A última vez que vi Guilherme Almor de Alpoim Calvão era ele uma pequena nuvem de cinzas, lançada da fragata Corte Real para o suave e brando Tejo no ponto e hora que ele próprio tinha determinado — entre as torres do Bugio e S. Julião da Barra com a maré a vazar. A primeira vez que o vira tinha sido na capa do semanário O Jornal, em 1975, a prometer duas lostras ao socialista Sottomayor Cardia. Quase 25 anos mais tarde, encontrá-lo-ia no Monte Estoril, no antigo Hotel Atlântico, do seu e meu amigo Luís de Athayde. Apesar de já ter passado os sessenta anos, continuava a ser uma figura impressionante de solidez e carisma. Pouco depois, voltei a estar com ele num combinado almoço a sós no Grémio Literário.
A justificação para este almoço inaugural da nossa amizade prendeu-se com o I Congresso Internacional sobre a Guerra Colonial que organizei no Instituto de Defesa Nacional, em 2000. Nesse congresso, num anfiteatro lotado, composto quase só por gente das várias esquerdas, a intervenção do ‘fascista’ Comandante Calvão foi a única, entre as muitas dezenas, seguida com atenção absoluta e sem discussão. A sua autoridade carismática, servida por uma reputação militar ímpar, por um físico poderoso e por uma estupenda voz de comando, fazia com que todos os que com ele se cruzassem, incluindo os muitos inimigos, o reconhecessem como um raríssimo homem superior. João Almeida Bruno, o general comando, dizia ser Alpoim Calvão ‘o nosso 007’. Em boa verdade, perante Calvão, mesmo Connery ou Craig pareceriam débeis, estaladiços. A sua força física era tal que despedia murros do tipo coices para a frente. Numa discussão de trânsito em Lisboa, a que assistiu o agora vice-almirante José Carvalheira, Alpoim Calvão saiu do carro, dirigiu-se ao outro condutor e, em vez de lhe dar um par de galhetas, extraiu-o da viatura e pô-lo pacatamente sentado no tejadilho do seu próprio automóvel.
Guilherme Almor de Alpoim Calvão nasceu em Chaves e, 78 anos depois, morreu em Lisboa, a 30 de setembro de 2014. Cedo foi para Moçambique, onde em criança – era o ‘Leminho’ – teve como maiores parceiros Jacinto Veloso, futuro piloto da Força Aérea Portuguesa e desertor para a FRELIMO, e o meu primo Jorge Pagan, que viria a ser comendador pela sua acção na África do Sul. No Liceu Salazar, de Lourenço Marques, Calvão teve como companheiros Joaquim Chissano e Otelo Saraiva de Carvalho. Já na metrópole, nos preparatórios da Escola do Exército, na Amadora, entre os seus camaradas distinguiam-se Melo Antunes, Eanes e Jaime Neves. Concluída a aprendizagem para a vida castrense, a ‘singradura’, termo de que gostava, dos seus anos pelo planeta viria a ser tão variadamente empolgante que satisfaria a mais fecunda das imaginações – Alpoim Calvão teve, não uma vida, mas uma VITA. Além de exemplar chefe de família, o seu destino, seguindo o seu carácter, as suas qualidades e a sua sorte, desenhou-se em três linhas: a linha militar, a de artista e a de aventureiro. Casado toda a vida com Maria Alda Machado Montalvão dos Santos Silva («A grande companheira. Dura, Rui, dura!»), foi pai de dois filhos e duas filhas. Como um pai bíblico com o filho nos braços, transportava ‘o Leminho’, deficiente profundo por axonia, mesmo quando este já pesava quase cem quilos. Certa vez, com os seus fuzileiros à civil, cercou o Bairro Alto, para caçar e ‘dar um calorzinho’ a um ‘coirão’ branco que tinha maltratado um deficiente preto.
As armas e o canto
Marcelino da Mata, o excepcional contra-guerrilheiro, dizia de Alpoim Calvão: «O ‘Grande’?! Não volta a haver outro homem como ele!». Na verdade, o ‘Grande’ tinha cabeça, peito e sorte. Fez a guerra do alto, como cérebro operacional, e fê-la em baixo, no sangue e no aço. Como criador de guerra, planeava as operações com frieza matemática e tomava as necessárias decisões drásticas. Porque guerra é guerra, interessava-lhe apenas o sucesso da causa em que acreditava, não as baixas que daí resultariam. Entre outros especialistas, o comandante Rodrigues Pereira, historiador naval e antigo director do Museu da Marinha, considerou que, como estratega, Alpoim Calvão estava ao nível de Afonso de Albuquerque, embora sem os meios que o terríbil teve. Por sua vez, como gestor de combates, durante a mortal confusão dos tiros e gritos, mantém-se de pé, soberano, sob a proteção de um qualquer tronco, para melhor controlar e vencer a situação. Se em terra é soberano, na água, sente-se ‘um peixinho’. Além de fuzileiro especial, era submarinista e mergulhador de combate (tinha também o brevete de piloto de avionetas: «É fácil. Basta seguires as regras e não saíres da linha, não inventar»). Mas não é só em combate que exibe uma serenidade soberana, também a revela na iminência dele. Na insuportável ansiedade dos momentos antes dos desembarques de alto risco, Calvão lê sossegadamente o Tio Patinhas. Sabia bem que comandar é também representar. Os seus homens endeusavam-no.
O ‘Grande’ e o Destacamento de Fuzileiros Especiais 8 que comandou tiveram o seu ‘laboratório’, como dizia, na Operação Tridente, na ‘Guiné Portuguesa’. A operação, com mais de dois meses a receber e a devolver metralha, expulsou o PAIGC das ilhas de Como, Caíar e Catunco. Porém, não foi com a Tridente, mas como autor da Mar Verde, aos 33 anos, que atingiu o estatuto de primus centurio. Ao falar de uma das razões da operação que o libertou da lei da morte, gostava de citar Mouzinho de Albuquerque na guerra dos Namarrais: «É preciso dar ar ao quadrado» (cf. Alpoim Calvão Honra e Dever, de Rui Hortelão, Luís Sanches de Baêna e Abel Melo e Sousa, ed. Caminhos Romanos). Na verdade, perante o crescente sufoco, a operação foi o que, num fino conceito militar, se considera como ‘intimidação defensiva’. Dessa espectacular operação, com três mortos e três feridos graves portugueses e cerca de 500 baixas infligidas ao inimigo, resultou a libertação dos prisioneiros militares lusos, o objectivo principal, mas não se conseguiu, por falha nas informações, deitar a mão a Amílcar Cabral, curiosamente um familiar afastado de Calvão. Depois do mítico DFE8, o ‘Grande’ chefiou o COP3. Como chefe das Operações Especiais, numa das ‘Operações Nebulosas’, em abordagem corpo a corpo e à facada, Calvão tomou de assalto um barco inimigo. O ‘acto de pirataria’ teve grande repercussão, chegando a ser discutido na ONU. Apesar da perigosidade, e espectacularidade, de muitas das suas operações, que mandaram ‘para a sucata’ centenas de inimigos, confessou-me que o episódio mais difícil da sua vida militar «foi ter de passar três dias com subordinados num bote, emboscado, à espera».
Depois de cinco anos de guerra na miasmática, lamacenta e abrasadora Guiné, Alpoim Calvão regressa à metrópole. Fica no Comando Naval e a comandar a Polícia Marítima. Da frente na luta por manter um ‘Portugal Maior’ passa à frente da retaguarda. É a fase da Dragão Marinho (faz uma reengenharia das Informações em África e na Europa), do Caso Bretagne (esvazia material para o MPLA de um navio dinamarquês, voltando a encher as caixas com areia e «uns ricos tridentes» das Caldas) e da Operação Esperanza II (afunda no alto mar um navio francês com armamento para a FRELIMO). Com o «25 barra 4», como dizia, e o processo revolucionário, anda pelo país e pelo estrangeiro a dar luta à esquerda totalitária.
Os feitos guerreiros do ‘Grande’ estiveram a muito pouco de não acontecerem. Antes do romper da nossa última guerra, Calvão, com «o instrumento subjectivo que está dentro de nós e que liberta a alma», chegou a pensar profissionalizar-se como tenor lírico. Embora não chegasse a spinto, a sua voz conseguia o «dó, dito de peito, e mesmo o dó sustenido». Cantava árias de Furtiva Lagrima, do Canto a la Espada Toledana e do seu Verdi que «vem da terra, entra pelos calcanhares e toma conta de nós». Chegou a cantar no São Carlos. Mas a sua alma de artista não se ficava pelo canto, espraiava-se pelo piano, desenho, declamação (Camões, Pessoa, Torga, Bandeira) e escrita. E tinha «um bico apurado», além de mão para a cozinha. Foi também um grande colecionador de arte religiosa, de namban, azulejaria e porcelana da China. Ofereceu quadros ao Museu Nacional de Arte Antiga.
As ‘flibusteirices’ e os negócios
O gosto pelo risco e pela caça ao tesouro levou Calvão a inúmeras ‘flibusteirices’. Juntava assim Indiana Jones a 007. Na Índia, recuperou o altar de viagem de Vasco da Gama, que mais tarde ofereceria ao Museu da Marinha. Na ilha de Moçambique, onde Camões ‘invernou’, conseguiu o faqueiro de duzentas peças oferecidas pelo rei Luís Filipe, de França. Outra das suas muitas peças raras foi um par de cães Fo em cerâmica chinesa, do reinado Wanli da dinastia Ming. Certa vez, concluído mais um feliz negócio de armamento, fez uma aposta com o ministro da Defesa da Somália. Ganhou e ficou com «dez camelos e um berbicacho: que fazer com tanto camelo?!». No Brasil, andou pelo garimpo, dormindo «com uma pistola e um olho aberto». Enriqueceu e construiu a Fazenda Caiçara, onde criou gado e produziu café e soja. Com mais de 100 mil hectares, a Caiçara tinha uma Avenida Portugal com 25 quilómetros. Na sua amada Guiné, na ilha de Bolama, foi dono de uma fábrica de caju, onde chegou a empregar 300 guineenses, tornando-se no maior empreendedor do país. Com a fábrica e a sua Liga de antigos combatentes, além de admirado, torna-se querido dos guineenses. Nas vezes que estive com Alpoim Calvão na Guiné-Bissau, confirmei que, de maior inimigo do PAIGC, o ‘Grande’ se tinha tornado no maior amigo dos guineenses.
Guilherme Almor de Alpoim Calvão foi um fabuloso anacronismo — um centurião no século XX. Tudo pensou e fez em grande mas enganou-se no século. Este homem antigo foi, como diria talvez Camões, o Aquiles Lusitano do século XX.
Argivai, Póvoa de Varzim,
18 de novembro
*Professor universitário e membro do Bando dos 5,
com Alpoim Calvão, João Almeida Bruno, José Carvalheira e Ângelo Lucas