Tal como disse, um dia, Mark Twain, as notícias sobre a morte iminente de Poulidor parecem ser manifestamente exageradas, até pela própria mulher, Gisèle, que veio recentemente a público manifestar a sua mais profunda preocupação pelo coração do velho Pou-Pou que lhe parecia tão frágil como uma folhinha de papel vegetal. Ah! Raymond Poulidor! Aquele que ficou para a história do ciclismo como o Eterno Segundo. Homem alegre num mundo de egocentrismos, de competição inequívoca, de raivas e ódios contidos pelos adversários. «Vivia feliz. Era o meu sonho tornado realidade. Não acordava ansioso por ganhar, não ia para a cama com a obsessão da vitória no dia seguinte. Tirava apenas prazer de ir fazendo aquilo de que mais gostava». Falta de ambição? Muitos acusaram-no disso. Mas houve também Jacques Anquetil e Eddy Merckx. Sobretudo Anquetil.
Há quem esteja convencido que Poulidor foi o eterno segundo do belga Eddy Merckx, também ele agora a contas com uma grave lesão craniana por ter caído de uma bicicleta, imagine-se!, que raio de ironia, o Merckx a cair de uma bicicleta… «É da idade, é da idade», dirá o povo na sua sabedoria, quanto a mim demasiado sobrevalorizada. Ora, há muito bom camponês que, mesmo aos 74 anos, não tomba da sua pasteleira. Mas enfim, Poulidor não caiu de nenhum lugar mais alto do que da realidade dos seus 83 anos e dos problemas cardíacos que foi acumulando ao longo dos últimos anos.
Poulidor foi o segundo de Merckx, mas antes disso foi o segundo de Anquetil, Jacques Anquetil, Monsieur Chrono, nascido no dia 8 de janeiro 1934, em Mont-Saint-Aignan, na Normandia, desaparecido em 18 de novembro de 1985, com apenas 53 anos, vítima de um cancro no estômago na Clínica de St-Hilaire, em Rouen. Anquetil-Poulidor; Poulidor-Anquetil. Esse duelo faz parte da História da França como as intrigas do cardeal Richelieu no tempo de Ana de Áustria e dos mosqueteiros do rei ou como os crimes em série do diácono Henri Désiré Landru que queimava as suas vítimas na lareira da sua cozinha da comuna de Gambais, Paris.
Perguntem a qualquer francês que tenha idade suficiente para perceber a realidade de tal compita. Ele vos dirá como as batalhas entre Anquetil e Poulidor pelas estradas do Hexágono marcaram definitivamente a cultura popular do país. Poulidor: primeiro chamaram-lhe Pouli; depois, o jornalista èmile Besson, do L’Humanité, deu-lhe a alcunha de Pou-Pou. O povo ficou contente. E o descontentamento de Pou-Pou servia para o tornar cada vez mais querido pelos deserdados de Deus. «Parecia que quanto mais infeliz e azarado fosse, mais as pessoas gostavam de mim», revelou Poulidor. «E, com essa simpatia, fui ganhando mais dinheiro».
Um dia, o L’Équipe resolveu fazer uma manchete com a popularidade de Poulidor. As letras, garrafais, berraram:_«Poupoularité!». O homem tornara-se único. Nunca gostou daquele Pou-Pou meio infantilóide que trazia consigo a sonoridade de boneca (’poupée’), mas também nunca se queixou. Raymond Poulidor, bom rapaz, gaiato na sua simplicidade, não se queixava de coisa alguma e, ainda agora, deitado numa cama de hospital, rodeado de paredes brancas e de enfermeiras desinfetadas, perto da sua casa em Saint-Léonard-de-Noblat, Limoges, não se queixa à medida que o seu coração, que subiu os Alpes e os Pirenéus ao ritmo cardíaco de um cavalo, vai batendo cada vez mais levemente.
A vitória final
Jacques Anquetil venceu a Volta à França por cinco vezes; Eddy Merckx, O Canibal, por outras cinco vezes. Tudo isto entre 1957 e 1974. Poulidor nunca foi além de três segundos lugares e cinco terceiros. OK, Merckx é Merckx, ninguém o discute, uma espécie de alter-ego do ciclismo universal._Fala-se de bicicletas e fala-se de Eddy Merckx, mesmo que agora tombe delas como se precisasse de usar rodinhas. Mas, para quem sabe de cor as paixões da França, esse país de amantes eternos onde vão parar, mais cedo ou mais tarde, todos os grandes românticos, sabe que não há cinco vitórias no Tour que façam de Anquetil rival de Poulidor no sentimento da nação.
Pou-Pou, o grande trepador, deixava-se bater na velocidade. Monsieur Chrono tinha o repente, a fuga, a surpresa. «Que faz Pou-Pou? Sonha? Por que não responde? Por que não vai atrás dele?», desesperava-se o seu diretor da equipa da Mercier, Antonin Magne. Magne era um cavalheiro: não tratava ninguém por tu. Tonin le Sage, vencedor da Volta a França em 1931 e 1934. «Ele tinha razão», dizia Poulidor. «Tinha toda a razão. Volta e meia ficava distraído. Gostava de observar a paisagem, de prestar atenção a todo aquele movimento colorido dos ciclistas, do público. Gostava de responder aos acenos que me faziam, de sorrir para quem gritava o meu nome. Usei as camisolas de líder de todas as provas. Perdi-as todas!». Em 1964, na Vuelta, conseguiu manter a amarela colada ao tronco até Madrid. Foi o seu maior triunfo. Seis anos mais tarde estava entregue nas mãos de um velhaco, Bernard Sainz, que a imprensa tratava por Dr. Mabuse, comparando-o a uma personagem malévola criada pelo escritor Norbert Jacques e adaptada ao cinema. Sainz, que conheceu os mistérios do cárcere, era um trafulha mas mexeu com a cabeça de Pou-Pou como nunca ninguém antes dele. Em 1971, Poulidor tinha decidido abandonar o ciclismo. Mas disputou uma das provas mais importantes do início da época, a Paris-Nice. Na véspera do último dia tinha 22 segundos de atraso em relação a Merckx. Atacou pelo nascer do sol: a sua rapidez foi de tal forma aniquiladora que o tempo que realizou em_Col de la Turbie se manteve imbatível por dez anos. O_Canibal foi devorado. Raymond bateu-o por dois segundos. Despedia-se sendo primeiro.