Há 65 anos, um grupo de miúdos brincava na rua, no Largo do Espírito Santo, em Gavião, quando chegou uma senhora num carro: era um Citroën C 11, mais conhecido por Arrastadeira. A senhora sem nome saiu do carro, interrompeu a brincadeira e dirigiu-se a uma das crianças. Deu-lhe um beijo e cinco tostões pelos seus cabelitos louros e sobrancelhas pretas, entrou na Arrastadeira e seguiu viagem.
O episódio cravou-se na cabeça do menino das sobrancelhas pretas que, mais de seis décadas depois, decidiu transpor para o mundo das coisas palpáveis a memória de um gesto de carinho que nunca esqueceu. O menino chama-se António Colaço, tem 67 anos e a forma que encontrou de recordar o episódio fez-se através da arte: pegou numa Arrastadeira – emprestada pelo amigo Arturo Cortez – cobriu-a de um processo ao qual chama ‘transfiguração da escrita’ e levou-a, primeiro, para o dito largo da vila alentejana, onde nasceu e de onde acabou por sair aos cinco anos. «Era uma casita de chão de terra batida», conta. A casa, essa, já não existe – foi demolida e, no seu lugar, veem-se lugares de estacionamento. «Por isso é que digo que, mesmo sem chão, sou do Gavião», continua António, bem disposto, aludindo ao trocadilho que usou para intitular o texto do catálogo da exposição. É que a Arrastadeira não está sozinha – é, aliás, a última de uma extensa lista de obras que já saíram das mãos de António Colaço. Uma pequena parte destas peças podem agora ser vistas na tal exposição, Cinquenta Anos a fazer P.Arte, patente na Biblioteca de Gavião até dia 10 de novembro e que já passou pela Assembleia da República e pelo Centro Cultural Elvino Pereira, em Mação. «Tinha material para encher duas Gulbenkians», brinca António Colaço, enquanto nos guia pelos trabalhos que, ao fim ao cabo, contam a história de uma vida peculiar. A juntar ao fascínio pelo mundo da pintura e das artes plásticas que o acompanham desde que é gente, Colaço personifica como poucos o chavão de ‘homem dos sete ofícios’: é pintor, escultor, organista residente da igreja de Mação – ali do outro lado do rio e uma das suas terras -, membro da Associação 25 de Abril, em Lisboa, onde continua a organizar sessões de reflexão e discussão com várias personalidades do país; antigo radialista, militar de Abril, ex-funcionário público e antigo assessor do grupo parlamentar do PS, cargo que abandonou em 2010. Durante 21 anos, mediou a relação dos jornalistas com o partido na Assembleia da República, um trabalho muito «gratificante» e do qual, assume, tem algumas saudades.
Ainda em abril, voltou àquela que é também a sua casa com a obra Palavril – uma chaimite igualmente coberta pela sua «escrita transfigurada», e que até causou alguma polémica por ter sido colocada em frente ao edifício mais recente da Assembleia da República, ao invés da entrada principal. O que lá vai lá vai, diz-nos Colaço, para quem a forma de estar na vida aponta muito mais para o presente e o futuro do que para as curvas do passado. Essas, usa-as como matéria para os seus trabalhos como artista plástico. «Fui sempre assim», garante. «Lembro-me de, quando conheci a obra de Picasso, ficar encantado e pensar: um dia, também quero ter fases!».
Meio século de produção artística depois, que foi sempre conciliando com a vida profissional, o desejo cumpriu-se: pode olhar-se para o seu trabalho e perceber quais foram, afinal, os períodos que foi percorrendo.
Voltemos, portanto, ao berço do Gavião – curiosamente, um dos bastiões socialistas do país – e à primeira vocação do artista: a religião. Filho de um padeiro e de uma empregada, o pai era colega de profissão do pai de Jorge Lacão, também gavionense, e a mãe, nascida na vila alentejana, foi servir muito jovem para o Porto para casa de um irmão do cardeal Cerejeira. As profissões e o carinho dos pais também estão presente na sua obra, seja através do trigo do Alentejo ou do lençol de bebé bordado pela mãe. A família saiu da vila quando ele tinha cinco anos e António acabou por ingressar, primeiro, no seminário da diocese, tendo mudado depois para um seminário no Porto, pertencente à Ordem dos Capuchinhos. «Naquela altura, em 67/68, fui por vocação», confirma. «Depois em 1971 venho a sair quando porque entrei numa crise de fé. Adoro os valores do franciscanismo, mas naquela altura, epá… Foi aí que conheci o frei Bento, que era o diretor do instituto em Lisboa, e disse-me: ‘Anda que terminas cá em Lisboa as cadeiras’. Mas as cadeiras já não me faziam sentido nenhum». Arranjou então trabalho na Câmara de Lisboa como escriturário datilógrafo, sempre com as artes a remoerem-no por dentro – um dos seus quadros aqui expostos foi, aliás, pintado no verso de um envelope da câmara «O dinheiro para comprar material era pouco», recorda. Ainda se candidatou às Belas Artes em 1972, mas chumbou numa das provas de aptidão. «Nessa altura era uma escola muito elitista, só para os filhos dos arquitetos», recorda, enquanto nos mostra um documento da escola que, após o 25 de Abril, o chamou para integrar uma das turmas. «Nessa altura já estava noutra», ri, lembrando o curso de desenho que fez por correspondência.
É que em 1974 foi chamado a cumprir o serviço militar e tornou-se «militar de Abril», conta Colaço com indisfarçável orgulho. De volta a Lisboa e aos tempos do MES, chegamos à sua Andorinha, a mota que comprou por 2.200 escudosd e que usava para pregar a sindicalização e para para namorar com a futura mulher. Pela simbologia, o veículo tem lugar também na exposição, visto que, em 2010, António também a cobriu com a sua «escrita transfigurada», transformando-a assim numa instalação artística. O namoro em cima da Andorinha correu bem: «Casei-me, vieram os filhos e vim para a Câmara de Abrantes, onde trabalhei 10 anos», continua.
Nessa altura, o gostinho pelas rádios piratas falou mais alto. «Em março de 89 houve a guerra das rádios livres e Abrantes foi de facto a capital das rádios piratas», recorda. «Andei atrás do Eanes quatro horas, quando ele veio a Vila de Rei, para conseguir que ele falasse – e falou. Foi a primeira vez naquela altura que o Presidente da República falou para uma rádio pirata. Aquilo teve uma repercussão dos diabos porque, digamos, pela primeira vez o Eanes apoiou a luta das rádios».
Foi na sequencia destes eventos que António recebeu um convite de Lisboa. «O Jorge Lacão, que tinha sido meu amigo de infância, convidou-me para ir dirigir o gabinete de imprensa do grupo parlamentar, e é por via disso que estive lá 21 anos. O meu cargo era um cargo de confiança, cada líder que vinha decidia se queria continuar comigo ou não».
Apesar da vida corrida dos Passos Perdidos, nunca deixou de criar. «O facto de estar na Assembleia da República nunca me limitou, expressar-me era uma necessidade». Foi continuando a produzir os seus trabalhos – teve até um ateliê no Montijo e hoje está a ultimar um espaço em Mação. Com mais tempo, o ritmo aumentou após a reforma até que, no ano passado, em março, sofreu um AVC hemorrágico. Conseguiu recuperar e, ainda no hospital, foi refletindo sobre a experiencia da forma como lhe fazia mais sentindo: com e pela arte. Pegou em materiais de construção, reaprendeu a escrever e documentou todo o processo numa instalação que pode ser vista também na exposição. «Quero também mostrar às pessoas que é possível continuar», assume.
Continuar, esse verbo de que Colaço não abdica. Depois do Gavião e da Arrastadeira que lhe rebocou o coração até aos cinco anos, por onde vai, agora, continuar?
«A Citroën este ano faz cem anos, quem sabe se vamos até Paris? Nunca se sabe, podia ser assim uma coisa do tipo Joana Vasconcelos dos Pequeninos». Nunca se sabe.
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