Tudo começou com uma fotografia. Di Stéfano era um tipo fotogénico, mas dessa vez ficou mal. Na imagem, quero dizer. Conta-se o episódio de uma penada: há muito que as coisas não corriam bem entre Alfredo e Miguel Muñoz, o treinador do Real Madrid. Foram apanhados a discutir de forma acesa no acesso aos balneários de Chamartín. Ainda por cima por um indivíduo com uma máquina fotográfica na mão. Todos sabemos do tipo de estragos que um negativo é capaz. O conflito entre ambos saiu na primeira página de um jornal de Madrid e confirmou-se publicamente. Deixou definitivamente de ser um boato.
O Real e Alfredo Di Stéfano estavam à beira de um jogo fundamental. Por diversos motivos. A derrota de 1962, frente ao Benfica, em Amesterdão, tinha deixado a Europa convencida do fim da grande equipa que vencera as primeiras cinco Taças dos Campeões Europeus consecutivas. Agora, dois anos mais tarde, era altura de provar o contrário face ao Inter de Milão. Só que, ainda por cima, os italianos eram orientados por um treinador que ficara odiado em Madrid depois da sua passagem por Barcelona: Helenio Herrera. HH, como a imprensa gostava de o grafar, não era apenas um homem arrogante e provocador. Implantara no Inter um ‘catenaccio’ embirrento, um estilo de futebol defensivo capaz de adormecer bacilos se preciso fosse. O Real não iria jogar apenas contra um adversário irritante. Jogaria contra um estilo de jogo e contra uma forma de estar no futebol. No fim de contas era o Real Madrid contra o anti-Real Madrid. Em todos os aspetos. E Alfredo Di Stéfano não sabia ainda que iria ser o seu último jogo com a camisola branca que vestira durante nove anos, mudando para sempre a face do clube e servindo de alavanca para que ele se tornasse, para sempre, o maior clube do mundo.
«Malhas que o Império tece…», como escreveu Pessoa, n’A Mensagem. O menino bonito de Don Santiago Bernabéu envelheceu e engordou. Na véspera da final de Viena, houve mesmo um desportivo que teve o atrevimento de publicar uma fotografia de Di Stéfano e Ferénc Puskás no treino. A legenda perguntava: «Qual deles está mais gordo?» Nem as estrelas têm, pelos vistos, um brilho imarcescível. Estas eram estrelas cadentes. Tão cadentes que caíram, facilmente, perante o Inter entediante de Herrera (1-3).
Alfredo Di Stéfano fazia 38 anos pouco mais de um mês depois. Muñoz tomara a decisão de não o querer mais. A direção do clube ofereceu-lhe um contrato com o seu quê de bizantino: só até novembro. Se não estivesse a render até aí, podia sair. Recusou, humilhado. Ainda foi obrigado a deslocar-se com a equipa para dois particulares, em França. Lesionado, alinhou por breves minutos contra o Rouen. Ponto final! Di Stéfano deixava o Real e o Real via-se livre de Di Stéfano. A sua maior mágoa foi ver que Puskás iria continuar. Só tinha menos um ano do que ele. E uma barriga maior. Alfredo recebeu vários convites, desde o Celtic ao Milan. Escolheu Barcelona. E o Español. Foi apresentado com a camisola azul e branca, às riscas verticais, no dia 19 de agosto de 1964. O sorteio do campeonato ditou que, exatamente uma semana mais tarde, o Real Madrid se deslocaria a Sarriá. Um daqueles jogos que toda a gente julgaria impossível iria ter lugar.
Como nos filmes Poucos jogadores como Di Stéfano participaram em tantos filmes, alguns deles tendo-o como protagonista: Once Pares de Botas (a ascensão e queda de um grande jogador); Con Los Mismos Colores (a história de uma greve no futebol argentino); La Saeta Rubia (a da sua vida); La Batalla de Domingo (a revisão feita por ele próprio sobre a sua carreira depois de ter abandonado os relvados)… Junte-se-lhe mais meia-dúzia de documentários. Confirmava-se que Alfredo era fotogénico.
Às 16h00, com transmissão pela TVE, Di Stéfano protagonizava mais um filme: defrontava, pelo o Español, o seu Real Madrid. Perdeu. E fez uma exibição triste. Talvez a exibição do seu estado de espírito. «Creo que el Español remontara su derrota en casa ante el Madrid y espero poder ganarme de nuevo la confianza de los seguidores. Ellos tuvieron más suerte, metieron un gol en un saque de falta y yo en cambio en mi oportunidad, Araquistain se la encontró por poco», disse no fim.
Havia que esperar. O adeptos queriam ver Di Stéfano de novo em Chamartín. Um chamado do sangue? Ou, pelo contrário, uma vontade de sangue? Para que os madrilenos pudessem aplaudir, agradecidos, o seu herói de tantos anos, ou para que pudessem vilipendiá-lo e terminar de vez com o seu fantasma branco que ia pairando sobre as bancadas do enorme estádio do Paseo de La Castellana?
O jogo da volta estava marcado para janeiro de 1965. Alfredo não foi. Além de castigado por causa de uma expulsão frente ao Levante, aleijara-se numa mão. Os adeptos madridistas esperam por ele, mas em vão. A ausência de Di Stéfano foi, também, de alguma forma fantasmagórica. O Español venceu por 1-0. Confirmou a previsão da Seta Loura uns meses antes: «Creo que el Español remontara su derrota en casa ante el Madrid…».
Pois… «Malhas que o Império tece». Qualquer Império, mesmo de um homem só. Imperador Alfredo.
Di Stéfano ficou em Barcelona mais uma época. Os ventos revoltos da sua saída do Real acalmaram entretanto. Em Chamartín iam surgindo novo ídolos e Alfredo ficava cada vez mais velho, cada vez menos imperial, cada vez menos decisivo. Em 60 jogos com a camisola do Español ficou-se pelos 14 golos. Falhava jogos por via das lesões teimosas. Percebeu, finalmente, que o corpo já não cumpria a vontade do cérebro.
Não voltou a jogar em Chamartín contra o Real (só pisou o relvado, aliás, uma outra só vez, num desempate do Español para a Copa do Rei frente ao Gijón), mas esteve presente em Sarriá, na segunda volta do campeonato. Bateu-se com as ganas de um velho leão enfraquecido, exibiu o que sobrava dos seus infinitos atributos técnicos, mas não era mais a Seta. A lentidão dos anos emperrava-lhe os músculos. O público empurrava-o, como se quisesse soprar-lhe vento pelas costas, mas a vela não enfunava. O Español superiorizou-se ao seu adversário, o encontro terminou empatado (1-1), mas Di Stéfano parecia tão perdido no meio do campo, após o apito final, como um pugilista que tivesse sido atingindo em cheio no queixo por um violento ‘uppercut’.
Nessa época, o Real conquistou a sua sexta Taça dos Campeões Europeus. A primeira sem Alfredo Di Stéfano.
Chegara o futuro e Alfredo continua preso nas grades do passado. Demoraria a aprender o que é a liberdade…