De Macron a Cristiano Ronaldo, a afirmação tem sido partilhada nos últimos dias para reforçar a importância de proteger a maior floresta tropical do planeta: com os incêndios da Amazónia, está em risco o “pulmão do planeta”, responsável por 20% do oxigénio que respiramos. “Isso é bobagem”, respondeu o ministro do Ambiente do Brasil. Redes sociais à parte, especialistas ouvidos pelo i ajudam a perceber o que está em causa quando se fala de proteger a Amazónia da desflorestação e das queimadas. Sim, produz-se oxigénio na região, mas a frase pode ser enganadora, diz Scott Denning, investigador em ciências atmosféricas da Universidade do Colorado que publicou esta semana um artigo a rebater a ideia do “pulmão do planeta”. O que não significa que não haja preocupação. “O perigo não é ficarmos sem oxigénio, mas diminuir a captura de CO2 e agravar o cenário de alterações climáticas”, afirma Filipe Duarte Santos, investigador em alterações climáticas da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
Uma questão de fotossíntese A floresta da Amazónia estende-se por mais de 7 mil milhões de quilómetros quadrados na bacia do rio Amazonas, estando a maioria localizada em território brasileiro. Sendo a maior floresta tropical do planeta, com milhões de árvores e outras plantas, não é difícil perceber por que se fala de oxigénio: na fotossíntese, o processo usado pelas plantas para transformar energia solar em energia química – e assim produzirem os compostos químicos necessários à sua alimentação – ocorre a absorção de CO2 e a libertação de oxigénio.
Foi neste ponto que Scott Denning quis clarificar o contributo da Amazónia, sublinhando que, apesar de se gerar oxigénio na floresta amazónica, existem reservas suficientes de oxigénio no ar para “milhões de anos” e todo o novo oxigénio produzido anualmente na região não aumenta nem diminui os níveis de O2 no ar, sendo a maioria do oxigénio no ar proveniente dos oceanos. “A base do número 20% é que as florestas tropicais representam cerca de 20% da fotossíntese global. Cada molécula de CO2 absorvida pelas plantas está associada a uma molécula de oxigénio livre (O2) para atmosfera”, diz ao i. “Mas quase todo o oxigénio produzido pelo crescimento das plantas é consumido pela respiração de micróbios e animais, deixando o oxigénio inalterado no ar. A produção anual de oxigénio pelas plantas é de cerca de 10 quadriliões (1 seguido por 16 zeros) moles. O consumo anual de micróbios e animais é quase exatamente o mesmo”, continua Denning, apontando dois fatores que contribuem para variações maiores no oxigénio disponível no ar: por um lado, a vegetação morta enterrada no mar antes de ser comida por micróbios, que leva a um “minúsculo aumento do oxigénio a cada ano”. Por outro lado, a queima de combustíveis fósseis, refere, que retira O2 à atmosfera. “É cerca de 20 vezes maior do que o oxigénio consumido pelos incêndios florestais”, diz.
Um escudo contra o aquecimento Se não é o fim do oxigénio que está em causa, o caso muda quando se pensa que, pela mesma via da fotossíntese, as plantas “aspiram” dióxido de carbono do ar. As concentrações de CO2 na atmosfera continuam a bater recordes e a comunidade científica tem vindo a alertar para a importância de travar o ciclo e conter o aumento do aquecimento até 2ºC até ao final do século. Filipe Duarte Santos explica que é aqui que reside, em termos de clima, um dos maiores contributos da Amazónia: a floresta retira da atmosfera cerca de um quarto do dióxido de carbono que as plantas conseguem anualmente ‘limpar’, explica. “Se acabarmos com a Amazónia, em vez de retirarmos um quarto, retiram-se três quatros. Isto aceleraria o aquecimento global mas não só, porque as plantas também têm a função de reterem água. A tendência para a desertificação da região seria maior, os solos perdem aptidão agrícola, deteriorando as condições de vida da população que habita a Amazónia, muitos povos indígenas que não têm outros meios de subsistência que não aquilo que a floresta lhes dá”.
Uma menor capacidade de captura de CO2 aliada ao aumento da emissão de dióxido de carbono por via dos próprios incêndios acabaria por prejudicar duplamente o objetivo de estabilizar as emissões mundiais. “Se aumentarmos a concentração de CO2, aumenta a temperatura e aumenta o efeito de estuda. Para controlarmos as alterações climáticas, é preciso diminuir a concentração global de CO2 na atmosfera”.
Segundo Denning, a Amazónia ainda está num ponto de equilíbrio em que a absorção de CO2 compensa “aproximadamente” o dióxido de carbono emitido pela desflorestação para a construção de fazendas e explorações agropecuárias, mas o cenário pode mudar. “Quanto mais a floresta for desmatada, mais o balanço vai tender para que a região contribua para as emissões de CO2 e não para a sua captura”, sublinha.
E é aqui que reside uma das principais preocupações, partilhada por ambos os investigadores ouvidos pelo i. Se até 2004 o Brasil conseguiu inverter o ritmo de desflorestação na Amazónia, os últimos dados mostram um aumento exponencial do abate de floresta. Só em julho houve um aumento de 66% na área desmatada face ao mesmo mês do ano passado, que já tinha batido recordes de uma década. Segundo dados citados pela imprensa brasileira, só no mês passado foi detetado o desmatamento de 1.287 km² na região da Amazónia Legal, uma área que equivale à do município do Rio de Janeiro.
“A desflorestação está em curso há séculos. Primeiro começou no mundo desenvolvido, mas desde os anos 50 tem sido muito pior nos trópicos. O Brasil conseguiu reduzir as taxas de desflorestação em 80% depois de um pico em 2004 mas agora está a voltar atrás”, alerta Denning. Filipe Duarte Santos recorda também o sucesso do país nesta área e lamenta o retrocesso. “Este Governo brasileiro tem como prioridade o crescimento económico a curto prazo. A exploração da Amazónia, desflorestando, queimando pastagens para gado e produção de soja, é algo que dá rendimento”, diz, uma conjuntura que acaba por ser favorável à multiplicação de queimadas para fins agropecuários, que explicarão a grande maioria dos incêndios numa floresta tropical. “A floresta é muito húmida, não tem incêndios recorrentes. Nesse aspeto os nossos incêndios, muitas vezes causados por fogo posto, são diferentes. No Brasil estamos perante queimadas que, num ano de tempo seco, acabam por ter um maior risco de ficar descontroladas.”