Em 1913, na 11.ª edição da Volta à França, havia uma novidade a merecer largos comentários. Até então, o país era percorrido a todo o tamanho do Hexágono no sentido dos ponteiros do relógio. A direção da corrida decidiu inverter o sistema. Levantaram-se vozes a favor e contra, como de costume. À sexta etapa um jovem de 18 anos chamado Eugène Christophe, nascido Malakoff por via da suas ascendência russa, descia o Tourmalet com a satisfação íntima de sentir que a fortíssima pedalada que estava a imprimir desfizera o pelotão e iria, certamente, terminar o dia no primeiro lugar da classificação geral. Eugène já disputara dois Tours. Ferreiro de profissão, conseguira, em 1906, um emprego na Peugeot que lhe propôs que se dedicasse por completo ao ciclismo. Era, portanto, ao tempo, um verdadeiro profissional. «Tinham-me dito que, naquele momento, levava 18 minutos de avanço sobre todos os outros. Era fantástico. A dez quilómetros de Sante-Marie-de-Campan percebi que deixara de ter controlo sobre o guiador. A bicicleta ficou à deriva. A forquilha partira-se. A queda foi inevitável».
Eugène tinha a alcunha de Cri-Cri. Sentado na beira da estrada, esforçando-se por reparar os estragos, viu os adversários começarem a passar por ele. «Recordo-me de ouvir as gargalhadas do meu companheiro de equipa, Petit-Breton – «Oooh! Pauvre Cri-Cri! Malhereux Cri-Cri!». Carreguei a bicicleta às costas até à meta. Chorava tanto que as lágrimas nem me deixavam ver o caminho decentemente. Tornara-me o gozo do pelotão. E, as regras eram claras nesse tempo: nada de mecânicos; cada corredor era responsável pela sua própria bicicleta e por tratar dos danos que ela sofria. À chegada, demorei mais de duas horas para consertar a forquilha. O desânimo era inexplicável!».
Amarelo! Eugène Christophe não sabia ainda, mas estava destinado a ficar para sempre na história da Volta à França. Era um crente. E supersticioso. Em redor do pescoço usava sempre um colar com um saquinho onde metia uma moeda de 10 francos e outra de 5. Tinha um cuidado tremendo com o seu equipamento. Na véspera de cada etapa alinhava, religiosamente, a camisola, os calções e os sapatos. Levantava-se cedo e fazia questão de pensar em todos os pormenores com antecedência. Hoje, talvez lhe diagnosticassem qualquer tipo de distúrbio obsessivo-compulsivo. Em 1913 era apenas o Cri-Cri.
Campeão de França de ciclo crosse de 1909 a 1914 foi inevitavelmente apanhado na sinistra teia da I Grande Guerra. Serviu no Batalhão Velocipédico, algo que fazia todo o sentido, e ansiava por voltar ao Tour. Lucien Petit-Breton, seu antigo camarada, que o apepinara tanto depois do desastre do Tourmalet, morreu de arma em punho. Outros antigos vencedores da Volta a França como François Faber ou Octave Lapize não regressaram vivos dos campos da Flandres.
Em 1913, apesar de todo o aparato da sua queda inolvidável, Christophe ainda terminou no sétimo lugar. O seu estilo combativo, tornava-o um fugitivo em potência e com a potência de um fugitivo sem igual. As suas arrancadas solitárias eram uma imagem de marca. Em 1912 só não venceu a Volta a França por causa de um método classificativo que protegia o trabalho de equipa em detrimento dos eremitas. Eugène gostava de andar sozinho. O belga Odile Defraye beneficiou da ajuda dos seus companheiros na etapa derradeira, na qual era possível trocar o tempo individual pela média do tempo coletivo. E venceu.
Dispensado do exército, Eugène Christophe passou a correr pela La Sportive, uma equipa representativa de material desportivo, aliás a única que fornecia o Tour. «Basicamente, os ciclistas equipavam todos de igual, fossem de que equipa fossem», contou Eugène mais tarde. «Como La Sportive fazia camisolas para todos, não se preocupava muito que o material fosse a retalho. Pequenos vivos nas mangas ou nas golas bastavam para distinguir as equipas». Já o público, esse, tinha de diferenciar os corredores pelas caras. E os diretores do Tour não estavam contentes com a situação.
A ideia! Ao fim da terceira etapa da edição da Volta a França de 1919, o francês Henry Pélissier liderava a geral. Na quarta etapa, entre Brest e Les Sables-d’Olonne, Eugène Christophe lançou um dos seus ataques ferozes. A fuga deu resultado. Ao arrancar para a quinta etapa, entre Les Sables-d’Olonne e Bayonne, já ia na frente. E a história estava à beirinha de se concretizar.
Um oficial da corrida que vinha no carro do diretor do Tour, Henry Desgrange, propôs-lhe que, no início da ronda que se seguiria, o comandante da prova usasse uma camisola de cor diferente para que se destacasse claramente do resto do pelotão. Estávamos no dia 7 de julho, já se tinham percorrido 2051 quilómetros, e faltavam ainda dez etapas para a entrada triunfal em Paris.
Desgrange adorou a ideia. Como o organizador e patrocinador do Tour era o jornal desportivo L’Auto, impresso numas páginas amareladas, tomou a decisão que o primeiro classificado iniciasse a etapa seguinte, entre Bayonne e Luchon, vestido com uma camisola amarela. Não havia confusão possível com nenhum outro.
Eugène, por sua vez, detestou a novidade: «Mas que coisa ridícula, andar por aí vestido de amarelo. Vou voltar a ser o gozo de toda a gente. Ainda carrego com a queda do Tourmalet e agora vou passar a ser o canário?!». Parece que, pelo meio dos gritos da populaça, ainda ouviu uns’ piu-pius’. Andou com a camisola amarela vestida até ao dia 23 de julho. Depois, a forquilha voltou a traí-lo. Quem entrou de amarelo em Paris, foi outro belga: Firmin Lambot. A iconografia entrara no Tour para jamais sair.