Ele próprio confessava: eram necessários entre 80 a 100 contos para poder arrumar a sua vida. Fernando Peyroteo estava aflito de dinheiro. Tendo iniciado recentemente a sua carreira comercial, com a Casa Peyroteo, ali à Baixa, na Rua Nova do Almada, uma loja de artigos desportivos que chegou a fornecer as bolas com que se disputavam jogos emPortugal, as bolas Peyroteo, as coisas corriam mal, muito mal. Dívidas. Algumas gordas, Credores à perna. Tomou uma decisão. Deixaria o futebol. Solicitaria aoSporting uma festa de despedida. Era hábito na altura. Com a receita a reverter para o jogador homenageado. Estávamos emAgosto de 1948. Não perdeu tempo. Recebido pela direção do clube expôs: «Fui obrigado a assumir compromissos que, neste momento, não posso cumprir por falta de disponibilidades financeiras. Sendo assim, e admitindo que a receita provável de uma festa é a única hipótese que se me apresenta de resolver, em parte, os problemas que me atormentam, venho pedir a V. Exas. o favor de, comigo, tratarem da efetivação dessa festa, a realizar em princípios do próximo mês de Setembro». Está lá tudo, na sua autobiografia, Memórias de Peyroteo.
Prometeram-lhe uma deslocação a Espanha, jogos com o Atlético de Madrid e com o Barcelona, dinheiro em caixa. Jogaria mais essa época de leão na camisola.
Roeram a corda. Que afinal, depois de contactados os espanhóis, as receitas não iriam cobrir as despesas de deslocação. Que não! Não podia ser. «Ouvi, engoli em seco. Eu que sabia que as deslocações do Sporting lhe trariam um lucro aproximado de 60 a 70 contos».
A festa de despedida de Peyroteo tornou-se uma novela. Com cenas acanalhadas. A tinta correu nos jornais. Um grupo de sócios do Sporting, preocupados com a situação, avançaram com um empréstimo sem juros. Fernando devolveria o dinheiro mal tivesse a sua despedida. Assinaram-se os papéis. No dia 5 de Outubro do ano seguinte, o avançado de centro dosCinco Violinos diria adeus. Faz agora 70 anos. «Jamais poderei esquecer as lágrimas que chorei ao dar a última volta ao retângulo de jogo, acompanhado deSoeiro, Valadas,João Cruz e VítorGuilhar, despedindo-me e agradecendo a todos – àquela massa compacta de gente que enchia por completo o velho Estádio de Alvalade».
Um caminho pouco agradável
Dia 5 de Outubro, portanto. Ah! Mas como foi complicado chegar até ali. No Verão de 1949, Peyroteo pediu nova reunião com a direção do Sporting.Queria fixar o mais depressa possível a data da sua festa. O presidente do clube, Ribeiro Ferreira, não o recebeu. Mais tarde disse-lhe, pessoalmente, que tinha assuntos mais urgentes e importantes para resolver. «Compreendi que o caso tomava um caminho pouco agradável, em nada se parecendo com o carinho e atenção com que, até certo ponto, havia sido tratado no momento de assumir um compromisso». Fernando Peyroteo preocupava-se agora com a dívida que tinha para com o grupo dos sócios do Sporting que o havia auxiliado.
César Vitorino foi o elemento destacado pela direção para tratar de tudo o que diria respeito à sua despedida. Fernando propôs o dia 4 de setembro. Responderam-lhe: «Tire daí o sentido! Já devia ter dito isso há mais tempo!». O ressentimento de Peyroteo crescia a olhos visto: «Após 13 anos a defender a camisola dos leões com a maior dedicação e maior empenho – haverá quem possa negar? – o resultado estava bem à vista!».
O clube insistiu para que ele continuasse a jogar. Recusou. A decisão estava tomada há mais de um ano. Novas reuniões com César Vitorino trouxeram ao calendário a proposta de 5 de Outubro. Mas era feriado. Havia um Benfica-Barcelona amigável marcado para o mesmo dia. Tudo voltava a complicar-se. Um raio de sol espreitou: convidado para vir a Alvalade em setembro, oAtlético de Madrid solicitara que o particular fosse adiado para Outubro. Talvez fosse possível dia 5. Por seu lado, Francisco Retorta, vice-presidente doBenfica, dera, entretanto a sua palavra: «Prometo-lhe que se a sua festa ficar marcada para 5 de Outubro, o Benfica não realizará nesse dia nenhuma manifestação desportiva. Ajudá-lo-emos no que precisar que você bem merece!».
Merecia, de facto. Os tempos eram outros. Algum cavalheirismo ainda ultrapassava a barreira dos clubismos.
O Sporting fez o ofício à federação, requisitando o dia 5 de Outubro para a festa de Peyroteo. Finalmente, as coisas iam tomando o seu rumo. Fez-se um plano. Haveria um jogo inicial entre uma seleção de jogadores ultramarinos a atuar na Metrópole e uma seleção de Lisboa.Depois o prato principal: Sporting–Atlético de Madrid. Com o pormenor de o madrilenos exigirem 60 contos pela deslocação. Criou-se uma comissão executiva, trataram de se vender os bilhetes. Peyroteo respirava de alívio: a 30 de Setembro já havia em caixa mais de 200 contos.
«O resultado financeiro chegou para pagar às Finanças, à tipografia, para liquidar o empréstimo feito pelos sócios do Sporting, à polícia, porteiros, bilheteiros… e para ganhar dinheiro. Ao Atlético de Madrid também eu paguei e não o Sporting, como muita gente pensa ainda hoje. Sobrando a injustiça de se ter espalhado porLisboa que o Sporting me ofereceu a vinda dos espanhóis. É realmente desagradável ter ficado com a certeza de que a direção doSporting se desinteressou por completo da festa de despedida de um seu futebolista que durante 13 anos defendeu as cores e bandeira do clube…».
O lamento de FernandoPeyroteo não apaga o que aconteceu em Alvalade nesse 5 de Outubro de 1949. Um público agradecido, devotado, prestou-lhe a homenagem sincera e espontânea que tanto fizera por ter. Jogou uma meia parte pelos africanos (substituído por MárioWilson) e meia parte pelo Sporting (trocado por Rola). Já caía a noite sobre Lisboa quando Peyroteo fez o seu último gesto de despedida. Tinha uma tristeza por dentro que o acompanhou pelo resto da vida. Uma mágoa. Ele, homem de todos os golos, ao qual o destino cometeu a crueldade máxima de lhe amputar uma perna.