Rudyard Kipling: eis um nome para o mundo. Era ele quem dizia: «Viaja mais rápido quem viaja sozinho». Eu gosto de viajar sozinho. Talvez não completamente sozinho. Eu e os meus fantasmas; eu e as minhas memórias; eu e toda aquela gente que já tive e perdi. Sozinho tenho atravessado fronteiras e, com elas, o mundo e as suas circunstâncias. Uma viagem interminável. A transumância. Ou «the restlessness», como lhe chamava Bruce Chatwin, imagem universal do viajante compulsivo e solitário.
Dizem que Kipling só esteve na Birmânia durante três dias. Hoje não há Birmânia, há Myanmar. Mas Kipling também não esteve na Birmânia, esteve em Burma que era esse o nome que os colonizadores ingleses lhe davam. País de muitos nomes que não tem nomes. Isto é, não tem nomes de família, não tem apelidos. Cada um tem o seu nome, sem passado nem futuro. O seu nome individual, reservado, inteiro. Ninguém lega aos filhos, aos netos, a tradição de uma linhagem.
Kipling pode ter estado na Birmânia três dias apenas, mas escreveu Mandalay e esse poema propagou-se em ecos sobre ecos, repetitivos e impossíveis de conter. Mandalay tornou-se um hino e foi cantado por Frank Sinatra com música de Oley_Speaks – On the Road to_Mandalay –, a paixão de um soldado inglês no tempo da III Guerra Anglo-Birmanesa (1885) por uma rapariga proibida pela raça. Foi nesse ano que Thibaw, o último monarca da velha Birmânia, fugiu para o exílio e a vida mudou para sempre nas margens do Irrawaddy.
«By the old Moulmein Pagoda, lookin’ eastward to the sea/There’s a Burma girl a-settin’, and I know she thinks o’ me/For the wind is in the palm-trees, and the temple-bells they say:/“Come you back, you British soldier; come you back to Mandalay!»
Kipling pode ter estado 78 horas na Birmânia, e depois de ter lido quase tudo o que ele escreveu sobre o país espanto-me cada vez mais com essa realidade, mas encantou-se ferozmente pelas mulheres birmanesas. Os seus críticos não perderam tempo a insultá-lo. Ainda hoje o fazem. A sua visão é profundamente machista, como se tudo não fosse machista nos idos de 1889, sobretudo para um moço de 23 anos que viajava num paquete ligando Calcutá a São Francisco. Ah! E profundamente colonialista, já agora, como, correndo o risco de me repetir, o mundo não fosse absurdamente colonialista nesse final de século XIX.
O fascínio de Rudyard Kipling fascinou-me, por minha vez, durante a adolescência. O fascínio de Kipling pela Ásia foi o fascínio com que, pelo dedo indicador do meu avô Joaquim, no Quarto Grande da Casa de_São Bernardo, em Águeda, aprendi as curvas e contra curvas do Irrawaddy e decidi, aí mesmo, que um dia subiria o rio até ao sonho de Mandalay. Rangoon deixou de ser Rangoon e passou a ser Yangoon, mas nem por isso Kipling deixou de ser Kipling: The Jungle Book (O_Livro da Selva), Kim, The Man Who Would Be King, Mandalay, Gunga Din, The White Man’s Burden, If… As palavras bailavam na minha cabeça como folhas soltas numa ventania constante. Traziam consigo promessas de árvores gigantes sob as quais Buda se iluminou, elefantes percorrendo as ruas de cidades confusas de gente de tom escuro e olhos rasgados, pagodes cujos pináculos surgiam por entre as folhas das tecas, um cântico qualquer ao fim da tarde, quando o sol se põe para lá do Irrawaddy.
Os pagodes de Pagan
Uns chamam-lhes stupas.
Não sei quantos pagodes se erguem em Pagan. De Prome a Minbu e de Minbu a Tagaung, lá no planalto de Mizoran.
Durante décadas transformando-se lentamente em ruínas, comidos pelas raízes das árvores-da-borracha, passaram agora a ser um postal turístico que carrega os homens de volta a um país teimosamente mergulhado em ditaduras militares, brutas e inacessíveis. A publicidade tomou conta de Pagan com uma camioneta verde que passa numa estrada qualquer que não existe deixando entrever ao longe as silhuetas dos templos. A frase sublinha: «Probably the Best Beer in the_World».
Os garotos vendem coca-colas e seven-ups aos valentes esforçados que sobem escadarias estreitas, devagarinho, até se descobrirem no céu, por sobre toda a redondez da Terra, a espreitarem os pores do sol que não trabalham de graça.
Manda dizer a verdade que Kipling nunca esteve em_Mandalay. Não teve tempo. O barco em que viajava não esperaria por ele. E, no entanto, fingiu tão bem que escreveu: «On the road to Mandalay/Where the old Flotilla lay/With our sick beneath the awnings when we went to Mandalay!/Oh the road to Mandalay/Where the flyin’-fishes play/An’ the dawn comes up like thunder outer China ‘crost the Bay!»
Gostava de saber escrever assim sobre lugares onde nunca estive. É talvez o ponto mais alto da literatura. O ponto mais alto da viagem sobre si próprio. O ponto mais alto da revolta da imaginação.
A estrada de Mandalay chamava por Kipling e Kipling não foi. Ficou em Rangoon. E, ao primeiro relance, suspirou: «Isto é Burma! E é o lugar mais fantástico que alguém possa um dia imaginar!»
Rudyard não esteve em Mandalay mas, depois, por um acaso, o seu navio fez escala em_Moulmein, que também já não é Moulmein mas Mawlamyine, primeira capital da Birmânia inglesa, e um silêncio absurdo entrou-lhe pela alma e nunca mais saiu. Convenceu-se de que a cidade se tornara inabitada. Que apenas os elefantes viviam nessa tranquilidade inequívoca, abanando as trombas e as orelhas numa compreensão comum, elefantina, de que não é preciso ter orelhas enormes para se saber o que é verdadeiramente o silêncio na perfeição do seu esplendor. «As the steamer came up the river we were aware of first one elephant and then another hard at work in timber-yards that faced the shore», escreveu numa crónica enviada para o jornal indiano The Pioneer. E recusou a sugestão do seu companheiro de viagem: «Ele tem uns binóculos. Apontou-os aos elefantes e jura-me que têm mahuts sobre o pescoço ordenando-lhes para onde irem e o que fazerem. Não acredito nele. É uma daquelas pessoas de mente pequena que se limita a confiar nas lentes dos seus binóculos. Não há nada que me prove que há homens montando os elefantes que vou vendo ao longe nos seus movimentos lentos. Acredito no que vejo. Sim, acredito simplesmente no que vejo – uma cidade adormecida, com apenas uma casa grande de paredes espessas, situada na margem de um rio de corrente suave, e habitada por vagarosos e solenes elefantes que se limitam a empilhar troncos de árvores para seu simples entretenimento».
Pois, quem assim escreve nem precisa de ir a Mandalay. Tem Mandalay por dentro. E elefantes que caminham solenes pelo meio da satisfação infinita de tudo o que se espalha em frente aos nossos olhos, de horizonte a horizonte.
Uma noite, em Rangoon
Quando cheguei a Rangoon já a noite se insinuava rapidamente no espaço que acabara de ser do dia. Era setembro, e há um jeito especial de ser setembro no céu, nas árvores, nos cheiros e nas pessoas. Fazia um calor bruto e húmido, a colar a camisa ao longo das costas num risco espinal de suores, e soprava uma brisa desistente à mistura com o bafo espesso das hélices do avião, resmungando ainda de teimosias no aeroporto vazio, escurecido e sujo, quase clandestino.
Não dei por ela logo, talvez por distração, talvez por cansaço, mas reparei mais tarde como as noites em Rangoon caem de forma oblíqua, talvez sejam as mais oblíquas de todas as noites, se é que a obliquidade das noites se pode medir a olho nu. Parece que o dia se inclina devagarinho para trás das paredes da tarde e vai ficando apenas um halo de luz que se apaga a pouco e pouco, tão a pouco e pouco que a gente mal o sente.
O Governo da Birmânia não gosta muito de estrangeiros. Não gosta mesmo nada de estrangeiros. Especialmente dos estrangeiros que somam a esse infeliz defeito a incomodativa característica de serem jornalistas.
Foi por isso que, desde a primeira hora, que tive um acompanhante. Um membro dos Serviços de Turismo do Estado, segundo ele, posto à minha disposição para tudo o que eu quisesse ver de Rangoon que já não é Rangoon. Chamava-se Khin e, quando não consegui escapar-me ao seu olhar acutilante, seguiu-me para toda a parte, decidido a conduzir-me em direção a tanto que a cidade tem para mostrar e a manter-me longe de tanto do que tem para esconder.
Era a festa. Nessa noite da chegada, era a festa. Thadingyut, chamam-lhe: o Festival da Luz! Centenas; milhares; centenas de milhar de pessoas pelas ruas, pelas praças, pelos becos e pelas vielas. Um mar infindável de cabeças pela Anawrahta Street em direção à cúpula dourada do pagode de Shwedagon; lanternas de papel azeitado penduradas nas árvores e nas varandas de ferro forjado dos edifícios coloniais; as osgas espantadas, coladas às paredes como se estivessem pregadas com pioneses; soldados por toda a parte como convém a uma ditadura militar.
«Enquanto houver na Terra um militar/Seja ele o teu filho ou o meu/Nunca poderá haver nada de muito bom…» cantou-me o Aznavour no microfone da memória. Mas só eu o ouvi porque, em Rangoon, também a música estrangeira é proibida. Violentamente proibida.
Kipling também esteve no sopé da enormidade de Shwedagon. Aí esteve mesmo, de estar e não de imaginar apenas. «I should better remember what that pagoda was like had I not fallen deeply and irrevocably in love with a Burmese girl at the foot of the first flight of steps». Kipling apaixonou-se para sempre por uma rapariga birmanesa que nunca chegou a conhecer. Eu entendo-o. Viajei com ele pela Birmânia, agora Myanmar – curiosamente ambos os nomes têm mesma etimologia, referem-se a Bam-mã ou a Maran-mã – página a página, quilómetro a quilómetro, centenas de páginas e milhares de quilómetros. «Quando eu morrer serei birmanês, com vinte metros de verdadeira seda real a envolverem o meu corpo e um nunca mais acabar de cigarros entre os meus lábios. Os cigarros servirão para enfatizar a minha conversa plena de gestos e caminharei para sempre de mão dada com uma rapariga com a pele cor de amêndoa que rirá alto e feliz».
Eu e Khin sentámo-nos a falar durante muito, muito tempo. Ele fumava para enfatizar a conversa. Sentámo-nos igualmente a comer enquanto a festa ia esmorecendo pela madrugada. E a beber, sobretudo, porque as grandes filosofias são alicerçadas em enormes perdas de saliva apenas recuperáveis a álcool. O Lobo Antunes disse, certa vez: «Tenho pena das pessoas que não bebem porque acordam de manhã da maneira como vão sentir-se o resto do dia». Conversávamos portanto enquanto bebíamos, seguros de que, pela manhã, não nos sentiríamos da mesma forma. Nós a discutir assuntos infindáveis e mistérios insondáveis.
Khin cometia, se calhar, um crime hediondo já que, por cima das nossas cabeças, havia um cartaz vermelho com letras brancas que diziam: «Atenção ao que falas com estrangeiros! A força da Nação está no interior das suas fronteiras!» Como se fosse uma profunda exortação ao silêncio.
Balões policromos esforçavam-se por fugir para o céu. Vozes cada vez mais distantes. Rumores.
E, de repente, já havia então fiozinhos de manhã sobre a cidade dos telhados de ouro, percebi com a clareza de uma revelação que a gente só começa a ter noção da verdadeira dimensão do nosso pequeno mundo quando conhecemos alguém que nunca ouviu falar no Pélé. Ora, se nunca ouviu falar no Pélé como é que vai saber quem é o Saramago e a Amália e o Pessoa? E o Vidal da Aguada que vendia leitões para a rainha de Inglaterra? E onde fica Lisboa e Tejo e tudo? E para onde corre o rio Águeda da minha infância hoje em dia tão distante que já não cabe em mais nenhum lugar do que o das linhas que a memória inquieta me obriga a escrever?
Khin espirrava e fungava abundantemente para o lenço enorme a cheirar a cânfora. E como não conhecia nem o Pélé, nem o Saramago, nem o Vidal dos leitões, falou de rios. Do Rangoon e do Irrawaddy, das cidades e dos templos que crescem nas suas margens e das insubmissas ordens das suas águas. Um homem constipado é um homem de revoltas. O próprio Bernardo Soares o afirmou, sem direito a réplica: «Toda a gente sabe como as grandes constipações alteram o sistema do universo, zangam-nos contra a vida e fazem espirrar até à metafísica».
Khin espirrava até à metafísica. Esse Khin sem metafísica como o dono da Tabacaria. Pelo meio da revolta, teve um olhar de inequívoca tristeza e recitou-me um velho ditado birmanês: «O sofrimento é a única promessa que a vida cumpre sempre!» A ele cumpriu e fiquei a sabê-lo à medida do calor crescente e sufocante da manhã.
A festa chegara ao fim, e há sempre uma sensação desiludida nos momentos que se seguem ao fim das festas. Já não havia ninguém nas ruas, apenas papéis sujos, cães vadios em buscas ansiosas de restos de comida.
Mas os soldados continuavam parados nas esquinas como estátuas ameaçadoras.
Então Khin perguntou-me: «Diz-me – na tua terra também passa um rio?» Primeiro, faltaram-me as palavras. Depois pensei que, lá longe, talvez houvesse um sol bondoso a dar brilho às águas mortas do Fojo e do Sardão onde as lavadeiras já não espalham os lençóis alvos ao sol depois das barrelas de sabão azul e branco, e que o rio Águeda haveria de continuar parado e lindo como um caixilho vazio à espera de ganhar vida com uma fotografia colorida que ninguém sabe tirar.
E respondi: «Sim, passou…»