Um velho ditado português diz que em terra de cegos quem tem um olho é rei. A China é conhecida por ter um sistema de vigilância altamente sofisticado, com meios tecnológicos aprimorados ao dispor para controlar as suas populações. E em Hong Kong isso não é exceção, apesar de haver ordens legais diferentes sob a fórmula «um país, dois sistemas». O clima de tensão na antiga colónia britânica era sentido nas ruas, o desejo de maior abertura democrática dentro da sociedade de Hong Kong já tinha sido exposto em 2014, na chamada revolução dos guarda-chuvas. Mas isso não quer dizer que Pequim não tenha sido apanhada de surpresa com o desenrolar dos protestos no grande hub financeiro asiático, por muitos olhos que por lá tivesse.
Um mês antes da manifestação que juntou mais de um milhão de pessoas (Hong Kong tem sete milhões), no dia 9 de junho, o vice-primeiro-ministro chinês havia dito que a atmosfera política que se vivia na cidade tinha mudado «para melhor» e que Hong Kong caminhava «para o desenvolvimento». Todavia, o clima não era tanto de acalmia e o nervosismo da população com a crescente interferência de Pequim na península já se tinha feito sentir no dia 28 de abril, com a realização de uma manifestação que juntou cerca de 130 mil pessoas contra a lei de extradição.
Já houve quem dissesse que há décadas em que nada se passa e que há semanas que acontecem décadas. Foi assim em Hong Kong. Dos protestos do início de junho à invasão do Conselho Legislativo, no dia em que se comemorava a transferência de soberania da cidade para a China, passaram umas meras semanas e a velocidade a que se foram desenrolando os acontecimentos ficou difícil de acompanhar, até porque os protestos não têm líderes definidos e não falam a uma só voz.
Pelo meio, houve a repressão policial das manifestações do dia 12 de junho, que só aumentou a indignação daqueles que se manifestavam, solidificou e deu força ao movimento. O Governo decidiu qualificar os confrontos dos manifestantes com a polícia nesse dia de «motins», acusando dezenas de manifestantes de incentivo à violência.
Três dias depois, Carrie Lam, a chefe do Governo de Hong Kong, arrumou a lei de extradição na gaveta, lamentou a maneira como conduziu o processo, mas não pediu desculpa pela repressão policial e não quis deixar de descrever os confrontos de 12 de junho como «motins». No dia seguinte, 16 de junho, dois milhões de pessoas (quase 30% da população) encheram as ruas de preto numa manifestação pacífica contra aquilo que viam ser a intransigência de Lam.
Volvidas 10 semanas de protestos consecutivos, Hong Kong transformou-se num autêntico campo de batalha. Os confrontos com a polícia intensificaram-se, a violência normalizou-se e até as tríades parecem ter-se metido no assunto. Depois de dois mil disparos de gás lacrimogéneo, os manifestantes não desistem das suas reivindicações.
Têm cinco exigências. A primeira é a completa retirada da lei de extradição. Os manifestantes estão céticos em relação à promessa de Lam, que classificou-a como «morta», em vez de «retirada», havendo, assim, uma disputa semântica sobre a questão. A segunda, um inquérito independente à violência policial, o que leva, por sua vez, à terceira e quarta reivindicação: a retirada da classificação dos confrontos do dia 12 de junho como «motins» e ao abandono de todas acusações contra os manifestantes presos. Por fim, exigem a retoma da reforma eleitoral – que está suspensa desde 2014 -, em direção ao sufrágio direto e universal, sem a interferência de Pequim, que escolhe quem se pode candidatar.
O tom cada vez mais agressivo de Pequim
O Governo central foi completamente apanhado de surpresa, embora tivesse imensos canais de informação que recolhem dados para Pequim, oficiais e informais, de monitorização da opinião pública. Ou seja, tem toda uma rede, de académicos a burocratas das empresas estatais, que enviam relatórios diários sobre o que se passa em Hong Kong aos decisores políticos da capital.
Mas em Pequim ninguém esperava que um milhão de pessoas tomassem as ruas, muito menos que crescesse um movimento sólido e constante de contestação como o que tem ocorrido. Em resposta, o Governo enviou um «número recorde de pessoas» para recolher informação, de acordo com fontes do South China Morning Post.
Preparou-se. Pequim não quis reagir sem saber exatamente o que se passava. Começou por ignorar os protestos, mas lentamente foi tomando posições e endurecendo a linha.
No início, as reações do Governo central não passavam de meras expressões de apoio ao Governo local. No entanto, com o rol dos acontecimentos, Pequim começou a ligar os protestos a uma alegada intervenção do Ocidente que quer destabilizar a China, com os Estados Unidos à cabeça, chegando mesmo a rotular as ações dos protestantes de «terroristas».
Os avisos de Pequim aos protestantes de Hong Kong são cada vez mais constantes e o seu aparato de propaganda agora tenta deslegitimar os protestantes: os meios de comunicação oficiais da China, quando antes nem mencionavam os protestos em Hong Kong, agora mostram imagens da violência na cidade, tentando puxar o «continente» para o lado do Governo.
As televisões estatais mostraram, durante esta semana, imagens de exercícios militares em Shenzen, cidade que fica a um dedo de Hong Kong. Nesta quinta-feira, numa rara referência ao massacre de Tiananmen, o editorial do China Global Times, jornal controlado por Pequim, dizia: «Os incidentes em Hong Kong não serão uma repetição dos incidentes políticos de 4 de junho, em 1989».
Mas mesmo assim não afastou a possibilidade de uma intervenção militar. No mesmo texto, o Global Times sugeriu que era uma carta em cima da mesa. «Pequim decidiu não usar a força para reprimir os motins em Hong Kong, mas é uma opção que está claramente à disposição de Pequim», reiterou o jornal, acrescentando que se Hong Kong não restaurar o «Estado de Direito por conta própria e os distúrbios se intensificarem é imperativo que o Governo central aja diretamente».
Esta é a 11ª semana dos protestos. O movimento pela democracia em Hong Kong enfrenta um desafio este fim de semana, depois da violência dos último dias. Com as forças paramilitares à porta, o movimento da Frente de Direitos Humanos e Civis quer fazer de tudo para que a próxima marcha de domingo decorra da forma mais pacífica possível. «Racional, mas não violenta», pedem.