Futebol. A guerra das bananas

Há pouco mais de 50 anos, Honduras e El Salvador entraram num conflito armado. Kapuscinski dedicou-lhe um livro: Guerra do Futebol.

Costumo contar este episódio que ilustra a pouca consideração que, no geral, os brasileiros nutrem pelos pequenos países da América Latina. Há uns anos já largos, estava no aeroporto de San Salvador à espera de embarcar, quando um tipo abrutalhado percebeu que estava a ler um livro em português. Aí perguntou: «Oi cara. Você vai para onde?». Peranate a minha resposta – Tegucigalpa – ficou adoidado: «Tegucigáupa??? Cê vai deliberadamentchi para Tegucigaupa???». Fui. Deliberadamente.

Veio isto a propósito de um jogo de futebol que cumpriu há meses 50 anos, disputado precisamente em Tegucigalpa e que deu início a uma guerra entre os dois países que nesses 90 minutos disputavam a primeira ronda que decidia uma vaga na fase final do Campeonato do Mundo do México, no ano seguinte, Honduras e El Salvador.

7 de junho de 1969. Os adeptos hondurenhos rodearam o Hotel Intercontinental onde estavam alojados os jogadores salvadorenhos e fizeram um escarcéu pior do que um carnaval durante toda a noite. Atiraram pedras e tijolos contra as vidraças, gritaram ameaças macabras. Os carros traziam escrito nos para-brisas: «Pegate un leño y mata un salvadoreño». No dia seguinte, os adeptos adversários que procuravam entrar no_Estadio Nacional foram agredidos sem piedade. Amelia Bolaños tinha 18 anos e assistia a tudo pela televisão, em san Salvador. Desesperada por ter familiares entre os atacados, pegou na arma do pai e deu um tiro do peito. As_Honduras venceram por 1-0, golo marcado no último minuto por José Cardona, El Conejo.

«Una victória fundamental!», reclamava a imprensa do país. Ai, se ao menos soubessem…

Foi o famoso jornalista Richard Kapuscinski que, no livro sobre o conflito que deflagrou a seguir, titulou: A Guerra do Futebol.

Outros chamaram-lhe a Guerra das Cem Horas. Ou a Guerra das Bananas, já que naquele tempo, dominadas United Fruit Company, as exportações de frutas e de verduras estavam tão dependentes do Estados Unidos que a CIA tratava de derrubar ou erguer presidentes à sua vontade, de onde veio a expressão Repúblicas das Bananas.

 

Causas e efeitos

O futebol foi parar ao banco dos réus e considerado culpado por essa guerra absurda que, apesar de curta ceifou cerca de seis mil vidas e deixou 20 mil feridos no campo de batalha. Kapucinski, que até tinha sido guarda-redes na juventude, explica a confusão em que a guerra se transformou: «Os dois exércitos usavam fardas idênticas, tinham armas iguais e falavam a mesma língua».

A seguir ao jogo de Tegucigalpa, Honduras e El Salvador defrontaram-se mais duas vezes. Mas, antes dele, já o Governo hondurenho tinha posto em prática algo que chamou de Reforma Agrária e que se limitou a ser, basicamente, uma expulsão em massa dos lavradores salvadorenhos que trabalhavam nas Honduras sem qualquer tipo de documentação, como era prática há décadas e décadas.

O ódio já se entranhara profundamente no coração dos homens quando os hondurenhos foram a El Salvador disputar a segunda mão. O estádio tinha um nome pacificador: Flor Branca. Dia 15 de junho: na véspera, com um sentido de oportunidade sagaz, o general Fidel Sanchéz Hernández, presidente salvadorenho, decidiu cortar relações com os vizinhos das Honduras. O diário El Mundo, publicou na primeira página uma foto gigante da chegada dos jogadores hondurenhos. A manchete dizia: Llegam los Canibales!». Os canibais foram transportados para o terreno de jogo em carros blindados. 40 mil pessoas queimaram bandeiras das Honduras e, no mastro corresponde, a bandeira oficial foi substituída por uma toalha de mesa. Atiraram-lhes ratos mortos e ovos podres. Ao intervalo, Salvador ganhava por 3-0 e o resultado ficou assim. «Fuimos terriblemente afortunados al perder», comentou o selecionador Mario Griffin. Assim como assim, perder por três ou por doze era igual. Haveria sempre um desempate, na Cidade do México. Dia 27, no Estadio Azteca.

 

Entre futebol e futebol

Os mais de 300 mil salvadorenhos que viviam nas Honduras continuaram a ser escorraçados, muitos deles mortos enquanto as duas seleções se preparavam para o jogo decisivo.

Os mexicanos não estiveram pelos ajustes. Entre os adeptos de uns e de outros colocaram um contingente de mais de cinco mil polícias armados. El Salvador venceu por três dois num confronto emocionante que nada teve de violento. No dia 14 de julho, a força aérea salvadorenha bombardeava Tegucigalpa. Deliberadamente.

O autor do golo decisivo desse desempate foi Mauricio Rodríguez, El Pipo. Lamentou-se a vida toda: «Jamás imaginé la repercusión que tendría uno de mis goles, lo que iba a desencadenar». O seu adversário, Rigoberto Gomez mostrou-se mais esclarecido: «El fútbol no provocó esa guerra. Fue una excusa. Los combates ya estaban arreglados».

 No dia 18 de julho, após a intervenção da ONU, as hostilidades cessaram. Mas o tratado de paz só foi assinado dez anos mais tarde. Numa crónica, Eduardo Galeano resumiu tudo nisto: «Honduras, pequeno país agrário, é dominado pelos latifundiários. El Salvador, pequeno país agrário, é dominado pelos latifundiários. O povo camponês de Honduras não tem terra nem trabalho. O povo camponês de El Salvador não tem terra nem trabalho. Em Honduras existe uma ditadura militar nascida de um golpe de Estado. Em El Salvador existe uma ditadura militar nascida de um golpe de Estado. Enquanto dura a guerra, o povo de Honduras acredita que o inimigo é o povo de El Salvador e o povo de El Salvador acredita que o inimigo é o povo de Honduras». A paz foi celebrada com um jogo de futebol.