Quase dois mil processos disciplinares pendentes na Ordem, entre os quais outras suspeitas de má prática médica que envolviam o obstetra Artur Carvalho; uma clínica que funcionava há oito anos sem ter havido uma fiscalização sobre a qualidade dos atos prestados e a denúncia de que há exames, não só desta área, a ser feitos por pessoas sem habilitações. O caso de Rodrigo, o bebé que nasceu com malformações graves no rosto e no crânio não detetadas nas ecografias da gravidez, fez disparar alertas em diferentes direções e são ainda mais as perguntas do que as respostas.
Esta semana o médico foi suspenso preventivamente pelo conselho disciplinar regional do Sul e a clínica Eco Sado, onde Artur Carvalho é sócio gerente, fechou. A Ordem dos Médicos anunciou que vai ser criada uma competência específica para a realização de ecografias obstétricas e o bastonário dos Médicos, Miguel Guimarães, pediu desculpa pela demora na atuação do conselho disciplinar regional do Sul, que antes do caso de Rodrigo tinha em instrução cinco processos contra o médico, o mais antigo de 2013.
A primeira consequência prática, depois da suspensão preventiva de Artur Carvalho, justificada com «fortes indícios» de infrações às boas práticas médicas, deverá mesmo verificar-se já nos próximos dias nos órgãos disciplinares da Ordem dos Médicos. No final de 2018, havia 1988 processos em instrução na Ordem, mais de 70% no conselho disciplinar regional do Sul (1466), entre as quais as queixas que tinham dado entrado na Ordem contra Artur Carvalho em 2013, 2014, 2015, 2017 e já este ano. E se o Conselho Superior da Ordem está já a analisar os passos seguidos nos últimos anos, o bastonário dos Médicos defendeu um plano ‘Marshall’ para a recuperação de casos pendentes e está marcada para a próxima segunda-feira, no Porto, uma reunião com os responsáveis dos órgãos disciplinares da Ordem.
Alexandre Valentim Lourenço, presidente do conselho regional do Sul da OM, indicou ao SOL que foi solicitado um levantamento exaustivo ao conselho disciplinar do Sul sobre os casos pendentes, que deverá determinar um plano de ação. O médico recordou que, há três anos, para resolver um número elevado de casos pendentes, houve um reforço dos relatores e também da assessoria administrativa e jurídica, com recurso a trabalho ao fim de semana. «É necessário perceber qual é neste momento a situação e só depois de termos os dados será possível tomar medidas».
Questionado pelo SOL nos últimos dias, o conselho disciplinar não respondeu até ao fecho desta edição de quando datam os processos mais antigos pendentes, se existem mais casos relacionados com a não deteção de malformações durante a gravidez envolvendo outros médicos ou médicos envolvidos em mais do que uma queixa. Artur Carvalho tem neste momento sete processos em instrução. Rodrigo permanece internado com um prognóstico reservado. Segundo o CM, os exames revelaram surdez e que respira apenas pela boca.
Ordem e ERS reúnem-se
As repercussões deste caso, nos últimos dias noticiado na imprensa internacional, não se cingem à disciplina exercida pela Ordem. Também na próxima segunda-feira, apurou o SOL, está marcada uma reunião do bastonário dos Médicos na Entidade Reguladora da Saúde (ERS), que nos últimos anos tinha recebido quatro reclamações relacionadas com a clínica Eco Sado, entre elas um caso de não deteção de malformações em ecografia, em julho. O ex-ministro da Saúde colocou em causa a utilidade do regulador: «Aquelas pessoas, e são muitas, que põem muito em dúvida a utilidade pública da ERS ganham com este episódio acréscimo de razão», disse à Lusa Adalberto Campos Fernandes. Também Rui Nunes, antigo presidente da ERS, chamou a atenção para a falta de meios, sublinhando que um quadro com pouco mais de 30 funcionários não chega para inspecionar 30 mil prestadores de cuidados de saúde. Não tendo havido uma fiscalização específica a esta clínica nos últimos oito anos, a ERS esclareceu que os casos foram enviados para a Ordem: «A averiguação da conformidade da prática clínica com os preceitos da arte é da competência exclusiva da respetiva ordem profissional», disse em comunicado. Ainda assim, a reunião da próxima semana poderá levar a novos protocolos de colaboração. A Ordem pediu já também uma reunião à Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, responsável pelas convenções do SNS na região, nomeadamente na área de exames, onde o receio é que os valores pagos pelo Estado estejam a contribuir para exames com menos qualidade.
Exames sem controlo
Depois de na semana passada o presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia ter alertado para o facto de haver médicos a fazer ecografias morfológicas sem habilitações, o alerta estendeu-se os últimos dias a outras áreas, como oncologia.
A Associação Portuguesa de Radiologia denunciou a existência de formações online não fiscalizadas, abertas a profissionais não médicos. Um problema também sinalizado pela Sociedade Portuguesa de Radiologia e Medicina Nuclear. À Visão, Hugo Marques, presidente do Colégio de Radiologia da Ordem dos Médicos, reconheceu que tanto na formação como na realização e exames, sobretudo nas ecografias, tem havido um «crescente aumento de ações de formação não certificadas pela OM, com conteúdo e duração marcadamente inadequados, bem como a tentativa de utilização deste método de imagem (a ecografia) por pessoal não médico, o que significa um verdadeiro risco para a saúde». O médico defendeu que a ERS deve atuar «sem tréguas» nesta área.
No campo das ecografias, a Ordem anunciou que será criada uma competência específica para os médicos poderem fazer os exames mais diferenciados, garantindo ainda assim, após reuniões com os responsáveis dos colégios de radiologia e ginecologia/obstetrícia, que as normas atuais asseguram a qualidade dos atos destes médicos. Uma norma de 2013 da DGS prevê que os exames ecográficos de vigilância da gravidez só devem ser feitos por médicos com treino específico e certificado «por entidade idónea e pela Ordem dos Médicos». O documento previa que fosse estabelecido um período de transição e criadas condições necessárias à operacionalização das medidas, bem como auditorias regulares. O SOL já solicitou esclarecimentos à DGS sobre o que foi feito.
Alexandre Valentim Lourenço, admite que a norma é um bom documento, mas alerta que há constrangimentos nos hospitais que tornam difícil a sua implementação. «Muitos médicos diferenciados nesta área acabam por ter de assegurar as urgências das maternidades quando poderiam dedicar mais tempo a ecografias», disse.