Hungria, Irlanda e Israel são três dos quatro países que, segundo estudo divulgado na semana passada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), reduziram a despesa em saúde pública desde o ano 2000. Qual é o quarto? Sim, é verdade, Portugal.
Ou seja, na semana em que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) completou 40 anos de existência ficamos a saber que, pelo menos, na segunda metade de todo esse período o investimento em saúde pública não cresceu, antes pelo contrário.
Estamos a falar dos últimos 20 anos. Mas, se recuarmos um pouco mais (1995), basta recordarmo-nos da famosa gafe das contas de António Guterres para percebermos que, na verdade, o problema do desinvestimento na saúde pública já vem de ainda mais longe.
A troika (2011-2015) não é, portanto, a justificação para o SNS ter chegado ao ponto a que chegou – aliás, a troika até recomendou uma aposta maior nas Unidades de Saúde Familiar de modelo B (com organização, capacidade de resposta e resultados muito melhores e, porque acompanhadas de uma tabela de incentivos, também com outra atratividade para os profissionais de saúde, concorrentes com o privado).
Muito embora o envelhecimento da população nas últimas décadas e o desinvestimento brutal na Saúde, não só mas também em recursos humanos – e se muitos (principalmente enfermeiros) emigraram no tempo da troika e de Passos Coelho, também não regressaram com as cativações de Centeno e António Costa –, tenham contribuído obviamente para um manifesto agravamento.
Uma das coisas que está por explicar, por exemplo, é a quantidade de infeções hospitalares – seja de legionella seja de outras bactérias com diferentes graus de resistência – e de quedas com gravidade cuja ocorrência parece cada vez mais frequente.
A verdade é que tais fenómenos ficam quase sempre por esclarecer, muito embora, e porventura, talvez não sejam de todo alheios ao facto de os hospitais terem passado a ter equipas de limpeza e desinfeção externas, muitas das quais com trabalhadores temporários e sem formação adequada (no caso das infeções) e (no caso das quedas) simplesmente por não existirem assistentes operacionais (não é à toa que nos EUA, por exemplo, os doentes entram e saem das unidades hospitalares em cadeiras de rodas). Como há uma enorme falta de secretários – e daí ser tão difícil marcar o que quer que seja por telefone.
Diz o mesmo estudo da OMS que a esperança média de vida diminui na razão direta do agravamento das desigualdades, chegando a registar-se uma diferença de 15 anos entre os mais favorecidos e os mais desfavorecidos.
É muito, é imenso. As desigualdades e assimetrias entre o primeiro e o terceiro mundos, em pleno século XXI, já não deviam ser tão grandes.
Como no Portugal que temos também já deviam ter-se esbatido, sobretudo quando levamos mais de três décadas de integração europeia e beneficiámos de tantos biliões de fundos estruturais e de coesão.
Gentil Martins, neste domingo em que se assinalou o 40.º aniversário do SNS, respondeu a um breve questionário do CM, dizendo que «quem tem um dinheirinho arranja um seguro, os que são ricos têm tudo quando querem, ou quase, e os que são de classes baixas ou pobres esperam seis meses a um ano por uma consulta ou operação».
Por isso, o famoso cirurgião e antigo bastonário dos médicos defende que a saúde não deve ser universalmente gratuita, mas permitir uma «escolha entre público, privado e social», em que cada um deve «pagar de acordo com as suas possibilidades»
Ou seja, embora o povo diga que o dinheiro não dá saúde, há que reconhecer que, se bem que a saúde ainda não se possa comprar, ele sempre vai dando uma boa ajuda.
Porque, no mínimo, dá acesso ao tratamento ou, pelo menos, acelera-o.
Porque a saúde não deve esperar. Aliás, em muitos casos, a espera é fatal.
É certo que um dos sinónimos de doente é paciente.
Mas paciência é o que os portugueses têm tido e o que cada vez mais lhes é não só pedido, mas exigido. E já chega.
Se a universalidade é garante de que os cuidados para pobres têm a mesma qualidade que os cuidados para ricos, não é por nivelar por baixo que se atinge tão democrático objetivo. E se os ricos já reclamam que pagam mais para a saúde porque pagam mais impostos – o que é verdade –, as taxas moderadoras (que devem ser assumidas como um co-pagamento), se equitativas e devidamente escalonadas, melhor poderiam servir para reforçar o indispensável financiamento.
Mas, também para isso, é preciso saber desprezar preconceitos ideológicos e descabidos: por exemplo, não se pode pretender que uma parturiente venha a pagar um parto e ter como regra a gratuitidade de um aborto – não faz sentido.
Como não faz sentido acreditar que os seguros darão cobertura e acesso a medicamentos e tratamentos mais caros e o SNS não – a realidade que temos hoje é exatamente a contrária.
António Costa promete que a saúde será a ‘joia da coroa’ da próxima legislatura. Esperemos que saiba o que está a dizer e que não seja como Guterres (na tal gafe), que, quando instado a concretizar (curiosamente por Ricardo Costa) a promessa sobre a saúde, meteu os pés pelas mãos e acabou a dizer de cara à banda: «É fazer as contas».
É que a questão, mais do que ‘fazer as contas’, é saber onde e como investir, porque o problema da saúde não é só de dinheiro… também está no sistema e nos seus modelos. E, ainda, nos seus gestores (nos mais diversos níveis), que têm de ser destemidos e criativos, para incentivarem os profissionais de saúde a ficarem onde fazem mais falta, com condições para bem desempenharem a nobre missão que lhes é confiada.
Se o dinheiro não pode ser razão para negar a alguém o acesso à saúde, não falta quem não deva importar-se de pagar por um bom tratamento quando tem condições para isso.
É o mínimo que pode exigir-se: ao Estado e aos cidadãos. Para que haja saúde!