Em setembro de 1964, Mário Cesariny foi preso por tentar seduzir um polícia num cinema de Paris. Acusação? Atentado ao pudor. Ninguém soube. Só ao fim de dois meses a notícia chegou a Maria Helena Vieira da Silva, que tratou de o tirar da prisão de Fresnes, onde estava detido havia já dois meses.
No final de 2018, com o apoio da residência artística La Cité Internationale des Arts, João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira chegaram a Paris para dar início à pesquisa de uma obra centrada na imigração portuguesa em França. “Interessava-nos explorar a lógica da imigração, sempre a capitalizar o sofrimento dos bidonvilles”, diz João Pedro Vale. A narrativa do “bom trabalhador”, do trabalhador “humilde” que até hoje prevalece no imaginário da imigração portuguesa em França desde a década de 1960.
Mas, nesse tempo, o da primeira vaga de emigração portuguesa para França, o mesmo em que Cesariny foi preso, Paris não era apenas isso. “Paris sempre foi um íman quer para a mala de cartão dos bidonvilles, quer para a dissidência intelectual do fascismo, quer para os miúdos que fugiam da Guerra Colonial”, completa Nuno Alexandre Ferreira. “Os dissidentes políticos também se refugiavam todos em Paris, que atraía todas estas comunidades”.
Em 2018, quando chegaram, instalaram-se no Marais, perto da torre de Saint Jacques. Na memória levavam ainda uma série de poemas fruto da pesquisa para a A Mão Na Coisa, uma exposição que tinha como ponto de partida os urinóis públicos, apresentada na galeria Cristina Guerra, em Lisboa. Entre eles, os de A Cidade Queimada, de Mário Cesariny. Livro terminado nos dois meses que passou encarcerado em Fresnes. O livro que tem como capa uma fotografia de Cesariny a abraçar um corpo invisível, em frente a nem mais nem menos do que a torre de Saint Jacques.
Ama Como A Estrada Começa, nome da exposição que João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira inauguram amanhã no MAAT, em Lisboa – na noite que inicia os três dias de portas abertas com que é assinalado o terceiro aniversário do museu -, é o título de um dos poemas desse livro, que tomam como mote para uma recriação, não da torre, mas de uma casa de jardineiro com casas de banho públicas que, apesar de encerrada, continua no jardim, em frente à torre. “Em vez de pegarmos na torre enquanto estrutura, pegámos na casa”, explica Nuno Alexandre Ferreira. “Toda a gente que vai ao jardim olha para a torre, super imponente, ninguém vê a casa, que está ali num sítio privilegiado, a olhar para a torre”.
A casa é a obra, mas a obra não é o que se vê de fora; é o que não se imagina que está para lá das cortinas a que vão dar umas escadas, simulando as que, na estrutura original, descem para as casas de banho. Lá dentro? Um verdadeiro atentado ao pudor, diria o sistema judicial francês de 1964, e em dois pisos. “Seguindo a lógica surrealista do Mário Cesariny, o que fizemos no interior foi uma assemblage de vários espaços arquitetónicos relacionados com os três vetores que, nesse período em que foi preso, representavam as formas de lidar com a homossexualidade”. E enumera-os João Pedro Vale: crime, doença e pecado.
“A partir desses três vetores vamos dar a espaços arquitetónicos diferentes. Espaços de correção, de controlo, de normalização dos corpos. Seja a prisão, seja a igreja, seja a escola, seja o hospital, dentro deste espaço [a megaescultura dentro da qual se percorre a exposição] vai-se reconhecendo partes desses espaços.” Alguns deles exatamente aqueles por onde passou Mário Cesariny, como as celas de Fresnes, retratadas num conjunto de postais de época – postais ilustrativos do centro de detenção que os reclusos usavam para escrever às famílias.
Para o interior de Ama Como A Estrada Começa, os artistas levaram várias peças que produziram no passado – ora reproduzidas, ora citadas. E citados são também os poemas de A Cidade Queimada. Por toda a parte grafitados, numa tarefa para a qual a dupla de artistas contou com a contribuição de um conjunto de amigos artistas. “Interessava-nos mesmo essa ideia de que o espaço é vivido, daí os poemas de A Cidade Queimada repetidos até à exaustão, na lógica da pessoa que está presa e que tem necessidade de estar sempre a escrever”.
Não só vivido, o espaço far-se-á também vivo, pela presença de um performer sem horas anunciadas, num trabalho desenvolvido com João Santos Martins. “Interessava-nos ter aqui um corpo, como parte da peça, mas de uma forma que não fosse evidente. Quase como se se tratasse de uma pessoa do público que entra e utiliza.” O objetivo dos artistas é que o espaço seja mesmo usado, como faz acreditar Nuno Alexandre Ferreira: “A única coisa que não se pode fazer lá dentro é fumar. Tudo o resto…”
O resto de um “atentado” aqui apresentado como primeiro ato mas que, na noite de amanhã, será na verdade segundo. Antes que se chegue a Ama Como A Estrada Começa, a passagem faz-se obrigatória pela Sala Oval, onde é também inaugurada Anima Vectorias, de Angela Bulloch, uma das artistas na década de 1980 emergida do grupo dos Young British Artists. No edifício da Central Tejo, a Economia de Meios, integrada na programação da Trienal de Arquitetura de Lisboa, junta-se a também nova Dreamers Never Learn. Uma exposição em que Vasco Barata se questiona sobre o espaço, físico, cultural e emocional. O espaço e, sobretudo, a falta dele. Uma exposição sobre o tão premente tema da “negociação do espaço”.