Quando, há meio século, começou a estudar a história das cores, os seus pares não o levavam a sério. Achavam um assunto trivial. Mas Michel Pastoureau, que cresceu a brincar nos ateliês de pintores amigos do seu pai, persistiu na sua paixão e hoje os seus estudos simultaneamente instrutivos, eruditos e divertidos sobre as cores são consensualmente apreciados. Conversámos com o autor a propósito de Vermelho – História de uma Cor, que acaba de ser editado em Portugal pela Orfeu Negro, que antes publicou os seus livros sobre o preto, o azul e o verde. Para breve está o que dedicou ao amarelo, o último da série.
É uma surpresa para mim que esteja vestido quase todo de negro. Não gosta de roupas coloridas?
Sim, gosto muito da cor, mas como sou muito gordo prefiro as cores escuras – preto, cinzento escuro, azul escuro – para parecer mais magro. Não significa que goste mais destas cores.
As cores estão por todo o lado, a começar pela natureza. Apesar disso, podemos dizer que os seus livros tentam provar que as cores são também construções culturais?
Sim, para os historiadores e para as ciências sociais em geral a cor é uma construção cultural. A natureza fornece colorações muito variadas, milhares delas, e são as sociedades que as organizam, agrupam em categorias e lhes atribuem nomes. Julgo que para as ciências humanas, antes de serem luz, matéria ou sensação, as cores são categorias mentais, construções culturais, como disse.
O seu livro fala na hierarquia das cores. Cada época tem a sua?
Sim. Dá-se o facto de as cores não serem todas construídas ao mesmo tempo, na mesma época, nas sociedades europeias. Enquanto categorias mentais, o vermelho, o branco, o preto parecem surgir em tempos mais antigos do que o amarelo, o verde e o azul. Isso explica por que o vermelho é frequentemente apresentado como a primeira cor, a cor por excelência, a verdadeira cor. Nalgumas línguas a palavra para dizer ‘vermelho’ e ‘colorido’ até é a mesma. Por outro lado, do ponto de vista material, foi na gama dos vermelhos que o homem europeu fabricou os primeiros pigmentos para pintar e os primeiros corantes para tingir. De modo que há uma grande antiguidade do vermelho.
É uma espécie de cor primordial?
Sim, é a primeira cor e no fundo é a única cor verdadeira nas sociedades antigas. Vemo-lo quando lemos a Bíblia. Não aparecem muitas referências a cores, e quando aparecem são quase sempre ao vermelho, ao branco e ao preto. Não há azul na Bíblia, muito pouco verde e muito pouco amarelo. Nos autores gregos e romanos é parecido. Se contabilizarmos todas as expressões sobre cor, o vermelho é dominante.
O vermelho é a cor da paixão, da violência, do perigo…
Certo.
Há uma lógica por detrás disso ou trata-se de uma mera convenção?
São convenções que assentam em factos naturais. Cada cor tem o seu lado bom e o seu lado mau, seja qual for a época. É verdade que para o vermelho há muitas conotações negativas, mas também conotações positivas. É a cor da beleza, do amor, do poder, mas também a cor do perigo, do pecado, da violência, da cólera. Tem esses dois lados. Mesmo na sociedade de hoje o vermelho é a cor da festa, do prazer, mas também a do perigo, da interdição, da punição. Na rua, devemos parar no sinal vermelho – é uma interdição -, enquanto o verde é a liberdade.
Referiu que o vermelho é a cor do poder. Isso deve-se também ao facto de ser muito caro fabricar os tecidos vermelhos, por exemplo?
Diria que funciona ao contrário. Uma vez que custa caro fazer belos tecidos vermelhos, luminosos e garridos, estes são reservados a quem detém o poder. Os outros podem ter vestidos vermelhos, mas não será um tom bonito, será um vermelho triste e sem brilho.
O mesmo se passou durante séculos com o verde, não é verdade?
Era difícil obter tecidos de um verde sólido e luminoso.Sim, era uma cor difícil de fixar, instável, e por isso simbolicamente foi associado a tudo o que é instável – ou seja, estabeleceu-se uma ligação entre a química e a simbólica da cor. O verde é associado ao que não dura: a infância, o amor, a esperança, o acaso, o jogo…
A paleta das cores dos artistas varia muito ao longo dos séculos?
A paleta de um pintor de Pompeia é muito diferente da de um pintor francês do século XVIII, por exemplo?Sim. Pompeia era constituída por villae [casas de campo romanas] de pessoas muito ricas que tinham o que havia de melhor. E o melhor, no caso das tintas para as paredes, era um pigmento caro – e também altamente tóxico -, o cinábrio. A paleta destes pintores é restrita: muito vermelho, um pouco de preto, um pouco de amarelo, quase sem azul, quase sem verde, um pouco de branco. O vermelho e o amarelo são as cores dominantes. A erupção do Vesúvio pode ter alterado as cores – não as vemos exatamente como eram, de qualquer modo havia este forte predomínio do vermelho.
Além das categorias mentais, a gama de cores ao dispor de um artista depende também da evolução técnica?
Em todas as épocas há pigmentos que são muito caros e outros não tão caros. Imagine um retábulo do fim da Idade Média em que temos Cristo pregado na cruz, com o sangue a escorrer. Para o sangue de Cristo, o pintor usa um pigmento muito caro – é o sangue de Cristo! Mas se ao lado há um carrasco e o carrasco veste de vermelho, o pigmento já não é o mesmo. O olho não percebe a diferença, é preciso fazer a análise química em laboratório para saber que não é o mesmo pigmento. O que nós vemos não esgota todos os problemas da cor.
Do mesmo modo que tem cores favoritas, cada época tem também cores proibidas, detestadas ou consideradas vergonhosas?
Em todas as épocas há cores más, quer sejam interditas, quer se acredite que trazem o azar. Pode haver regulamentos legislativos que proíbem, no domínio do vestuário, por exemplo, usar esta ou aquela cor por estar reservada a uma determinada categoria social – o rei, o imperador – ou, pelo contrário, porque é a cor dos inimigos, uma cor detestável que importa evitar. Em Genebra, na época de João Calvino, é estritamente interdito vestir de encarnado, porque o encarnado é a cor do Papa e dos católicos. E o castigo pode ser muito, muito sério. Quem for apanhado com roupa encarnada pode ser condenado à morte. Em geral não chega a esse ponto, mas pode dar azo a multas e penas de prisão.
Em certos momentos pode falar-se de ‘cromoclastia’, de movimentos que tentam suprimir a cor?
Certas épocas e certos governos são contra as cores vivas. Podemos chamar-lhe ‘cromoclastia’. É o caso dos protestantes, de maneira geral. Antes do protestantismo é o caso dos moralistas, que querem que as pessoas não se façam notar pelos tecidos e pelos vestidos. Isso existe desde a Roma Antiga. No século I da nossa era, em Roma, algumas mulheres começam a vestir-se com cores vivas, típicas das modas orientais, o que parece medonho e, sobretudo, escandaloso. Isso volta a acontecer na Idade Média, nos hábitos dos monges, por exemplo, que usam cores neutras – branco, preto, cinzento, castanho. Nenhuma ordem religiosa se veste de vermelho, verde ou amarelo, que são as três cores consideradas mais vistosas no Ocidente. E usar roupas que tenham ao mesmo tempo amarelo, verde e vermelho é para os loucos, para os bobos, para os palhaços. No Cristianismo há a ideia de que não nos devemos fazer notar pelas roupas, porque no Paraíso terrestre Adão e Eva estavam completamente nus. Devido ao pecado original acabam expulsos do Paraíso e à saída, como símbolo da sua culpa, vão-se vestir. Portanto, seja qual for a roupa, faz lembrar o pecado original, e portanto fazer-se notar pelo vestuário é uma espécie de afronta a Deus e à Igreja. Hoje, ainda que as sociedades europeias se tenham descristianizado, isso continua a ser um pouco verdade. Quando olho para como estão vestidas as pessoas no metro não vejo muitas cores vivas. Na praia sim, no desporto também, mas na rua, no metro, o comum dos mortais usa roupas de cores mais discretas.
Um dia, quando eu estudava História da Arte na universidade ouvi um colega dizer que detestava o amarelo. E pensei de mim para mim o que ele acharia das pinturas de Van Gogh… Por que tem sido o amarelo tão mal visto, tão vilipendiado ao longo dos tempos?
Isso remonta ao final da Idade Média. As sociedades da Antiguidade adoravam o amarelo, havia muito amarelo. Na Grécia e em Roma ele fazia parte da vida quotidiana. Depois, na Idade Média, é muitas vezes substituído pelo dourado, nomeadamente na criação artística, e é o dourado que toma para si os aspetos positivos da cor amarela, enquanto o verdadeiro amarelo fica apenas com os aspetos negativos – a avareza, a inveja, a mentira, a traição. Na pintura, a partir do século XVI, há cada vez menos amarelo. No século XIX, por reação, com a pintura ao ar livre, volta a ver-se muito amarelo e nada de dourado. A partir da invenção da bisnaga de tinta, e da possibilidade de pintar fora de portas, há mais amarelo na pintura, mas os dois grandes pintores do amarelo são Van Gogh e Gauguin.
Atualmente, quando pensamos numa época como a Idade Média, pode parecer-nos estranho todo o simbolismo que então se atribuía às cores. Mas a verdade é que nos dias de hoje seria de muito mau gosto irmos a um funeral vestidos de vermelho. Apesar de tudo, o simbolismo das cores continua bem presente na nossa sociedade?Sim. O que caracteriza a simbólica das cores na Europa é que cada época acrescenta uma camada de significado sobre as camadas anteriores, sem as eliminar. Tudo se acumula. De modo que sobre o simbolismo de uma cor hoje podemos dizer tudo e o seu contrário. Algumas grandes ideias sobreviveram – o branco, cor da pureza, o verde cor da esperança, o vermelho cor da festa, do amor, o azul cor da paz, e coisas desse género -, mas quanto ao resto funciona consoante os meios sociais, os contextos, e a emblemática toma o lugar da simbólica, ou seja, as cores remetem para um país, para uma cidade, para um clube desportivo. Em Lisboa deve acontecer isso com o Benfica e o Sporting…
Sem dúvida.
E na política também. Pouco a pouco, no século XIX e no século XX, as cores começaram a assumir significados políticos: o vermelho é socialista ou comunista; o verde é ecologista; o azul é dos conservadores; o branco dos monárquicos; o preto dos anarquistas; o roxo das feministas. E quando se quer criar um novo partido as cores já foram todas tomadas… Então é-se forçado a adotar cores que ninguém queria – em França foi o caso do amarelo, ninguém tinha escolhido o amarelo, porque era a cor dos traidores. Mas começa a aparecer.
No seu livro fala do caso da Madame de Pompadour, a amante do Rei Luís XV, que popularizou a decoração em tons de cor de rosa e azul claro. Há outros exemplos de personalidades que estejam associadas a cores específicas?
Nas sociedades antigas há apenas um caso bem conhecido, o do imperador romano Nero, que adorava o verde, colecionava esmeraldas, vestia de verde – o que era completamente inédito entre os imperadores. Nas corridas de quadrigas, no hipódromo, apoiava a equipa verde, quando os imperadores tradicionalmente apoiavam a vermelha ou a azul. Mais tarde, o caso mais conhecido é o de Napoleão, que também gostava muito da cor verde. É provável que o verde da bandeira italiana venha de Bonaparte, e é também provável que na Ilha de Santa Helena ele tenha morrido por causa do papel de parede que mandou colocar e que era pintado com um verde feito à base de arsénico, que com o calor húmido se foi libertando para o ar.
Era tóxico.
Sim. Em sentido contrário, temos a Rainha Vitória, que detestava a cor verde e mandou retirar tudo o que fosse verde dos palácios britânicos. E toda a gente sabia que não podia usar verde na sua presença.
Julgo saber que há cerca de 50 anos que se dedica ao estudo das cores e do seu lugar na cultura.
Correto.
Como lhe ocorreu a ideia de contar a história das cores?
A minha paixão pelas cores remonta à infância. Venho de uma família em que havia artistas. Tive três tios avós que eram pintores e o meu pai também tinha amigos artistas, portanto desde miúdo que eu brincava nos ateliês deles com velhas bisnagas de tinta. Penso que a minha atração pelas cores vem daí. Além disso, a minha mãe era farmacêutica, cresci numa farmácia, onde há um código tácito de cores para embalar os medicamentos. Quando era estudante de História comecei a interessar-me pela história das cores. Ao início foi difícil, porque parecia fútil, em comparação com a grande História. Na minha geração, mesmo na história da pintura nunca se falava de cor. Muitos consideravam que não era um tema sério. Mas houve um momento em que isso mudou e comecei a ouvir: ‘Ah, Pastoureau, que trabalha estes temas tão interessantes da história da cor’. Hoje não me posso queixar, mas sofri um pouco porque tive de inventar o meu próprio método. E quando participo em encontros em torno das cores com sociólogos, linguistas, pintores, mas também químicos e físicos, ao fim de três minutos percebemos que não estamos a falar da mesma coisa. Entre as ciências sociais e as ciências duras é difícil trocar ideias.
Não se conseguem entender?
Há a convicção de que o saber científico de hoje é a verdade, e portanto os nossos antepassados, que tinham outros conhecimentos, para um físico, estavam enganados. E quando há uma discussão entre um físico e um sociólogo ou entre um físico e um historiador num palco com assistência, o público dará sempre razão ao homem de ciência. O historiador e o sociólogo não são para levar a sério. É bastante doloroso.
Já dedicou livros ao preto, ao verde, ao azul, ao encarnado e vai sair um sobre o amarelo.
Saiu em França há uma semana.
E não vai haver livro sobre o branco?
Falei muito sobre o branco no livro sobre o preto. Estou chateado porque disse muitas coisas e ao mesmo tempo não disse o suficiente. É preciso esperar pelo aparecimento da imprensa para que o preto seja considerado como o contrário do branco na Europa, porque antes o verdadeiro contrário do branco era o vermelho. O vermelho e o branco eram os perfeitos opostos. O branco e o preto um pouco menos. E por isso o cinzento não era visto como uma cor entre o branco e o preto, era outra coisa, era a mistura de todas as cores. Também questionei o que é a ausência de cor, a não-cor. Nas sociedades antigas, a não-cor era em geral o suporte da cor. Seja qual for o suporte, confunde-se com a ideia de não-cor. E quando papel se impõe a todos os outros suportes, é a cor do papel, o branco, que se torna sinónimo da ausência de cor.
Segundo as estatísticas, o azul é a cor de que os europeus mais gostam. Como se tornou a nossa cor favorita?
Claro que nem sempre foi assim. O azul não estava ausente da vida quotidiana dos romanos ou dos gregos, mas era discreto. A Bíblia não usa a palavra azul. A partir da Idade Média, começa a haver uma promoção do azul, e bastante rápida: o céu torna-se azul nas pinturas, a Virgem veste-se de azul, os reis começam a vestir-se de azul, torna-se uma cor que faz concorrência ao vermelho, que era até aí a primeira cor, a verdadeira cor. E penso que é partir do século XVIII que o azul se torna a cor favorita dos europeus – não há estatísticas, mas é aí que situo essa reviravolta. E a partir do momento em que há estudos de opinião – final do século XIX – é sempre o azul que está à cabeça, muito destacado. Os resultados são aproximadamente os mesmos em todos os países da Europa ocidental. 45-50% das respostas respondem que o azul é a sua cor favorita. Portugal está na média e é em Itália que o azul é mais apreciado: 56%. Não há azul na bandeira italiana, mas todas as seleções desportivas de Itália equipam de azul.
Também pinta?
Sim, sim. Sou, como dizemos em França, um pintor de domingo. Um amador que pinta um pouco. É bom para descansar, para acalmar, para me divertir. Os meus filhos gozam comigo porque sou especialista das cores e nas minhas pinturas a cor é muito contida, como se eu fosse um protestante [risos]. Há muito cinzento, e tenho um hábito: se ponho azul, quase não ponho vermelho, se ponho vermelho, quase não ponho azul. Não gosto de juntar estas cores, talvez porque juntas formam o roxo, e eu não gosto de roxo.
Faz pintura figurativa ou abstrata?
As duas. Gosto de pintar garrafas. Também gosto das formas abstratas, e tentei fazer os retratos dos meus filhos, infelizmente saíram bastante mal. Mas é verdadeiramente um prazer. É o oposto da escrita. Na escrita sofre-se.
Não gosta de escrever?
Gosto de escrever, mas mesmo assim sofro, enquanto pintar me relaxa de imediato. Também gosto de desenhar. Ando sempre com um pouco de papel e um lápis para desenhar. Desde pequeno sempre desenhei e descobri que as lojas que me dá mais prazer visitar são as de materiais de belas-artes, com tintas, lápis de todas as cores, papéis e cartolinas… ahh! Tenho vontade de comprar tudo.
Gosta mais do que das livrarias?
Não. Tanto quanto das livrarias. Infelizmente, em Paris o encerramento de livrarias é uma catástrofe. As grandes livrarias engoliram as pequenas, as livrarias independentes estão a passar um mau bocado. Leio muito, amo o papel, verdadeiramente, fisicamente.
Tem uma grande biblioteca?
Sim. Herdei muitos livros do meu pai, e tenho a doença de comprar livros a toda a hora. Mudei de casa há não muito tempo e a minha mulher ficou furiosa porque levei qualquer coisa como 25 mil livros. Ainda nem tive coragem para os tirar a todos das caixas de cartão que estão na cave, vou tirando aos poucos. É curioso que a minha mulher fez a sua carreira como bibliotecária e diretora de bibliotecas, e agora queria que eu me desfizesse pelo menos de metade dos livros. Mas é difícil separar-me deles.
Para terminar: tem uma cor favorita?
Sim, desde pequeno a minha cor favorita é o verde.
Algum tom particular?
Sim, o verde escuro, o verde acinzentado. Mas para um homem é difícil encontrar roupas verdes. E se entro na loja para comprar uma camisola verde e não encontro, saio com uma camisola azul. Ao contrário do que muitos julgam, as pessoas nem sempre usam as coresde que gostam mais.