Rutger Hauer soube escapar à mundanidade de Hollywood resguardando-se perpetuamente no enredo dos personagens que criou. É um desses raros actores capaz do estremecimento de uma aparição, que sabia deixar uma impressão indelével, mas que, acima de tudo, sabia desaparecer. Numa entrevista ao The New York Times, recusou alimentar a comédia da celebridade, e disse que «um actor não é mais que um palhaço que faz o seu número, é pago pela audiência para isso, e nada mais – e nem se deve querer mais». E talvez porque toda a perspectiva desencantada é um bom plano para um recomeço, ele não entretinha os tão vulgares misticismos, e reconhecia: «Somos um luxo. Apenas desenhos num muro, só que nós mexemo-nos».
E as homenagens de que servem se um performer, mais do que um rol de interpretações admiráveis, parece exibir um cadastro? Nas reacções à morte do actor holandês, foi uma das mais sóbrias aquela que para nós se destacou. O jornalista José Marmeleira, nas redes sociais, escreveu apenas: «Ciborgue, psicopata, lobo, cavaleiro andante e mercenário sem escrúpulos». É um poderoso epitáfio que vinca a forma como a figura de Hauer se mistura e confere uma «sinistra intensidade» a alguns arquétipos bestiais. Conhecido sobretudo pelo ciborgue rebelde que interpretou em Blade Runner, o actor valeu-se do prestígio desses vilões que se mostram tão necessários porque, como poetas, deslocam o sentido moral da história. Como sublinhava Bilge Ebiri num artigo no Times, foi Hauer quem, ao misturar a ameaça física a um charme real e a uma certa angústia psicológica, conseguiu transformar o thriller futurista de Ridley Scott no filme de culto que é hoje. «Ele movia-se com uma graça melancólica», nota Ebiri, com um olhar alternando entre a ferocidade felina e a serenidade.
Hauer morreu «pacificamente» em sua casa, nos Países Baixos, na passada sexta-feira, aos 75 anos. A notícia foi divulgada na quarta-feira no site oficial do actor, adiantando que a morte se seguiu a uma breve doença. Não faltaram reacções, tendo-se focado quase unanimemente nas personagens, e particularmente no lirismo glacial do breve monólogo final de Blade Runner. A acção do filme que chegou aos cinemas em 1982, passa-se em 2019, e assim, ao desaparecer este ano Haeur deixa ainda uma rima final com aquele clássico.
Com o seu metro e noventa, loiro, e uma beleza que destrata aquela mais convencional, nos anos 80, quando foi exposto à celebridade internacional, Hauer parecia destinado a juntar-se ao lote de vilões que, na era Reagan, Hollywood veio buscar à Europa, para que a frieza nórdica se contrapusesse aos heróis americanos. Só que o holandês soube aproveitar o impressivo contorno dos maus da fita não para servir às audiências uma forma de terror simples, que se limita a provocar choque, mas um que as questiona e envolve.
Nascido em 1944 em Breukelen, Rutger Hauer era filho de actores que dirigiam uma escola de teatro em Amesterdão. Antes de ingressar na Academia de Teatro e Dança da capital, antes ainda fugiu de casa, aos 15 anos, e seguindo a sua paixão pelo mar acabou embarcado a limpar o convés num navio de mercadorias. Isto durou um ano. Depois ainda passou pela marinha holandesa, mas essa forma de disciplina também não era para ele, e conseguiu ser dispensado por «inaptidão psicológica».
Quando decidiu tornar-se actor, não precisou de muito para chegar à televisão, sendo dirigido numa série (Floris, 1969) pelo realizador Paul Verhoeven, que acabou por o chamar para vários filmes como Delícias Turcas (1973), Soldier of Orange (1979) ou Amor e Sangue (1983). Hauer não demorou a impor-se e teve ainda papéis marcantes em filmes como Fim-de-Semana com Osterman (1983), de Sam Peckinpah, A Mulher Falcão (1985), de Richard Donner, Terror na Auto-Estrada (1986), de Robert Harmon, A Lenda do Santo Bebedor (1988), de Ermanno Olmi, ou Fúria Cega (1989), de Philip Noyce.