A Biblioteca Nacional de Israel (BNI), em Jerusalém, revelou esta semana um conjunto de manuscritos de Franz Kafka (1883-1924) que há muito não viam a luz do dia. Composto por cartas, rascunhos, um bloco de notas com exercícios de hebraico e até desenhos, o lote estava guardado há mais de 60 anos num cofre de um banco de Zurique, Suíça, e foi o último do espólio do escritor checo a chegar à instituição israelita após uma decisão judicial que atribuiu à Biblioteca Nacional de Israel a guarda do legado literário de Kafka. «Uma parte dos desenhos é conhecida, outros não são – essa é talvez uma das coisas mais importantes», explicou Stefan Litt, curador da área de humanidades da BNI, ao apresentar a coleção. «Todos os escritos de Kafka que temos à nossa guarda vão ser digitalizados e estarão disponíveis ao público em todo o mundo».
Anteriormente, os documentos, avaliados em milhões de euros (em 1988 o original de O Processo foi vendido num leilão em Londres por um milhão de libras, tornando-se o manuscrito mais caro até à data), encontravam-se na posse de duas irmãs, Eva Hoffe e Ruth Wiesler, que alegavam tê-los recebido como herança da sua mãe, Esther Hoffe, secretária e última companheira de Max Brod, o grande amigo e executor testamentário de Kafka. Mas em 2016 o Supremo Tribunal de Israel determinou que o arquivo do escritor fosse entregue à BNI, de forma a cumprir a vontade de Max Brod. Mais recentemente, em maio de 2019, um tribunal de Wiesbaden, na Alemanha, confirmou a devolução de documentos que, segundo Israel, tinham sido roubados de Tel-Aviv e vendidos ao Arquivo Literário de Marbach e a colecionadores privados.
A BNI tem, desde então, recebido faseadamente vagas de papéis do escritor. Alguns vieram de cofres em bancos em Israel, outro grupo estava guardado no interior de um frigorífico avariado, num apartamento degradado e cheio de gatos em Tel-Aviv. A última de cinco remessas, composta por 60 pastas, chegou há duas semanas a Jerusalém, por ordem de um tribunal suíço. Encontrava-se no cofre da sede do banco UBS em Zurique e, segundo Stefan Litt, o curador da BNI, «não contém surpresas literárias». Ainda assim, inclui valiosa correspondência entre Kafka e Brod e apontamentos que fazem luz sobre a personalidade do escritor.
Feliz na infelicidade
Nascido em Praga numa família de comerciantes abastados, Franz Kafka ocupa um lugar único na literatura europeia do século XX. Era considerado um «puro» pelos seus pares e Max Brod, seu amigo durante mais de duas décadas, via nele «um milagre» e o maior poeta do seu tempo, mesmo antes de Kafka ter publicado sequer uma linha.
A sua literatura não lhe trouxe qualquer sucesso junto do público nem honrarias, ficando-lhe colada a imagem do fracasso e da tristeza – que, aliás, muito contribuiu para o culto de que viria a ser objeto. Quando revelou a Max Brod que sofria de tuberculose, este disse-lhe: «Tu és feliz na tua infelicidade».
A morte precoce de Franz Kafka e o destino dos seus escritos tornaram-se um capítulo quase lendário da história da literatura do século XX e emprestam uma aura muito particular ao escritor. Brod contava que, ao ver a morte aproximar-se, Kafka lhe terá dito, referindo-se a si próprio na terceira pessoa: «Ele tem medo de morrer porque ainda não viveu».
Tudo ‘deve ser queimado’
O escritor acabaria por falecer a um mês de completar 41 anos e a família encarregou Brod de gerir os milhares de papéis que deixou para trás. Após o funeral, Brod deslocou-se ao apartamento do amigo e os pais mostraram-lhe a secretária onde o filho escrevia. Entre um amontoado de canetas, papéis e bugigangas, encontrou duas notas que lhe eram dirigidas. A primeira dizia:
«Querido Max,
O meu último pedido: tudo o que deixo para trás […] sob a forma de cadernos, manuscritos, cartas, as minhas e as de outras pessoas, esboços e por aí fora, deve ser queimado antes de ser lido e até à última página, assim como todos os meus escritos que tu ou qualquer outra pessoa possam ter […]. As cartas que não te sejam entregues devem pelo menos ser fielmente queimadas».
Na outra, provavelmente anterior, escrita a lápis, Kafka dizia que talvez já não recuperasse da doença e que, nesse caso, apenas seis das suas histórias fossem preservadas, e tudo o resto destruído, e «o mais depressa possível». A lista deixava de fora algumas das suas obras-primas como O Processo, O Castelo e Amerika.
Enredo kafkiano
Por que não satisfez então Max Brod o último desejo do amigo? Segundo o próprio, quando Kafka lhe manifestou, cara a cara, o desejo de que queimasse os seus escritos, Brod recusou terminantemente cumprir a tarefa. Por isso concluía: «Se estivesse absoluta e definitivamente determinado a que as suas instruções fossem cumpridas, o Franz devia ter escolhido outro executor testamentário».
Brod conservou sempre o legado literário de Kafka. Em 1939, com a Checoslováquia já ocupada pelos nazis, trocou Praga pela Palestina, levando consigo os papéis do amigo numa mala.
Após enviuvar, em 1942, Brod iniciou uma relação íntima com a sua secretária Esther Hoffe. Esta acabaria, por sua vez, por ficar como depositária dos escritos de Kafka a partir de 1968, ano da morte de Brod. Quando Esther Hoffe morreu em 2008, aos 101 anos, os papéis passaram para as suas duas filhas.
Desde esse ano que a Biblioteca Nacional de Israel reclamava o valioso espólio, alegando que Max Brod manifestara o desejo de que os escritos fossem entregues a uma instituição em Israel. «A Biblioteca Nacional reivindicava a transferência do arquivo porque era esse o desejo de Brod manifestado no seu testamento», afirmou recentemente o presidente da instituição.
Por sua vez, as filhas de Hoffe alegavam que os escritos lhes haviam sido transmitidos como herança pessoal, tratando-se, portanto, de propriedade privada. Durante a disputa judicial, as irmãs Hoffe passaram por enormes dificuldades, uma vez que os bens e contas bancárias da mãe foram congelados. O enredo, que já foi apelidado de ‘kafkiano’, envolveu tribunais de Israel, Alemanha e Suíça, termina agora com a entrega do espólio à BNI.