‘O puro-sangue árabe é o pai e a mãe de todos os cavalos’

O Paço do Morgado da Oliveira, a mais antiga casa do Alentejo, é palco este sábado de um leilão de puros-sangues árabes. O anfitrião do evento, o criador de cavalos António Saldanha, revela um pouco da história e das características únicas desta raça «nobre», «guerreira» e de capacidade atlética «inigualável».

Em pequeno, António Saldanha ‘baldava-se’ às aulas para ir com o pai para a propriedade da família em Évora, perto da barragem do Divor. Adorava a vida no campo e montar a cavalo, apesar de não ter escapado a algumas quedas dolorosas que lhe fraturaram vários ossos. Com a morte do progenitor, no ano passado, António ficou à frente da coudelaria do Monte da Oliveirinha, fundada em 1980. É aqui que atualmente cria e prepara puros-sangues árabes para competição.

No último sábado, em homenagem ao pai, realizou um leilão para o qual convidou todos os criadores portugueses (e dois espanhóis) desta raça de cavalos. O local do leilão foi o Paço do Morgado da Oliveira, a mais antiga casa do Alentejo, cuja construção remonta ao século XIII, que pertenceu ao Rei D. Dinis e que está há 25 gerações na família Saldanha.

Este cavalo, o puro-sangue árabe, tem características especiais?

O puro-sangue árabe é um cavalo com muita resistência, mas relativamente pequeno e estilizado. Em Portugal foi desenvolvido para o desporto e para as práticas militares, portanto foi bem alimentado e selecionado pela estrutura e capacidade física, pelo que se desenvolveu aqui um puro-sangue árabe fisicamente superior ao tradicional. Mas todos eles têm uma característica que é única: é um cavalo que tem uma vértebra a menos do que os outros e por isso é que levanta o rabo.

Isso resultou da própria evolução da espécie?

Foi a natureza. Agora:levanta o rabo porque é uma forma de arrefecimento – são cavalos do deserto e, levantando a cauda, a refrigeração natural é muito maior – ou levanta o rabo porque tem uma vértebra a menos? O que é que veio primeiro? Não sabemos. Outra característica única é a resistência e a capacidade atlética, que são inigualáveis. Além disso, é a mãe de todas as raças. Não há nenhuma raça do mundo que não venha do puro-sangue árabe. É a primeira e a única raça pura que existe no mundo. É o pai e mãe de todos os cavalos. O lusitano – sem desfazer, porque é um cavalo de que eu gosto imenso – não se pode chamar ‘puro-sangue lusitano’. É um cavalo que tem várias raças misturadas. A base é o cavalo peninsular, depois, com as invasões francesas, o puro-sangue árabe chega cá e cruzam-se. O célebre cavalo branco do Napoleão, que foi de Paris a Moscovo e voltou, era um puro-sangue árabe.

O Marengo.

Exatamente. Esse cavalo foi capturado numa batalha que o Napoleão teve nas margens do Nilo. Aliás, o exército francês ficou com esse e com todos os outros cavalos, e aí o puro-sangue árabe é trazido a sério para a Europa. Estas éguas peninsulares que havia aqui começaram a cruzar-se com puros-sangues árabes depois das invasões francesas e começou a surgir uma evolução nessa raça peninsular. Combinada com outras raças e melhorada, foi surgindo a ideia do cavalo lusitano, que hoje está estereotipado.

O puro-sangue árabe exige cuidados especiais?

Depende. Um cavalo de passeio exige os cuidados de cavalo de passeio, um cavalo de competição exige os cuidados de um cavalo de competição. Agora, é um cavalo por natureza rústico. As éguas puro-sangue árabe podem parir até morrer, o que noutras raças não é comum.

Têm espírito de sacrifício, é isso?

Sem dúvida nenhuma. É um cavalo guerreiro. Por isso é que há pessoas que o consideram complicado. E numa circunstância extremapode deixar-se matar. Em competição, não dá sinais, precisamente por ter esse espírito guerreiro.

Para que são usados hoje estes cavalos?

Embora seja um desportista de excelência, que pode competir até determinado nível em qualquer disciplina equestre, a competição que os puros-sangues árabes fazem neste momento são maioritariamente corridas de longa distância. E essas corridas de longa distância têm um mecenas, que são os Emirados Árabes Unidos [EAU]. Que têm milhares de pessoas no mundo inteiro a trabalhar para eles de borla, porque o objetivo de qualquer criador de puros-sangues árabes é vender aos EAU. Nós estamos horas e horas todos os dias e temos estruturas pesadas. Compram tudo o que é bom – e às vezes também compram o que não é.

Ou seja, já têm a papinha toda feita…

Têm o mundo a seus pés. 90% do negócio dos puros-sangues árabes é para corridas de longa distância. Objetivo: vender aos EAU.

Como se faz o negócio? Eles vêm pessoalmente ver os cavalos ou têm pessoas que trabalham para eles?

Têm comissionistas, brokers – existem vários na Europa. E hoje em dia têm uma ferramenta brutal que é o Instagram. Eles próprios criaram uma aplicação que se chama Yamamah. Você pode procurar qualquer cavalo, qualquer cavaleiro, qualquer prova que existe no mundo. Têm aqui tudo e mais alguma coisa: a idade dos cavalos, o que os cavalos fizeram, a percentagem de provas que acabaram, e para os cavaleiros a mesma coisa. Depois vão ver que cavalos estiveram nas mãos de cada cavaleiro, cruzam dados e de vez em quando entram em contacto consigo. Este ano entraram em contacto comigo quatro vezes, foi bom.

Quando isso acontece é uma espécie de jackpot para o criador?

Às vezes é. Este ano foi vendido um cavalo polaco por três milhões de euros. Aqui em Portugal o cavalo mais caro de que tenho conhecimento foi vendido por 450 mil euros, em 2006.

Essas pessoas que compram cavalos caríssimos é porque eles vão ganhar corridas e dar retorno ou compram-nos por uma questão de prestígio, como quem compra um grande carro?

As duas coisas. Quando estamos a falar de multimilionários que competem uns com os outros, é o prestígio. Quando estamos a falar só de milionários que também compram e competem uns com os outros, é o prestígio e o dinheiro que está envolvido. Um cavalo que ganhe uma prova no Dubai ou em Abu Dhabi leva um prize money de 250 mil euros. E se uma pessoa tiver dez cavalos a ficar entre os dez primeiros lugares em dez corridas diferentes, ao fim de um ano tem muito significado.

Mas quais são os valores de venda normais?

Antes de competir, um puro-sangue árabe com boas linhagens – com pai e mãe com cartas dadas, etc. – pode valer por volta de 15 mil euros. O normal é vender cavalos de cinco, seis anos, já com alguma competição, entre os 20 e os 45 mil euros. Há dois níveis de competição. O primeira é a fase de qualificação, provas entre os 40 e os 80 quilómetros em que os cavalos não podem ultrapassar os 16 km/h. Depois de fazerem quatro provas dessas, vão para provas entre os 80 e os 160 quilómetros em que não há limite de velocidade. O momento ótimo de venda é entre a primeira e a segunda fase, quando têm cinco, seis anos.

É aí que estão no pico das faculdades?

É quando estão prontos a passar para a alta competição, quando já têm valor acrescentado, mas você ainda não correu grande risco. Aí é que vai começar a correr um risco mais sério de lesão. Maioritariamente os cavalos machos que correm são cavalos castrados.

Por alguma razão?

Por várias razões. A primeira de todas é o caráter. Um cavalo que não está castrado é um cavalo mais complicado, é um cavalo que se desgasta mais em prova. Aqui em casa temos a tradição de correr com os cavalos inteiros, como se chama aos cavalos que não estão castrados, porque gostamos de provar que, quando têm bom caráter, correm tão bem como os castrados. Mas em geral o cavalo inteiro é um cavalo que tem uma querença natural pelas éguas, é um cavalo que, quando atinge um certo nível de cansaço, quer mandar, não quer deixar que seja o cavaleiro. E nesta disciplina dos raides de endurance chega-se a uma altura em que ninguém manda em ninguém, tem de haver uma simbiose perfeita entre o cavalo e o cavaleiro para cumprir o objetivo, que é terminar e terminar bem.

É verdade ou é um mito que quando os cavalos se lesionam têm de ser abatidos?

As duas coisas. Às vezes têm mesmo de ser, porque não há hipótese absolutamente nenhuma de recuperação. Mas tive uma égua que em julho do ano passado fez uma fratura complicada e no dia 12 de outubro vai correr 80 quilómetros. Completamente recuperada.

Há lesões recuperáveis e outras nem por isso…

Nas recuperáveis temos de contar muito, muito com o juízo do próprio animal. Esta égua soube-se tratar, defendia-se lindamente. Há coisas que se podem fazer, como dar-lhes uma alimentação com zero energia, só com o mínimo. Porque se os cavalos se sentem fortes, mesmo que tenham dores…

Têm o instinto de correr?

E depois nunca mais ficam bons. Normalmente quando fazem uma fratura têm de ir para abate. Mas há aqueles que recuperam.

Falou-me no ‘caráter’ dos cavalos. Eles têm personalidades distintas?

Completamente. Não há dois cavalos iguais. É como nós. 

E há cavalos com bom e cavalos com mau caráter?

Sem dúvida nenhuma.

O que é um cavalo com mau caráter?

É um cavalo agressivo, um cavalo que não tem nobreza. É o que nós chamamos ‘um coiro’ – a expressão é mesmo esta. São capazes de se deitar consigo em cima só para o atirar ao chão. Cavalos que mordem, cavalos que dão coices, cavalos que têm… mau caráter. 

E se o dono for teimoso…

Muitas vezes a culpa é do dono. Aqui em casa um dos principais fatores de seleção é exatamente o caráter. São cavalos muito nobres, têm um caráter muito bom, são muito francos, muito honestos, mas é preciso ter cuidado, não abusar. Se um eletricista for mexer em eletricidade com as mãos molhadas vai apanhar um choque.

Como é o processo de ‘educação’ do cavalo, quando começa?

Começa essencialmente no desmame. Aqui em casa abusamos um bocadinho das mães, fazemos o desmame mais tarde, mas depois colhem-se os resultados. Já desmamei poldros com um ano, tinham tanta força que levantavam as mães com a cabeça. Quando os tiramos das mães, entre os nove meses e o ano de idade, fazemos o pré-desbaste, que é eles passarem um mês, um mês e meio nas cavalariças – pomos os cabrestos, cortamos-lhes as crinas, começamos a cortar cascos, a levantar as patas, a mexer-lhes, para eles ganharem contacto connosco. Depois vão para o campo, em liberdade total. Precisam de correr, de brincar uns com os outros, de respirar, de se desenvolver. Mas aí o poldro já está diferente. Se se magoa, já se deixa tratar. Chama-se a isso o ‘amansar de cabeça’. E depois a partir dos três anos e meio, quatro anos, pegamos neles para o desbaste.

E o desbaste em si é o quê?

É o mesmo que uma criança ir para a escola. Começar a aprender tudo. Ensinar o cavalo, degrau a degrau, a ser aquilo que ele nasceu para ser. Começamos por voltar a dar um retoque nesse pré-desbaste, para eles ganharem confiança e não estranharem o nosso trabalho. Há uma aproximação de uma semana, no caso de cavalos mais fáceis de três dias, dois dias, nos mais complicados se calhar 10 ou 12 dias, pô-los na box, trazê-los cá fora, fazer-lhes festas, limpá-los. Depois começamos a passar à guia, mas não demasiado. É mais uma atividade de cooperação para eles se entregarem e começarem a sentir que o trabalho é uma coisa natural. Depois é habituá-los a andar com arreio e, como se costuma dizer, passar a perna. Quando já estão num ponto em que consideramos não ser uma inconsciência subir lá para cima, é montarmo-nos neles, fazer aquilo a que se chama escarranchar.

É aí que entra arte do cavaleiro?

Isso é depois. Aqui é a arte do corajoso [risos] e de quem está cá em baixo a segurar no cavalo. Essa pessoa vale 90%. E quem vai lá para cima tem de ter alguma coragem e tem de saber estar. Há pessoas que fazem isso melhor do que outras. Uma pessoa que escarranche bem um poldro não tem forçosamente de ser um bom cavaleiro.

Costuma fazer esse trabalho de escarranchar?

Faço.

E já caiu muitas vezes?

Já caí imensas vezes, a maior parte das vezes por culpa minha. Já parti tudo. Costelas, pernas, braços, dedos, tornozelos, joelhos, cabeça – tudo. A primeira vez que caí foi por curiosidade, para saber como era. Tinha para aí oito ou nove anos.

Forçou?

Atirei-me. Nunca tinha caído. Tinha um pónei que era relativamente baixo – não pense que eu sou louco ou que sou muito valente, o risco era baixo e eu atirei-me. Não me aconteceu nada…

Pensou: ‘Não é o fim do mundo’.

Exato. Também me lembro da primeira vez que caí a sério e não foi nada agradável.

Como foi isso?

Foi a fazer uma corrida com um amigo, com umas éguas que ele tinha, em Barrancos. Estávamos numa descida muito íngreme e partiu-se a fivela que segura o estribo. Caí e parti um braço e três costelas. Tinha doze anos. Depois disso tive várias quedas.

Como é que o António ficou à frente da coudelaria?

O meu pai, se fosse vivo, neste momento seria o segundo criador mais antigo de Portugal. Começou a criar cavalos em 1980, embora tenha adquirido o primeiro garanhão em 1976 à Coudelaria Nacional Portuguesa, que criava puros-sangues árabes de excelência e únicos no mundo. Mais tarde comprou duas éguas a uma coudelaria muito famosa que infelizmente foi extinta, da família Palha. Eu já nasci com os cavalos. Quando o meu pai morreu fiquei encarregue pela continuidade da coudelaria, foi uma consequência natural.

E por que decidiu fazer este leilão?

A Coudelaria Nacional fazia todos os anos um leilão de puros-sangues árabes e este ano, como desinvestiu na criação destes cavalos, não fez. Eu peguei nesse exemplo e pensei fazê-lo de outra forma: em vez de ser só uma coudelaria a leiloar os seus animais, abri as portas a todos os criadores – nem todos vão participar, mas todos foram convidados – e vai ser um dia em que vamos estar juntos em nome de um projeto que o meu pai levou ao longo de toda a sua vida toda e que era a sua grande paixão.

Quem serão as pessoas que vêm licitar?

É sempre uma carta fechada. Principalmente quando falamos de uma raça que tem como principal cliente o público do Médio Oriente, e muitas vezes esse público não compra diretamente, tem aqui muitos olheiros, muita gente que compra por eles. Hoje em dia vendem-se cavalos por Whatsapp. Se você tiver confiança na pessoa que está a comprar para si, ela faz um vídeo, manda-lhe, dá as características e compra por si. Se não tivermos personalidades do Médio Oriente, teremos seguramente europeus a representá-los. E vamos ter portugueses, espanhóis e provavelmente franceses a licitar.