Alma é Águeda. Foi o Manuel Alegre que lhe chamou assim e fez muito bem. Alma pode vir aí pendurada num qualquer singular, mas não há nada de mais coletivo. Sobretudo para quem é de Águeda, do sangue e da infância. Para quem é da alma. Eu, por exemplo, sou de Águeda há mais de trezentos anos. E só o sangue consegue explicá-lo.
Logo no início do segundo capítulo o Zamora já tinha defendido um penálti e o Neca Pereira mandou um biqueiro de cerca de trinta metros: «A bola, diziam, porque, como se sabe, eu não vi, bateu na barra e transpôs a linha de golo. Isto era o que dizia toda a gente menos o meu pai. Ná, a bola não entrou». Mas que houve confusão, houve. «Durante muito tempo, em Alma, não se discutiu senão a pancadaria no comício e a invasão do campo de São Cristóvão a poucos minutos do fim do jogo entre o Beira-Rio e o Vista Alegre». O Vista Alegre até podia ser o Vista Alegre. O Beira-Rio era o Recreio. O campo de São Cristóvão era o campo de São Sebastião, como está bem de ver. Como está bem de ver para quem é de Águeda, claro! Ou de Alma, como é o caso. Por isso a gente sabe que o Zamora também não era o Zamora: era o Salamanca.
O Beira-Rio não era o Águeda porque, para nós, em Águeda, nunca houve o Águeda. Houve sempre o Recreio. O Recreio das camisolas grenás e dos calções azuis que um dia chegou à I Divisão e recebeu o Benfica com o campo cortado e as pessoas sentadas no pelado, junto às laterais, com guardas-republicanos a cavalo, sobre as linhas de cal, como se fossem guarda-costas dos fiscais. A malta gritava: «Tira o cavalo da frente! Deixa-me ver a bola!». E muitos não sabiam se se estavam mesmo a referir ao cavalo se estavam a chamar besta ao guarda republicano que já tinha as orelhas a arder tanto como as do árbitro que era o Carlos Valente e do qual fui amigo.
Mas isto foi no Redolho, ou no Sardão, se quiserem, não no São Sebastião que, entretanto, já servia para que lhe nascesse em cima o mamarracho da Câmara Municipal, estragando a Venda Nova que sempre foi antiga até que, na altura de ser antiga, como agora, passou a ser nova com tanto prédio mal enjorcado a nascer esquina sim esquina não.
O campo de São Sebastião era do meu bisavô Afonso, o Grande Afonso, aquele que tinha sempre a porta de casa aberta para quem fosse de Águeda, ou de Alma, e gostava de repetir que Águeda era terra de gente de bem, que «Águeda era o Mundo», mas Águeda foi mudando, a alma também, ficou uma Alma com pouca alma, uma Alma que sobrevive ainda dentro de alguns que têm Águeda nas veias, acima e abaixo na corrente da infância que, mais cedo ou mais tarde, vai parar ao coração.
Há dois dias, o Rui Mónica, que é agora o presidente do Recreio, cujo pai também lá jogou – era o Rui Rodrigues, não o Rui Rodrigues, mas o nosso Rui Rodrigues – disse-me para ir a Águeda, ver a apresentação da equipa, um Recreio de Águeda-Beira-Mar, que calhou hoje mesmo, sábado, e é aquele jogo que todos os aguedenses gostam de ganhar porque o Beira-Mar, para nós, será sempre o Bera-Bera, assim um clube armado ao fino, que já andava na II Divisão quando o Águeda foçava nas Distritais. O problema é que o Bera-Bera nunca teve jogadores tão históricos como o Fanfas, o Pinto Gaião, o Febras, o Benga ou o Lelé que, assim, todos juntos, podiam dar um romance do Machado de Assis. Mas daquilo que o Bera-Bera mais inveja no Recreio é não ter tido Pelé.
Toda a gente sabe que, lá no Mário Duarte, que era, por sua vez, tio-avô do Manuel Alegre – afinal Aveiro e Águeda não ficam assim tão longe – e foi guarda-redes e fundador do Belenenses, jogou o Eusébio, o Eusébio autêntico, o meu querido Eusébio com o qual dividi tantas e tantas conversas que dariam um livro e acabaram por dar dois, mas pouca a gente sabe, fora de Águeda, que no Recreio jogou o Pelé, aliás o Carlos Eduardo, por extenso Pelé. Vendo bem, o Pelé também não era Pelé, era Edson Arantes do Nascimento, e o nosso Pelé, o de Águeda, além do divino atrevimento de se chamar Pelé ainda tinha o descaramento esplêndido de não ser crioulo como o moço de Três Corações, mas tão branco como qualquer natural de Ois da Ribeira, de Assequins, da Mourisca ou da Alagoa.
Por isso, hoje, quando entrarem no campo que fugiu, depois de 1974, de junto da capela de São Cristóvão, que é a capela de São Sebastião, para passar para a beira-rio, não longe das desaparecidas piscinas do Sport Algés e Águeda, os jogadores do Bera-Bera sabem que, mesmo ganhando, sairão sempre derrotados. Porque o Recreio é o clube de Alma. E o Manel nunca nos deixará esquecer.
– Equipa de merda – disse.
Eu não gostei.
– Podem não jogar nada, mas são os nossos.
– Tens razão. Não jogam nada, mas são os nossos.
afonso.melo@newsplex.pt