Há dias, um comboio de mercadorias (transporte de areia) que fazia a ligação entre Ermesinde e Entroncamento descarrilou em Cortegaça, perto de Ovar.
O descarrilamento, ao início da tarde, obrigou ao condicionamento da circulação ferroviária numa via única entre Aveiro e Porto até ao princípio da noite – provocando enormes atrasos, por exemplo, no Alfa de ligação entre Porto-Campanhã e Lisboa-Santa Apolónia (mais de 2h20) – e à supressão de várias ligações regionais e interurbanas.
Felizmente sem causar vítimas nem danos por aí além (o comboio saiu dos carris mas não tombou), e à falta de imagens aparatosas, o incidente não mereceu destaque informativo.
Mas a verdade é que merecia. O estado da ferrovia nacional é verdadeiramente calamitoso e merecedor de todas as atenções.
Bateu no fundo dos fundos.
Não é admissível, por exemplo, que uma capital de distrito, como Viseu, não tenha ligação direta de comboio à capital do país. É inaceitável em pleno século XXI.
Portugal está hoje bem servido por uma rede viária – de autoestradas – que reduziu em muito as distâncias entre norte, centro e sul, litoral e interior.
Mas a rede ferroviária foi desprezada e negligenciada a um ponto insustentável.
O plano de José Sócrates para o TGV talvez fosse megalómano. Mas fazia sentido.
Portugal não pode deixar de estar ligado à rede de alta velocidade europeia. É fundamental para não perder competitividade.
E para estar ligado à rede de alta velocidade europeia, basta-lhe ligar à rede espanhola de velocidade alta (AVE).
Espanha, nesta matéria, impressiona. Além de ser, logo a seguir à China, o segundo país com mais quilómetros de carris de alta velocidade, os espanhóis têm já asseguradas ligações ao norte (até Vigo, que tem em finalização a estação de alta velocidade), centro (até Badajoz, na fronteira, com Elvas à vista) e sul (Sevilha e Málaga).
Em Espanha, as críticas da oposição ao Governo em matéria de ferrovia vão no sentido da crítica da concentração do investimento apenas na rede AVE, em detrimento da ferrovia convencional e suburbana.
Ora, em Portugal, nem uma coisa nem outra.
A Autoeuropa, por exemplo, reclama pela ligação da fábrica à rede ferroviária espanhola, para reduzir a dependência dos trabalhadores do porto de Setúbal e dos motoristas de transportes de pesados – cujas frequentes greves claramente ameaçam a produção e o escoamento da produção da fábrica de Palmela.
O porto de Sines também há muito devia ter ligação assegurada a Badajoz. É absolutamente obrigatória.
O projeto que está em cima da mesa passa por assegurar as ligações dos portos de Sines, Setúbal e Barreiro (alternativo ao de Lisboa), bem como do novo aeroporto do Montijo (passando as cargas e descargas da Portela para a ‘outra banda’) a Badajoz e, por essa via, à rede europeia.
Para um segundo momento ficaria a ligação entre Lisboa e Porto e, depois, Vigo.
Este projeto – entre outros – tem garantido o apoio e grande parte do financiamento pela Comissão Europeia.
Mas não há milagres: é preciso um forte investimento nacional. Que, tirando Sócrates, nenhum primeiro-ministro sequer admitiu pensar fazer.
Ainda por cima, não é por esta via – como bem resulta do que se passa na vizinha Espanha – que se resolvem os problemas das ligações suburbanas (as que mais eleitores transportam diariamente entre os arredores das grandes cidades e os centros de serviços, empresariais e industriais).
Carlos Carreiras tem colocado o dedo na ferida na linha de Cascais.
Já lá vai o tempo em que a ligação até ao Cais do Sodré se fazia até como passeio. E a viagem ao nascer do Sol pela ‘linha’, de Cascais para Lisboa, chegava a ser um privilégio, mesmo para quem ia ‘pegar ao serviço’. Então ali na zona de Paço de Arcos, mesmo juntinho ao Tejo, chegava a ser de sonho – para quem fosse acordado ou para quem já adormecera, que os comboios eram do mais cómodo que havia. Nada a ver com os de hoje, qual metropolitano vandalizado e apodrecido.
Na linha de Sintra, o cenário não é melhor.
Dos comboios suburbanos, o único que se safa, por ser bem mais recente, é o que faz a ligação ao sul do Tejo pela Ponte 25 de Abril. O resto é a desgraça que se sabe.
Bem pode o ministro das Infraestruturas pedir desculpa.
Claro que faz bem em fazê-lo, porque a qualidade dos serviços prestados ao povo contribuinte é de bradar aos céus.
E que Deus lhe perdoe, se, mais do que devolver à circulação ferroviária o material circulante que está parado, implementar um plano estratégico de investimento sério na ferrovia, passando pela recuperação das redes suburbanas, mas, sobretudo, apostando na ligação de Portugal à rede europeia de alta velocidade, nem que seja só por Badajoz.
As gerações futuras agradeceriam.
Em vésperas de eleições, só não dá para perceber por que razão esta questão, estratégica, da ferrovia não é tema para ninguém.