E m meados de agosto de 1819, alguns dias antes da abertura do novo Salon do Louvre, o pintor Théodore Géricault (1791-1824) dirigiu-se ao local da exposição para ver como estava disposta a sua monumental A Jangada da Medusa, uma pintura de sete por cinco metros. Apercebendo-se de que havia demasiado espaço livre do lado direito da composição, o que a desequilibrava, levou a enorme tela de volta para o ateliê e pintou, naquela zona desguarnecida, um corpo deitado já sem vida.
Embora já tivesse ganho uma medalha de ouro no Salon de 1812, o que lhe trouxera notoriedade imediata, Géricault apostava tudo nesta pintura de grandes dimensões para afirmar de vez o seu nome no meio artístico. Deparara-se com o tema do chocante naufrágio nas páginas dos jornais parisienses, no seu regresso de uma viagem a Itália onde tinha apreciado as obras de mestres como Miguel Ângelo, Ticiano e Rubens.
Entre novembro de 1818 e junho de 1819, de cabeça rapada como um monge, Géricault sujeita-se a uma disciplina severa para trabalhar sem distrações. Vive recluso entre o ateliê e um quarto adjacente, quase sem sair, e é a porteira que lhe leva as refeições.
A obra que daí resulta mostra o drama dos náufragos da fragata La Méduse, abandonados à sua sorte após a embarcação ter encalhado num banco de areia a 160 quilómetros da costa da Mauritânia. Ao fim de 13 dias à deriva sem água nem alimentos, das 145 pessoas que seguiam inicialmente a bordo da jangada sobreviviam apenas 15, e mesmo essas num estado próximo do delírio, tendo recorrido inclusivamente a práticas de canabalismo.
‘A correr como um possesso’
Géricault escolheu representar o momento em que os infelizes avistaram o brigue Argus, um ponto minúsculo no horizonte – algo que os deixou entre a euforia e o desespero, pois duvidavam que a embarcação os tivesse visto (e, de facto, ainda passariam mais duas horas convictos de que tudo estava perdido). Para chamar a atenção dos seus salvadores, um dos passageiros da jangada eleva-se acima dos outros agitando uma camisa – significativamente, um negro, o que tem sido visto como uma declaração política contra o esclavagismo. Outro, ao centro, estende o braço na direção do navio salvador:para esse personagem, o pintor usou como modelo o seu amigo Eugène Delacroix.
«Géricault permitiu-me contemplar A Jangada da Medusa enquanto trabalhava nela», escreveu Delacroix no seu diário. «Isso teve um tal efeito sobre mim que assim que saí do seu ateliê comecei a correr como um possesso até casa, sem que nada me pudesse deter».
Mas nem todas as reações foram tão entusiásticas. Embora a pintura ficasse pendurada demasiado alta para ser convenientemente apreciada, quando o Salon abriu as portas a 25 de agosto de 1819 não havia ninguém que lhe ficasse indiferente. Os olhares eram ao mesmo tempo atraídos e repelidos por aquela mole de cadáveres e moribundos. A crítica reagiu com cinismo. «São gregos ou romanos?», questionava um crítico acerca das personagens representadas. «São turcos ou franceses? Sob que céu navegam eles? Em que época da história antiga ou moderna se desenrola esta terrível catástrofe?». Outro dizia querer ver-se livre «desta pintura que me ofende quando entro no Salon». Segundo Henry Houssaye, historiador especialista na época napoleónica, este crítico não estava sozinho – «fazia eco da opinião unânime dos amateurs, do público e mesmo da maior parte dos artistas».
Cheiro a carne putrefacta
Géricault apresentou a sua obra-prima sob o título genérico Cena de um Naufrágio, para não melindrar as autoridades, em particular a monarquia recentemente restaurada depois do período napoleónico, que era apontada como responsável pela tragédia da Medusa. Mas na realidade o pintor fora quase obsessivo na reconstituição dos pormenores daquele acontecimento específico que deixou a sociedade francesa em estado de choque.
Além de ter lido o relato dos sobreviventes, o pintor empreendeu um trabalho quase de repórter ou detetive. Entrevistou sobreviventes e pediu a sete deles que posassem para si para servirem de modelo à pintura. De acordo com indicações das testemunhas, pediu ainda ao seu carpinteiro para fazer um modelo a uma escala reduzida (a original tinha vinte metros de comprimento e sete de largura) mas detalhado da jangada.
Além disso, visitou doentes num hospital e com a ajuda de um amigo médico, levou para o ateliê membros amputados, obtidos na morgue de um hospital, e até uma cabeça decepada. O cheiro a carne putrefacta, segundo rezam as testemunhas, era insuportável, mas o artista precisava desses ‘adereços’ para tornar a sua obra-prima o mais realista e convincente possível.
A Jangada da Medusa recebeu uma das 32 medalhas de ouro atribuídas pelo Salon de 1819. Porém, não recolheu qualquer um dos dez prémios em dinheiro atribuídos pelo júri – ficando num ingrato 11.º lugar. A frieza com que a crítica recebeu a pintura levou o autor a procurar reconhecimento do outro lado do Canal da Mancha. Em Londres, exposta quase ao nível do chão, o que permitia ao público um envolvimento completamente diferente com a cena, obteve um sucesso espetacular, sendo vista por 40 mil pessoas, o que rendeu ao pintor 20 mil francos (o dobro do 1.º prémio do Salon). A crítica britânica também não lhe poupou elogios.
Apaixonado por cavalos (de que deixou pinturas magistrais), Géricault descobriu em solo inglês as corridas de Derby, que representou numa tela de 1821. Ironicamente, essa representação ficaria para a história como um exemplo de como não representar cavalos em movimento (os animais, com as quatro patas no ar, parecem estar a pairar acima da pista).
Géricault adoeceria em Inglaterra e, de regresso a Paris, várias quedas de cavalo deteriorariam irreversivelmente a sua saúde. Só montava garanhões – e os mais fogosos. Delacroix viu-o no leito de morte, já cadavérico e em agonia, num estado que parecia replicar o das personagens de A Jangada de Medusa. Após a morte do seu autor, e face a sucessivas recusas do Estado para a adquirir, a pintura seria vendida em leilão a um particular. Mas alguns dias passados, Forbin, o fiel amigo do pintor que tanto batalhou para que a obra fosse para o Louvre, conseguia finalmente que o Estado pagasse o valor justo e que o proprietário a cedesse. Encontra-se na ala Denon do Louvre, batizada com o nome do mesmo diretor que em 1812 tinha expulso o impetuoso Géricault do museu.
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