«Ganhar um prémio num festival tão importante como Locarno mostra como tudo é possível, até para um tipo velho com um pequeno filme feito sem dinheiro», dizia no fim de semana passado Pedro Costa em entrevista ao site do Festival de Cinema de Locarno. «Para mim é uma grande honra e espero que possa abrir algumas portas para que o filme seja visto em mais lugares no mundo.» A edição de Locarno que terminou no fim de semana passado com o Leopardo de Ouro entregue a Pedro Costa e o Leopardo de Prata de melhor atriz para Vitalina Varela, a protagonista deste filme a que o cineasta deu o seu nome como título, havia já começado num patamar mais elevado do que o habitual para o cinema português no festival de cinema suíço.
Não sendo a edição em que mais se fazia representar em número, era aquela em que, de forma inédita, estreava três filmes portugueses na competição internacional, aquela em que é disputado o Leopardo de Ouro.
E se Pedro Costa era, desde que foi anunciada a programação completa desta 72.ª edição, a primeira sob a direção de Lili Hinstin depois da saída de Carlo Chatrian para o Festival de Cinema de Berlim, apontado, com este seu Vitalina Varela, apontado como o mais aguardado regresso ao festival que em 2014 lhe havia já entregue o prémio de melhor realização por Cavalo Dinheiro, a decisão do júri de atribuir tanto ao filme como à atriz, Vitalina, as mais elevadas distinções possíveis apenas o confirmaram.
Na história do cinema português, apenas José Álvaro Morais, desaparecido em 2004, aos 60 anos, tinha recebido essa mesma distinção, com O Bobo, no já longínquo ano de 1997. Que era, até agora, e apesar de todos os prémios que o cinema português acumulou desde Manoel de Oliveira, o único «ouro» com que um realizador português tinha alguma vez sido premiado nas competições principais dos considerados os «quatro grandes»: Berlim, Cannes, Locarno e Veneza. Com exceção para as curtas-metragens, com que nos últimos anos João Salaviza venceu, em Cannes, a Palma de Ouro, e Leonor Teles e Diogo Costa Amarante, em Berlim, o Urso de Ouro.
Disse Catherine Breillat, presidente do júri, com o anúncio dos vencedores desta edição, que a obra de Pedro Costa está para lá de qualquer prémio, que o lugar do realizador português vivo que mais longe chegou até aqui é no «panteão do cinema».
Mas na história do cinema Pedro Costa firmou o seu lugar e há muito – sobretudo graças à trilogia Cartas das Fontainhas, iniciada em 1997 com Ossos (Melhor Fotografia em Veneza), um filme que obedecia ainda às convenções das produções de cinema, que continuou depois com No Quarto da Vanda, estreado três anos depois em Cannes. Três laboriosos anos ao longo dos quais, praticamente sozinho e munido dessa já mítica, pelas inúmeras vezes citada, Panasonic DVX100, a câmara de mini DV que comprou por 3 mil euros em Lisboa, filmou 140 horas que deram as quase três pelas quais se prolonga esse segundo volume da trilogia com o qual encontraria essa forma «um pouco mais amadora de trabalhar», mas forma para o que lhe pareceu o equilíbrio entre o que está atrás e à frente da câmara. Ele que o conhecido crítico Peter Bradshaw descrevia no Guardian já há dez anos, a propósito de uma retrospetiva que a Tate Modern de Londres lhe dedicou por essa altura, como «o Samuel Beckett do mundo do cinema» – comparação que ainda assim não chega, argumentava, para transmitir «o quão severa e intransigentemente difíceis os seus filmes se foram tornando». Um «mestre de culto», descrevia ainda, «uma figura amplamente considerada no circuito dos festivais», mas unicamente para «os seguidores [do cinema] de autor mais hardcore».
O reconhecimento que faltava a este um cineasta que, apesar do aclamação nesses círculos, pouco conhecido é, com exceção para os mais cinéfilos, conhecido entre o público português chegou à sétima longa-metragem. Como vem sendo habitual, um híbrido entre a ficção e o documentário, que continua a vir como uma continuação daqueles que o antecederam. Vitalina é afinal a mulher (e personagem) que havia já aparecido em Cavalo Dinheiro, pouco depois da sua chegada a Lisboa. E é prima de Ventura, o imigrante cabo-verdiano que Pedro Costa vem acompanhando desde Ossos.
Desta vez, foi ela, a cabo-verdiana que, aos 55 anos, chega a Portugal dias depois do funeral do marido que, há mais de 25 anos, lhe tinha prometido um bilhete de avião para se juntar a ele em Lisboa. A mulher que «passou toda a sua vida a trabalhar a terra nas montanhas da ilha de Santiago, em Cabo Verde», a mais nova de oito irmãos, que se casou «com o seu primeiro amor, Joaquim, um rapaz da mesma aldeia, Figueira das Naus», que «deixou o país em 1977, com a promessa de trabalhar como pedreiro» e que desde então lhe escreveu «uma ou duas cartas», às quais se juntou um telefonema com a promessa do tal bilhete de avião.
Sobre esse gesto contínuo em que os seus filmes se sucedem, Pedro Costa falou também em entrevista ao site do festival. «É uma relação que dura há mais de 25 anos. Fiz um filme em Cabo Verde, uma produção normal em 35mm. Quando regressei de Cabo Verde a Lisboa, trouxe cartas e presentes para os familiares imigrantes na cidade. Foi assim que conheci o bairro. Aquelas cartas foram a metáfora para o que eu tinha de fazer: ficar com eles, andar por ali, e talvez descobrir novas histórias e novos atores, ou talvez uma nova forma, mais suave, de fazer filmes, um pouco mais amadora. Era ‘97 [o ano de Ossos] e desde então nunca parti. Parece-me que aquelas cartas, que nunca li, foram a origem de muitas histórias desconhecidas para mim, mas vi os rostos das pessoas que leram essas cartas, a ficarem felizes e tristes. Este filme é uma nova carta para esta comunidade e para nós próprios».