Era uma vez uma indústria que parecia viver em constante convulsão criativa. A fábrica de sonhos de Hollywood era verdadeiramente admirável, e orientava as ambições íntimas de milhões. Os grandes astros exerciam um fascínio que terá provocado inveja aos deuses, e os cartazes dos filmes exibiam-nos. A sua beleza e encanto serviam como amuletos da sorte para os estúdios, que geriam a sua imagem pública como se se tratasse de uma nova mitologia. Mas deu-se uma espécie de colapso nesse Olimpo terreno, e hoje parece que estamos a reviver os efeitos do fim da idade de ouro do cinema americano.
Depois de décadas em que aquela parecia ser uma indústria segura, em que os ganhos chegavam e sobravam para cobrir as perdas, ao longo da década de 1960, os grandes estúdios de Hollywood deram uma série de tombos e cumularam prejuízos. O factor principal foi a crescente popularidade da televisão, que ligava as salas de estar de toda a América num culto generalizado à volta de alguns programas e séries de ficção que ninguém queria perder. Além dessa forma de comunhão a partir dos sofás, houve também o fenómeno que ficou conhecido como ‘white flight’, com a migração em grande escala da classé média de ascendência europeia (ou seja, os brancos) das zonas urbanas para os súburbios. Aos poucos, o regime de produção em que os estúdios eram como fábricas criativas, que concentravam todos os aspetos da dinâmica cinematográfica, começou a dissolver-se. Numa medida um tanto desesperada, os estúdios fizeram algo que rima com aquilo a que se assiste nos nossos dias, tentando recuperar as perdas investindo grandes somas numas poucas produções que deveriam transformar-se em filmes-evento. Mas, contrariando as expectativas, isto só serviu para enterrar os estúdios em mais dívidas. O 20th Century Fox, Warner Bros., e o United Artists ficaram à beira da ruína financeira. Desse primeiro ensaio de uma indústria devotada aos blockbusters, entre os flops que ficaram para sempre na memória, contam-se Cleopatra (1963), Star! (1968), and Hello Dolly! (1969). Depois de uns anos à deriva, em que os estúdios tentaram seduzir a população afro-americana concentrada nos centros urbanos – assim originando a criação do ciclo conhecido como Blacksploitation durante a década de 70 –, com Tubarão (1975), de Seteven Spielberg, e Star Wars (1977), de George Lucas, os estúdios deram-se conta de que era possível trazer de novo enchentes às salas de cinema, mas que para isso a indústria tinha de atrair o talento de cineastas capazes de inovar e trazer de novo um sentido de aventura e de espanto que fizesse do cinema esse horizonte sobre o qual a imaginação rompe com novas fronteiras.
Insaciável demanda do lucro
Hoje, com orçamentos de centenas de milhões, filmes que duram bem mais de duas horas, repletos de cenas de acção e efeitos especiais narcotizantes e que geram uma experiência de irrealidade sufocante, as salas de cinema são cada vez menos lugares perigosos e desafiantes e cada vez mais territórios de excitação superficial, cultivando uma emoção que, ao invés de espremer o intelecto, espreme apenas os nervos. Todo o mundo está em convulsão, mas já não se pode contar com Hollywood para lançar as suas sondas em direção ao futuro, antecipando e sonhando com o heroísmo que o dia depois de amanhã exigirá de nós. Numa altura em que estão anunciados novos capítulos da saga The Matrix, de Rambo e de Top Gun, o site Den of Geek mantém uma lista atualizada das muitas produções que irão tentar trazer de volta clássicos mais ou menos recentes. Sejam remakes, sequelas ou adaptações, a impressão que dá é que o cinema abdicou de sondar o desconhecido e, incapaz de testar outras fórmulas, estagnou. Ao todo, aquele site contabiliza cerca de 120 destas produções que dão uso ao desfibrilhador na tentativa de reanimar um paciente anestesiado sobre a mesa.
Ironicamente, foram precisamente os realizadores que assinaram os primeiros blockbusters da era moderna, Spielberg e Lucas, aqueles que profetizaram o desastre que aguarda a indústria do cinema. «Vai acabar por ocorrer uma implosão com três ou quatro, ou até mesmo meia dúzia de filmes com orçamentos estentóricos a espetarem-se nas bilheteiras, e é isso o que vai forçar a uma mudança do paradigma», previu Spielberg em 2013 na cerimónia em que foi inaugurado um novo edifício da USC School of Cinematic Arts. Também presente na sessão, Lucas concordou com o colega e amigo, e disse que serão as próprias salas de cinema a levar a cabo uma pequena revolução, investindo na experiência cinematográfica, com as exibições a parecerem-se cada vez mais com o modelo da Broadway, em que só um número seleto de filmes irá estrear, mantendo-se em sala por períodos bem mais longos. De resto, esta ideia levou Spielberg a recordar que, em 1982, o seu E.T.: O Extraterrestre se manteve nas salas durante um ano e quatro meses.
Actualmente, são os serviços de Streaming como a Netflix, a HBO e Amazon Prime que estão a dar cartas no cinema, com uma oferta cada vez mais variada e abrangente, ao passo que Hollywood tem demonstrado como a insaciável demanda do lucro põe fim a qualquer ilusão de que o cinema comercial norte-americano mereça ainda ser encarado como uma forma de arte. Se no ano passado um número recorde de bilhetes foram vendidos nos EUA, basta olhar para o top dos filmes mais vistos para perceber que este é constituído inteiramente por filmes de superheróis, sequelas e remakes. Aqui estão eles: Black Panther, Avengers: Infinity War, Incredibles 2, Jurassic World: Fallen Kingdom, Deadpool 2, Dr. Seuss’ The Grinch, Mission Impossible-Fallout, Antman and the Wasp, Solo: A Star Wars Story e Venom.
Perda da experiência íntima
Num artigo publicado no Spectator, Daniel J. Flynn lembra que há algumas décadas esta era uma linha secundária no negócio, dando origens a filmes de série B. «Hoje, a indústria do entretenimento alimenta as audiências com a série B dando-lhe o tratamento que estava reservado aos filmes de série A». Para o colunista, não é apenas o ‘produto’ que Hollywood impinge aos seus clientes que se mostra menos criativo e desafiante, mas é o próprio perfil dos criadores que se está a alterar. Não se espera que inventem nada de novo, mas tão só que sirvam as expectativas criadas pela campanha de marketing. «Nós vivemos do borralho do passado até mesmo quando o ridicularizamos pelas suas noções ultrapassadas, pelo que envelheceu mal e, hoje, nos parece insosso e por tudo aquilo que, desde então, caiu na categoria do politicamente incorreto», sublinha Flynn.
O que isto nos diz é que, em certo sentido, a nossa cultura se desfez da capacidade de propor um futuro que não passe pela reapreciação do passado. Ao invés de viver, serve-se da nostalgia e da simulação para atravessar o mundo com o seu olhar que não é capaz de ver nada do que lá está, pressentir o que aí vem, mas que apenas cumula ausências. A própria ideia de progressismo está presa a uma incessante revisão das suas ações, e, no desejo de se reformar, de agir de forma sensível, recai num moralismo insuportável. Há uma perda da experiência íntima, pois tudo tem antes de ser sancionado na esfera pública.
A cada ano, estas fitas em que os super-heróis enfrentam vilões capazes de abalar o destino não só do nosso planeta como de toda a galáxia, alimentam-se de medos e de uma certa sensação de fatalismo que tomou conta de todas as frequências, para atraiçoar qualquer sentido de responsabilidade, consolando-nos com o velho esquema em que, no fim, sem se saber bem como, o bem lá arranja forma de triunfar, e nós podemos voltar a esse estilo de vida que, para benefício de todas as formas de consumo, criou uma geração de pirralhos que faz um berreiro se lhe tiram o brinquedo, mas nem dá conta que o seu carrinho de bebé se dirige para o abismo.
Restam alguns realizadores que se mantém fiéis ao cinema enquanto uma arte que confronta o seu tempo e que recusam ficar reféns das fórmulas de sucesso garantido. Clint Eastwood, Martin Scorcese, P.T. Anderson, Woody Allen, Christopher Nolan e James Gray são exemplos de cineastas empenhados em fazer filmes que, ao serem exibidos numa sala de cinema, chamam o público a um dos últimos templos onde parece ser possível uma verdadeira experimentação coletiva. Não se trata de reunir hordas, nem de excitá-las com tudo aquilo que as identifica como massa, mas de atrair indivíduos a esta forma de culto em aberto, sem dogmas nem certezas, e que ainda se desafia e questiona, perseguindo o inaudito.