O jornalista Fernando Esteves, fundador e responsável pelo site Polígrafo, beneficiou há cerca de um ano de um ajuste direto do Hospital de Santa Maria para a elaboração de livros, no valor de quase 25 mil euros. Sucede que, dias depois, o Polígrafo (que tem uma parceria com a SIC para um programa com o mesmo nome) publicou uma notícia de ‘fact-checking’ da qual este hospital saía favorecido – o que parece configurar um caso de conflito de interesses de natureza ética.
Note-se que o nome do mesmo jornalista surgiu esta semana na acusação do Ministério Público no processo conhecido como Máfia do Sangue, por ser sócio de uma empresa que prestou serviços de consultoria aos dois principais arguidos, Paulo Lalanda e Castro e Luís Cunha Ribeiro. Além disso, ter-se-ia encontrado com Lalanda e Castro numa reunião que visaria omitir o nome do empresário no livro que Esteves estava a escrever sobre a Operação Marquês.
Livro sai seis dias depois do ajuste direto
O documento relativo ao ajuste direto do Hospital de Santa Maria (que com o Hospital Pulido Valente forma o Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte – CHLN), a que o SOL teve agora acesso, tem a data de 3 de dezembro de 2018 e é assinado por Carlos Magno (não confundir com o jornalista), então vogal do respetivo conselho de administração, pelo valor de 24.185,69 euros (IVA incluído). Esta verba situa-se pouco abaixo dos 25 mil euros que constituem o limiar máximo para compras sem concurso pelos organismos estatais, surgindo Fernando Esteves como «único concorrente». O ajuste direto destinou-se à «aquisição de serviços de elaboração e edição de livros sobre o tratamento inovador de Hepatite C no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte, E.P.E.».
O livro seria apresentado publicamente a 8 de dezembro (ou seja, seis dias depois da autorização do ajuste direto), data em que o Santa Maria assinalava o seu 64.º aniversário e a escassas semanas de Carlos Neves Martins, presidente do conselho de administração do CHLN, terminar o mandato (conforme o anúncio público feito no mês seguinte).
Inclui depoimentos de doentes a quem um medicamento inovador para a hepatite C, pouco antes autorizado em Portugal, foi administrado e que recordam de forma laudatória como foram chamados para fazer o tratamento. Um deles, a quem a doença tinha sido detetada havia 20 anos, descreve como, na tarde de 25 de dezembro de 2014, quando o Governo ainda não dera o OK para a compra do medicamento, «recebeu um email do Dr. Carlos Neves Martins, Presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Lisboa Norte, que não conhecia e que lhe disse que, apesar de ter sido recusado o tratamento, iria continuar a lutar para conseguir o tratamento para mim e para os utentes do seu hospital». Outro doente, de nome Luís, escreveu: «Ainda hoje me lembro do meu olhar meio envergonhado e do olhar da farmacêutica, igualmente pouco à vontade, ao entregar-me as duas caixas de 28 comprimidos, que custavam 29 mil euros. Seguiu-se uma breve explicação sobre a administração dos dois comprimidos. Entre frases e sorrisos, reinava uma sensação, que jamais tinha sentido, de agradecimento, esperança e de que uma luta estava a ser ganha».
O livro inclui textos de individualidades que tiveram intervenção nas negociações com o laboratório que vendeu o medicamento – como Paulo Macedo, ex-ministro da Saúde, Francisco George, presidente da Cruz Vermelha e ex-diretor-geral de Saúde, e Eurico Castro Alves, ex-presidente da Autoridade Nacional do Medicamento.
Notícia no Polígrafo
Onze dias depois da autorização do ajuste direto, o Polígrafo (um órgão de informação destinado a verificar a veracidade de notícias surgidas noutros meios de comunicação social) procurava responder assim a interrogações suscitadas pela greve dos enfermeiros dos hospitais públicos, então em curso: «Depois de o bastonário da Ordem dos Médicos ter lançado o alerta, vários leitores do Polígrafo da zona de Lisboa solicitaram um fact-check: afinal estão ou não a morrer doentes no maior hospital do país por falta de comparência dos enfermeiros nos blocos operatórios?».
A resposta era dada pelo próprio Carlos Martins: «Afirmar taxativamente que estão a morrer pessoas por causada greve dos enfermeiros é manifestamente infundado. Em declarações ao Polígrafo, Carlos Martins, presidente do Conselho de Administração do CHLN, afirma que do ponto de vista abstrato se pode dizer que perante uma greve a probabilidade de as pessoas morrerem aumenta, mas na prática, garante, ‘tem havido bom senso por parte dos enfermeiros, que têm garantido os serviços mínimos.’ Ainda assim, sublinha: ‘Claro que ao serem desmarcadas cirurgias a qualidade de vida dos doentes diminui.’ Ou seja: passados 22 dias sobre o início da paralisação, não há registo de mortes diretamente relacionadas com a mesma. ‘Todos os dias morrem pessoas nos hospitais, mas isso faz parte daquilo que eles são’, conclui o administrador».
Não sendo falsas a informação e a conclusão, coloca-se, por um lado, a questão de saber se o Polígrafo estava em condições de isenção para fazer esta avaliação, no seguimento do ajuste direto firmado anteriormente pelo seu diretor com o CHLN e do livro que elaborara. E, por outro lado, se este trabalho respeitou a sua ética profissional enquanto jornalista. Fernando Esteves escreveu durante muitos anos sobre questões de política de Saúde. Foi, até 2017, jornalista da revista Sábado, e antes passou pelos semanários O Independente e Euro-Notícias, mas desde 2003 que era, com Pedro Coelho dos Santos, sócio da Alter-Ego, Lda., uma empresa de consultoria e comunicação, atividades incompatíveis com o jornalismo.
Assessoravam Lalanda e Cunha Ribeiro
Recorde-se que, segundo refere o MP na acusação da Máfia do Sangue, a Alter-Ego trabalhou para Paulo Lalanda e Castro – o arguido principal do caso, onde é acusado de corrupção ativa, e que é representante em Portugal da Octapharma, a empresa que durante anos monopolizou a venda de derivados de sangue aos hospitais do SNS, para a qual chegou a contratar em 2013 o ex-primeiro-ministro José Sócrates.
Ora, a prestação de serviços de consultoria está proibida aos jornalistas pelo seu código deontológico, sob pena de perderem a carteira profissional. O MP diz que a Alter-Ego prestou serviços de consultoria e assessoria de imagem a Lalanda e Castro, nomeadamente para controlo dos danos que as investigações do MP nos casos da Operação Marquês (sobre suspeitas de corrupção passiva, evasão fiscal e branqueamento de capitais praticados por Sócrates) e da Máfia do Sangue estavam a causar à sua imagem.
Antigo quadro do INEM, há muitos anos que Pedro Coelho dos Santos assessorava também Luís Cunha Ribeiro, outro arguido na Máfia do Sangue, acusado de corrupção passiva, desde que este foi presidente da Administração Regional de Saúde (ARS) de Lisboa e Vale do Tejo e participou nas adjudicações de compra de sangue à Octapharma.
O MP recolheu provas, carreadas para o processo da Máfia do Sangue, de que Fernando Esteves chegou a viajar para Londres, em 2016, para se encontrar com Lalanda e Castro quando estava a preparar um livro seu sobre a Operação Marquês, intitulado A Sangue Frio. Diz a acusação que o objetivo principal seria acertar uma estratégia para que o jornalista (que não é arguido nem terá sido ouvido pelo MP) fosse brando em relação ao representante da Octapharma. Acrescenta o MP que o encontro entre ambos foi preparado previamente por Cunha Ribeiro e Coelho dos Santos (que também não é arguido nem foi inquirido).
Proposta para calar bastonária dos enfermeiros
Ainda segundo o libelo, em 2015 Fernando Esteves foi acusado pela bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco, de ter sido o intermediário de Cunha Ribeiro numa proposta: ela deixava de o criticar nas reuniões do Conselho Nacional do PSD (que na altura integrava) e ele trataria de arquivar o processo disciplinar que na altura tinha a correr contra a bastonária por, segundo a participação de uma colega, ter estado três semanas ausente do local de trabalho no verão de 2013, tendo, no regresso ao serviço, picado o ponto para não ser penalizada.
Ana Rita não se conformara e reagira à participação por se considerar vítima de perseguição política por parte de Cunha Ribeiro. Meses antes da participação disciplinar, em abril, no Conselho Nacional do PSD, a bastonária revelara informações, que viriam a ser investigadas na Operação Marquês, sobre as relações entre o presidente da ARS e Lalanda e Castro, a quem Cunha Ribeiro teria entregado significativos concursos públicos para aquisição de plasma sanguíneo.
Finalmente, já antes do ajuste direto, segundo o SOL apurou, existiu outra relação contratual entre Fernando Esteves e o organismo dirigido por Carlos Martins, por via da Alter-Ego. Com efeito, no ano anterior, a 30 de novembro de 2017, o hospital contratou a empresa de Esteves e Coelho dos Santos para a produção de uma newsletter digital bissemanal para o CHLN, pelo valor de 5.360 euros mensais.
A defesa do dono do Polígrafo
Fernando Esteves (que, segundo os autos da Operação Marquês, avisara em 2014 um jornalista amigo de Sócrates, Afonso Camões, da iminência da detenção do antigo primeiro-ministro – como de facto viria a acontecer meses depois –, tendo o interlocutor transmitido de imediato essa informação ao também ex-líder socialista) defende, em declarações ao SOL, que «não há qualquer conflito de interesses», uma vez que o tema tratado no Polígrafo, em dezembro de 2018, sobre a possibilidade de a paralisação dos enfermeiros poder a vir provocar mortes no Hospital de Santa Maria «se impunha em termos de atualidade, e relacionar isso com o livro que organizei sobre a hepatite C é colocar em causa a minha honorabilidade e o meu caráter».
Além disso, o jornalista adianta que o ajuste direto feito em seu nome com o CHLN, a convite de Carlos Martins, para a organização do livro «só se formalizou em dezembro, mas a encomenda inicial foi feita em maio do mesmo ano e eu comecei a trabalhar no projeto ainda em junho, quando não existia o Polígrafo, criado apenas em novembro».
Já quanto à associação que manteve desde 2003 com Coelho dos Santos na Alter-Ego – e que esteve na mira da acusação da Máfia do Sangue devido à prestação de serviços de consultoria aos dois principais arguidos –, Fernando Esteves descarta-se da seguinte forma: «Dei-lhe autorização [a Coelho dos Santos] para faturar através da empresa as suas atividades privadas, mas eu nunca soube quem eram os seus clientes. E ele nunca me disse que trabalhava para Lalanda e Castro e Cunha Ribeiro. Eu cometi aqui uma imprudência: já devia ter largado a empresa há muito tempo. Não tenho como negar isso. A dada altura, a empresa estava praticamente desativada, e o Pedro diz-me: ‘Tu importas-te que eu fature por aqui os meus clientes, porque assim não tenho de estar a passar recibos verdes?’ Eu disse que sim. E brinquei: ‘Desde que não me tragas dívidas…’ Eu conhecia-o há 20 anos e confiava completamente nele. É por isso que as nossas relações não estão boas: sinto-me traído».
Acerca da atividade oficial da Alter-Ego, Esteves explica ainda: «Quando me tornei sócio do Pedro e me apercebi de que no objeto social da empresa estava consultoria e comunicação, disse-lhe que como jornalista eu não podia continuar se isso não fosse alterado. E aquilo mudou, e durante anos funcionou assim. Quando em 2018 decidi sair, o Pedro transforma aquilo numa unipessoal e volta a inserir comunicação. Isto já depois de eu ter viajado com ele para Londres para falar com o Lalanda para o livro sobre o Sócrates».