Diogo Freitas do Amaral: um Professor, um Amigo

Diogo Freitas do Amaral tinha trinta e seis anos, na altura em que comecei a trabalhar como sua assistente de Direito Administrativo. Nas mais de quatro décadas que se seguiram, e que acompanhei de perto, não abrandou o ritmo de vida; manobrando com liberdade e mestria a sua cadência. 

Conheci pessoalmente Diogo Freitas do Amaral quando, vinda da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, cheguei a Lisboa e comecei a lecionar na Universidade Católica Portuguesa, no ano letivo 1977-78. Diogo Freitas do Amaral era figura de proa da vida académica, política e cultural. 

Na Universidade, o brilhantismo do percurso académico na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa era reconhecido: as suas dissertações, do Curso Complementar de Ciências Jurídico-Económicas, A utilização do domínio público pelos particulares (1964)e de doutoramento em Ciências Jurídico-Políticas, A execução das sentenças dos tribunais administrativos (1967), eram apontadas como modelos de clareza, rigor, concisão e originalidade, e os textos As modernas empresas públicas portuguesas (1971), A função presidencial nas pessoas coletivas de direito público (1973), A responsabilidade da Administração no Direito Português (1973), As Forças Armadas no contexto da Nação (1976) tinham-lhe ampliado a fama à Administração Pública, aos tribunais, à advocacia, tendo-se tornado jurisconsulto eminente. E teve tempo para ser ainda vogal da Comissão Instaladora da Universidade do Minho. 

No plano político, era líder do CDS, partido que, com um grupo de amigos, fundara, em julho de 1974, um partido estruturante da então jovem democracia portuguesa. Fora deputado da Assembleia Constituinte, membro do Conselho de Estado e era, à época, deputado da Assembleia da República. 

No plano cultural, a influência britânica era patente, adquirida na juventude, junto de famílias inglesas, em Londres, visitando locais emblemáticos, indo a concertos no Albert Hall. Apesar disso, a história e a literatura portuguesas eram pratos fortes da conversa diária, que saboreava e dava a saborear. 

No plano familiar, era casado e tinha quatro filhos, em idade escolar e, no pessoal, lembro-me que gostava de andar a cavalo, nadar, tocar piano, ouvir música clássica…

Diogo Freitas do Amaral tinha trinta e seis anos, na altura em que comecei a trabalhar como sua assistente de Direito Administrativo. Trinta e seis anos de vida cheia, pessoal e familiarmente, mas também na universidade, na política ativa, na cultura.

Nas mais de quatro décadas que se seguiram, e que acompanhei de perto, não abrandou o ritmo de vida; manobrando com liberdade e mestria a sua cadência. 

Cumpriu a carreira académica, prestando provas de agregação (1983) no âmbito das quais apresentou o trabalho ‘Conceito e natureza do recurso hierárquico’. E foi aprovado no concurso para catedrático (1984). Diversificou as vivências universitárias, lecionando na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e na Faculdade de Ciências Humanas na Universidade Católica, e dando corpo e alma à Faculdade de Direito da Universidade Nova, de que foi o primeiro diretor. Ampliou as áreas científicas investigadas e lecionadas, da Ciência Política ao pioneiro Direito do Urbanismo, da História das Ideias Políticas ao também pioneiro Direito do Ambiente, para não falar na abordagem inovadora da disciplina de Introdução ao Estudo do Direito, na incursão pelo Direito Administrativo Angolano, o que tudo verteu em textos escritos. E não esqueceu uma abordagem pedagógica da cidadania – Manual de Introdução à Política (2014). 

Quanto à vida política, foi presidente da União Europeia das Democracias Cristãs, criou, com Sá Carneiro e Gonçalo Ribeiro Teles, a Aliança Democrática, foi vice-primeiro-ministro, primeiro-ministro interino, ministro dos Negócios Estrangeiros (2 vezes), ministro da Defesa, e dividiu o país em dois quando se candidatou a Presidente da República (1986). Além disso, foi Presidente da Assembleia Geral da ONU (1995-6).

No plano cultural, escreveu peças de teatro – O Magnífico Reitor (2001), Viriato (2003) frequentou durante anos o Festival de Música de Salzburgo e rumava com regularidade a Verona para assistir a óperas e concertos. E escreveu livros de memórias, o último dos quais editado no corrente ano de 2019, Mais trinta e cinco anos de democracia. Um percurso singular, bem como textos de História de Portugal – D. Afonso Henriques, uma biografia (2000) D. Afonso III, o Bolonhês, um grande homem de Estado (2015) Da Lusitânia a Portugal. Dois mil anos de História (2017).

Em todas as tarefas em que se desdobrou, mostrou uma insaciável vontade de compreensão própria, dos outros, do mundo, um constante desejo de ser útil à causa pública e de contribuir através da ação própria para melhorar o dia-a-dia das instituições onde trabalhava e profundamente conhecia, em concreto a Universidade e o Estado.

Nos planos pessoal e familiar, sofreu o embate da morte dos pais e dos irmãos, ao mesmo tempo que viu aumentado o ninho, com a geração dos netos – Carolina, José Maria, Duarte, Teresa, Leonor e Luz. Os filhos – Pedro, Filipa, Joana, Domingos – tornaram-se companheiros de viagem e a Mizé ou Maria Roma, de batismo Maria José Salgado Sarmento de Matos, que conhecera na Universidade, então ainda estudante da Faculdade de Letras, e com quem casou em 1965, era o pilar do sorriso, do aconchego, da palavra escutada sem tempo, cúmplice de um ‘singular’ percurso de vida.

De Diogo Freitas do Amaral, de quem fui assistente em várias disciplinas, que foi meu professor do curso de Mestrado, orientador da dissertação de mestrado e da tese de doutoramento, e que tive por arguente nas provas públicas de agregação, procurei aprender tudo o que se pode aprender de alguém que se admira. 

Admirava-lhe a presença em aula, preparada cuidadosamente, a autoridade com que transmitia conhecimentos, a clareza da exposição, a forma certeira de colocar a interrogação que fazia pensar. Admirava-lhe o pioneirismo com que desenhava matérias a lecionar na Universidade e a originalidade do diálogo que estabelecia com grandes filósofos, políticos, juristas, com os episódios da nossa História. Admirava-lhe o modo de ser livre, de sentir a liberdade por dentro e de a exteriorizar em comportamentos, depois de responsavelmente argamassada. Admirava-lhe a extraordinária capacidade de trabalho e de agregar grupos de trabalho, entusiasmando-os a evoluir. Admirava-lhe a disponibilidade para os que dele precisavam e o fazia esticar com magia as horas, porque não esquecia os compromissos antes assumidos. 

Admirava-lhe a capacidade de escutar os outros para além do que deles ouvia, indo ao âmago da questão, argumentando, construindo soluções; e telefonando no dia seguinte, apurando argumentos, imaginando novos caminhos, porque se deixava «tocar» pelas questões, e desejava genuinamente ser razão de uma solução. Admirava-lhe a afabilidade do trato educado, o dom da palavra certa. 

Admirava-lhe o cultivo da amizade e a fidelidade aos amigos. Admirava-lhe a coragem perante a dureza do quotidiano mais recente, feito de esperança e de desesperança. Admirava-lhe a confiança no futuro. Admirava-lhe o facto de poder dizer, com Fernando Pessoa, pela mão de Alberto Caeiro, «não me arrependo do que fui outrora/porque ainda o sou». Admirava-lhe…