlamentar chamou também a atenção para a dualidade de critérios em casos semelhantes. E deu exemplos: “Veja-se Vale do Lobo, onde o BdP escreveu cartas a exigir detalhes da operação mas, depois, no caso do BCP, não exerceu o mesmo zelo; ou como foi usada a moral persuasion para afastar Filipe Pinhal, mas restringiu-se no caso de Francisco Bandeira ou Armando Vara o BdP veio invocar motivos legais para cumprir o seu papel. Ou seja, o mesmo BdP que invocava a inexistência de atribuição legal para atuar em certos casos não deixava de o fazer noutros idênticos”, refere.

Outra das críticas diz respeita à forma do modelo de governação dos bancos. O documento refere que apesar de se ter preocupado com esse modelo, o banco central ignorava a sua operacionalidade. O mesmo acontecia com a forma como fazia o registo dos administradores, ao analisar a sua idoneidade, mas sem ter em conta “o comportamento dos administradores, a concretização da segregação de poderes, nem a falta de discussão dentro dos conselhos”. 

O relatório considera que o Banco de Portugal usa a sua independência para evitar o escrutínio e que, apesar das melhorias na regulação bancária, é questionável se algo de “verdadeiramente relevante” mudou no supervisor. “As reformas, nacionais e europeias, da supervisão, após a crise, indicam que algo mudou na forma como esta é realizada. Mas, infelizmente, é legítimo duvidar que algo, verdadeiramente relevante, tenha mudado na instituição que a realiza”.  

Recomendações 

A par das críticas, o relatório aponta também sete recomendações para o futuro, desde logo que o Estado, através do Governo, exerça “o seu papel de acionista de forma presente e transparente”, acrescentando que “não pode bastar nomear a administração e aferir resultados quantitativos”.

Já em relação ao Banco de Portugal, sugere que faça “uma reflexão transparente sobre a atuação da supervisão portuguesa na crise financeira, [assuma] os erros e as lições aprendidas, assim como [promova] uma maior transparência da sua atuação, resultados e consequências”. O deputado relator recomenda ainda que, de futuro, a supervisão do Banco de Portugal também incida “sobre a cultura, o comportamento e as dinâmicas internas que afetam o desempenho das instituições financeira”, pois considera “fatores essenciais para a responsabilização ética a reputação dos bancos e a confiança no sistema financeiro”. E deixa um apelo: a “reforma da supervisão deve ser uma prioridade” na próxima sessão legislativa. 

Quanto à Caixa, diz que esta tem de fazer o apuramento das “responsabilidades dos processos ruinosos” e utilizar “todos os meios legais para se ressarcir das perdas”, recomendando que tome medidas para não repetir os erros do passado e as fortes perdas que daí resultaram. “A CGD deve verificar, tendo em conta as evidências e conclusões desta comissão, que todas as medidas são tomadas para que não se repitam as situações que geraram tão avultados prejuízos”, diz o documento.

De desvio claro a “comportamentos criminosos” 

A opinião dos partidos é arrasadora no que diz respeito à gestão do banco público entre 2000 e 2015. No entender de Duarte Pacheco, deputado do PSD, graças aos trabalhos da comissão de inquérito à CGD, “o país passou a conhecer mais uma vez que, infelizmente, a gestão não foi sã e prudente, mas potencialmente danosa e com potenciais comportamentos criminosos”.

Já o deputado socialista João Paulo Correia considerou que a comissão revelou falhas na gestão e que a supervisão ficou aquém do que poderia ter sido, e defendeu conclusões “despidas de partidarite”. E acrescentou: “As administrações da CGD, desde o início do período em análise, nunca reproduziram nas suas atas decisões fundamentais relacionadas com a concessão e reestruturação de créditos”, afirmou, exemplificando que, numa reunião de aprovação de prejuízos, o “debate durou dez minutos” e a ata dessa reunião só tem um parágrafo a dar conta da aprovação do relatório e contas.

Também para o comunista Paulo Sá houve “um desvio claro da CGD da sua missão como banco público” e a responsabilidade deve ser repartida pelos vários gestores do banco e pela tutela. “Houve um desvio claro da Caixa Geral de Depósitos [CGD] da sua missão como banco público. Isto é, em primeiro lugar, responsabilidade dos gestores, mas também dos vários Governos que, perante estes desvios, deviam ter intervindo”. E acrescentou que os vários Governos deviam ter atuado no sentido de “corrigir o rumo da gestão da Caixa” e, “no caso de não ser possível substituir gestores, nomear novos que assegurassem que a Caixa era gerida como banco público”. 

Já Mariana Mortágua apontou responsabilidades aos sucessivos Governos, ao BdP e às administrações do banco público pelos atos de gestão no banco. “O acompanhamento do Governo, para além de negligente, foi errado”, disse, acrescentando que “acompanhar um banco não prestando a mínima atenção ao caráter qualitativo, aos setores da economia, à qualidade do crédito, ao comportamento do banco, e apenas exigir resultados de curto prazo é uma forma errada de acompanhar o banco público e produz incentivos errados”. 

Documento nas mãos da PGR

A EY garantiu que o banco público prestou toda a colaboração para a realização da auditoria. “A CGD, em todos os momentos, prestou toda a colaboração, nunca tendo impedido ou condicionado a recolha de elementos”, afirma.  O documento, tal como o Sol avançou, foi alvo de fortes críticas por parte de Fernando Faria de Oliveira, antigo presidente da CGD, que apelidou o documento de “enviesado”, “viciado” e “descuidado”, e considerou ainda que “a auditora distorceu a letra das normas internas, tanto no que respeita ao que devia ser o conteúdo das atas dos Conselhos de Crédito como aos requisitos de constituição de garantias para créditos de duração superior a 180 dias”. 

Uma queixa, segundo o i apurou, já chegou às mãos da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM).  O relatório será agora entregue à Procuradoria-Geral da República (PGR). De acordo com o centrista João Almeida, a comissão parlamentar teve “acesso a inquéritos que correm termos neste momento” e “o aprofundamento de algumas dessas matérias e outras poderão ter relevância criminal” que justificam o envio à PGR.