Há duas décadas que Maria João Fernandes, crítica de Arte no Jornal de Letras e ensaísta, se vem batendo pela defesa do património arquitetónico da Arte Nova em Aveiro. Afinal, é bisneta do arquiteto Francisco da Silva Rocha, que José-Augusto França descreveu como o responsável maior pela presença dessa arquitetura na capital da Arte Nova em Portugal. «Se Aveiro pode gabar-se de ser a ‘capital da Arte Nova em Portugal’, se há Arte Nova em Aveiro, é graças à obra de Silva Rocha», escreveu o historiador da arte num abaixo-assinado lançado por Maria João Fernandes em 2006 para a atribuição do nome do arquiteto ao Museu Arte Nova, em Aveiro. O documento reúne as assinaturas de personalidades como Marcelo Rebelo de Sousa, Jorge Sampaio, Eduardo Lourenço, Álvaro Siza Vieira ou Júlio Pomar. Maria João Fernandes vai mais longe e refere-se ao seu bisavô como «o Gaudí português».
Mas há quatro anos que a luta deixou de ser apenas pela preservação da arquitetura da Arte Nova naquela cidade, cujos edifícios tem lutado por classificar para que não corram, à semelhança do que aconteceu com a Casa de Homem Cristo e várias outras, o risco de desaparecer.
Com as palavras de José-Augusto França iniciava um dos muitos textos através dos quais trava uma luta que, quatro anos depois, continua por resolver. «Violação pela Junta de Freguesia do jazigo de família de João Pedro Soares onde se encontrava Silva Rocha e família», intitulava-se o artigo no Diário de Aveiro. No final de 2014 sem que, segundo afirma, a família tenha sido notificada, o jazigo foi expropriado à família pela Junta da União das Freguesias de Glória e Vera-Cruz, responsável pela gestão do Cemitério Central de Aveiro.
A bisneta de Silva Rocha conta ao SOL que, em março de 2015, «sem que tenha sido cumprida qualquer das formalidades legais obrigatórias de notificação dos familiares, as urnas perpétuas que se encontravam no interior do jazigo n.º 32, tanto nas prateleiras da capela como da cave selada, foram daí retiradas».
Só no final desse ano, com a visita de um familiar ao cemitério, descobririam que o jazigo tinha sido esvaziado, no que descrevia nesse artigo de 2015 como um ato que «atinge duramente, em primeiro lugar, a família dos lesados, e em segundo lugar toda a sociedade, todos aqueles que têm parentes queridos cuja memória se sentem no direito de preservar».
Corpos enterrados num talhão de terra
Segundo contou agora ao SOL, ao fim de quatro anos de uma batalha judicial contra a Junta de Freguesia não só para reaver o jazigo como para recuperar os restos mortais daí retirados, os familiares continuam até agora sem informação sobre o destino das urnas «que foram partidas», bem como sobre «o que aconteceu aos respetivos invólucros de chumbo e aos restos mortais, agora impossíveis de identificar a não ser por testes de ADN». Isto porque, segundo diz, «todos os inumados no jazigo 32 foram lançados num único talhão de terra com toda a configuração de uma vala comum». Maria João Fernandes, que Álvaro Siza Vieira descreveu como a figura que «produziu a primeira definição de Arte Nova em Portugal, que a coloca […] como a verdadeira responsável pela sua defesa e divulgação», tece duras críticas ao poder local de uma cidade que este ano se candidatou à Capital Europeia de Cultura 2027: «Assim se profana uma sepultura que deveria ser monumento classificado e se oblitera a dignidade e a memória de toda uma família histórica de Aveiro».
Junta de freguesia em silêncio
Quando procurou junto dos responsáveis locais uma justificação para o sucedido, a resposta que obteve do presidente da junta foi de que o jazigo se encontrava em mau estado de conservação e que «não sabia quem era Silva Rocha». O SOL procurou ouvir o presidente da Junta da União das Freguesias de Glória e Vera-Cruz, mas de Fernando Marques, obteve apenas o «silêncio absoluto». Palavras do próprio , que se escusou a comentar o caso: «Não temos nada a dizer. O assunto está entregue ao nosso advogado, não tenho nada a acrescentar».
Sobre o que se passou em 2015 no Cemitério Central de Aveiro, resta então apenas a versão contada por Maria João Fernandes, que se faz acompanhar de fotografias reafirmando que o jazigo, vendido depois em hasta pública a um comprador que, com a polémica, acabaria por abdicar da construção, nunca esteve no mau estado alegado pela junta de freguesia como justificação para a expropriação.
Foi no início do século XX que João Pedro Soares comprou no Cemitério Central de Aveiro o terreno no qual construiria o jazigo que haveria de acolher não só os seus restos mortais, como os dos familiares que lhe sucederiam, entre os quais o arquiteto Francisco da Silva Rocha.
A descendente direta do arquiteto afirma ainda que, em 2000, o ano em que ali foi depositada a última urna, o jazigo tinha sido alvo de obras recentes. «As urnas alegadamente deterioradas estavam em perfeito estado até 2007, do que existem testemunhas e provas», assevera. Garante ainda que «haveria a maior facilidade em identificar os inumados» na altura em que o jazigo foi esvaziado, bem como em contactar os familiares, dado que a própria autarquia «promoveu e apoiou em 2009 a publicação da monografia» sobre Silva Rocha e a Arte Nova de que é autora. «Eu era facilmente contactável como colaboradora da Câmara Municipal de Aveiro e como figura pública na área da cultura».
Francisco da Silva Rocha, Aveiro e a Arte Nova
Nascido na Mealhada em 1864, Francisco Augusto da Silva Rocha mudar-se-ia para Aveiro, cidade onde, com as suas obras de arquitetura, contribuiria para a afirmação da Arte Nova portuguesa. Aveiro que é, a par de Barcelona – a cidade de Gaudí -, Bruxelas, Budapeste, Glasgow, Helsínquia ou Havana, cidade-membro do Réseau Art Nouveau Network, uma rede composta pelas cidades cuja paisagem arquitetónica a Arte Nova ajudou a moldar.
Pelo casamento com Olinda Augusta Soares, filha de João Pedro Soares, o arquiteto originário da Mealhada passou a fazer parte da família da proeminente figura da Aveiro do século XIX e início do século XX. Entre as obras mais emblemáticas de Francisco da Silva Rocha contam-se a Casa Major Pessoa, construída em 1907 e entretanto convertida em Museu Arte Nova.
A página do Turismo de Portugal para a zona Centro apresenta Aveiro como cidade-museu da Arte Nova em Portugal e sugere um passeio a pé pela que designa como Rota da Arte Nova de Aveiro, que tem justamente como ponto de partida a Casa do Major Pessoa. Localizada na R. Barbosa Magalhães, 9-11 e na Travessa do Rossio, é descrita como o «ex-líbris arquitetónico da Arte Nova aveirense», «uma exuberante composição de flores e arabescos em pedra e ferro forjado riscada por Ernesto Korrodi e Silva Rocha».