Peço que me desculpem, mas Paris não é um substantivo: é um adjetivo. Paris. Ah! Paris! Para mim, devia levar sempre ponto de exclamação. E, de preferência, um Ah! a precedê-la.
Paris: poderia escrever livros e livros sobre Paris.
Gertrude Stein: escritora, nascida nos Estados Unidos, em 1874, viveu em Paris, a mãe da Lost Generation de que fez parte Ernest Hemingway.
Gertrude Stein: «Nem é tanto pelo que Paris dá; é mais pelo que Paris não tira».
Paris: se perguntassem ao Eusébio quantas vezes ele foi feliz em Paris ouviriam um suspiro. Tantas e tantas vezes o ouvi falar sobre os momentos que viveu em Paris, às vezes na Tia Matilde, sob o carinho do ti’ Emílio, outras vezes nas viagens que fizemos juntos com a selecção nacional, por exemplo.
Desde aquela tarde dos três golos ao Santos, no Parque dos Príncipes. A tarde em que o mundo começou a saber de cor o seu nome. Ano de 1961. Depois dessa tarde, os franceses souberam sempre amar Eusébio de uma forma dedicada, apaixonada, como só os franceses são capazes de amar.
Diferente dos ingleses, pois claro, que lhe devotaram mais admiração e respeito do que verdadeira paixão.
«Paris sera toujours Paris/Plus on réduit son éclairage/Plus on voit briller son courage/Sa bonne humeur et son esprit/Paris sera toujours Paris!», cantava Maurice Chevalier.
Paris e Eusébio brilharam juntos tantas vezes, os dois plenos de luz. Mas, desta vez, procuro um dia preciso: 31 de Março de 1975.
Eusébio estava outra vez em Paris. Jogava-se, no Estádio Colombes, um particular entre Benfica e FC Porto para alegria dos emigrantes. Claro que ainda não o sabia, mas iria marcar nesse jogo o seu último golo com a camisola do Benfica. Seguiria depois a sua vida nos Estados Unidos do futebol nascente, para Boston, primeiro, regressando episodicamente a Portugal para jogar pelo Beira-Mar e pelo União de Tomar.
Nesse mesmo ano, a 30 de Agosto, o Benfica já estivera em Paris e Eusébio com ele. Outro particular, dessa vez com a selecção principal da França. Derrota por 2-4, com Eusébio a marcar um golo. Talvez por isso continue a dizer: «Sempre fui feliz em Paris».
Lugar de sonhos
Em Paris, Eusébio recebeu duas botas de ouro, a última já depois de ter ultrapassado os 30 anos, em 1973.
Mas eu tinha ficado em 1975. Março de 1975. O Benfica seria campeão nessa época. Tinha uma linha avançada temível, embora Eusébio, a conta com lesões, tenha falhado demasiados jogos. Fôra à final da Taça de Portugal e, na Taça das Taças, sujeitou-se a uma eliminação bisonha à conta do PSV Eindhoven.
Mas, nesse dia 31 de Março de Paris, frente ao FC Porto, Eusébio foi capaz de ser Eusébio mais uma vez. Ele conseguia ser Eusébio mesmo com um joelho a desfazer-se à custa de operações contínuas e injecções de novocaína. Só Eusébio conseguiu imitar Eusébio.
No Estádio Colombes, nesse tempo exacerbado de uma Liberdade portuguesa ainda tão jovem, os emigrantes festejavam a pátria. Vermelhos de uma lado; azuis e brancos do outro.
Mas não havia uma cor que conseguisse definir o fim da diatadura e do regime. No vermelho podiam espelhar-se os cravos da Revolução de Abril, mas no azul espelhava-se o céu que, por sua vez, espelha o mar de um futuro que se desejava carregado de alegrias.
Benfica entrando em campo com José Henrique; Bastos Lopes, Malta da Silva, Humberto Coelho (depois Messias) e Barros (depois Artur); Toni, Eusébio (depois Vítor Baptista) e Simões; Moinhos, Artur Jorge (depois Móia) e Diamantino. O FC Porto, por sua vez, com Tibi; Nino (depois Rolando), Teixeira, Vieira Nunes e Gabriel; Marco Aurélio (depois Rodolfo), Simões (depois Seninho) e Peres; Laurindo (depois Flávio), Gomes e Cubillas.
Belas equipas. Esperava-se um confronto equilibrado. Não foi.
O árbitro era francês, como está bem de ver. Chamava-se Bancourt.
A goleada inesperada
Aos 10 minutos já o Benfica vencia: golo de Artur Jorge. Ninguém teria adivinhado que os encarnados iriam desmanchar por completo a tentativa de movimentação dos seus rivais, reduzindo-os a um grupo de homens sem rumo.
Passados sete minutos, Eusébio tomou conta do estádio e do calor das bancadas. Como sempre o fizera ao longo de uma carreira incrível. Livre directo à entrada da área do FC Porto. Eusébio corre para a bola no seu estilo inconfundível, ameaça o pontapé feroz e certeiro. Mas à última hora decide diferentemente. Abranda o sprint, aplica o pé por debaixo da bola, fá-la subir sobre a barreira, sobre o guarda-redes Tibi, e cair em folha seca para lá da linha de golo, refugiando-a no conforto das redes.
Golo lindo. Golo de Eusébio! O último pelo Benfica, embora ele não o soubesse, embora ninguém o soubesse. Talvez tivesse, nesse caso, sido comemorado de outra forma, mais íntima, mais sensível.
Só que o jogo não estava para isso. O Benfica dominava por completo o seu adversário e prometia uma goleada, tal como Eusébio prometia mais golos. Teve-os nos pés, mas não cumpriu a promessa. O seu golo seria único, irrepetível.
Até ao intervalo, o Benfica marcaria mais dois: por Humberto Coelho (23 minutos) e Toni (34 minutos). 4-0 em 45 minutos! Até onde poderia chegar a goleada ameaçadora, já concreta?
Tudo mudou no segundo tempo. O Benfica abrandou o ritmo, as substituições em cadeia confundiram a clareza do jogo.
Além disso, Eusébio não regressou para a última metade do confronto.
Também ainda não o sabia, mas só voltaria a jogar pelo Benfica mais uma vez, em Junho, em Marrocos, contra uma selecção de jogadores africanos.
Um jogador chegava ao fim, nasceria o mito.
O FC Porto equilibra-se e equilibra a contenda. Gomes reduz para 1-4 aos 60 minutos, mas a desvantagem é demasiado larga para que ainda possa ser dobrada.
Aos 81 minutos há um penalti contra o FC Porto. Eusébio já não está, Humberto Coelho é chamado a marcar e faz o 5-1.
«Só uma vez não marquei golos em Paris», dizia-me Eusébio cuja memória raramente se enganava. «Foi contra o Stade de France e perdemos por 0-1. De resto, lá nunca falhava».
A vitória é gorda, indiscutível.
Para o Benfica, como para Maurice Chevalier, «Paris sera toujours Paris». Eusébio, adeus…