“Decisão histórica”. É assim que o portal de notícias do Vaticano classifica o último passo de Francisco no combate ao encobrimento de casos de abuso sexual de menores e pessoas vulneráveis dentro da igreja católica. O Papa aboliu o “segredo pontifício” sobre denúncias, processos e decisões tomadas no seio da igreja sobre casos de violência e atos sexuais, abuso de menores e pessoas vulneráveis, pornografia infantil mas também de processos relacionados com a não denúncia e encobrimento dos abusadores por parte de bispos e superiores gerais de institutos religiosos.
A violação do chamado segredo pontifício, o nível de confidencialidade mais elevado na organização da igreja católica, é punido com excomunhão e era invocado em alguns casos para não facultar informações às autoridades civis. “Algumas jurisdições teriam facilmente invocado o segredo pontifício para dizer que não podiam e que não estavam autorizadas a compartilhar informações com as autoridades estatais com as vítimas”, disse ao Vatican News o arcesbispo de Malta Charles Scicluna, secretário adjunto da Congregação para a Doutrina da Fé, que investiga casos de abusos reportados ao Vaticano. “Agora este impedimento, chamemos-lhe assim, foi suspenso e o segredo pontifício já não é desculpa”.
O que muda
Na nova instrução conhecida esta terça-feira, um rescrito assinado pelo cardeal Secretário de Estado Pietro Parolin, especifica-se que as informações deve ser tratadas de modo a garantir a “segurança, integridade e confidencialidade”, mas que o sigilo não impede o cumprimento das obrigações definidas pelas leis civis, incluindo a obrigação de sinalizar à justiça os casos e facultar a informação às autoridades judiciais e civis.
“Além disso, a quem efetua a sinalização, às vítimas e às testemunhas ‘não pode ser imposto algum vínculo de silêncio’ sobre os factos”, adianta o portal Vatican News. Todos os testemunhos e processos guardados nos arquivos do Vaticano e das dioceses deverão assim passar a ser facultados à justiça sempre que for solicitado.
“No caso dos Dicastérios vaticanos, o pedido deverá ser enviado através de uma carta rogatória internacional, habitual no contexto das relações entre os Estados. O procedimento é diferente nos casos em que os documentos solicitados estejam conservados nos arquivos das Cúrias diocesanas: os magistrados de investigação dos respetivos países, de fato, transmitirão o pedido diretamente ao bispo”, refere o Vatican News.
Scicuna, entrevistado pela Rádio Vaticano, explica também o que muda para as vítimas. “A vítima não tinha a oportunidade de conhecer a sentença que se seguia à sua denúncia, porque havia o segredo pontifício. Também outras comunicações eram dificultadas, porque o segredo pontifício é um segredo do mais alto nível no sistema de confidencialidade do Direito Canônico. Agora é também facilitada a possibilidade de salvaguardar a comunidade e de comunicar o êxito de uma sentença”.
Num segundo rescrito, são alterados artigos referentes ao que a igreja considera delitos mais graves na competência da Congregação para a Doutrina da Fé. A posse de material pornográfico com menores até aos 18 anos passe a ser considerado entre os delitos mais graves, quando até aqui apenas se reconhecia a gravidade de ter em posse imagens de menores até 14 anos. Já nos julgamento canónicos dos crimes mais graves o Vaticano passa a admitir que o papel de advogado e procurador passe a ser exercido por leigos doutorados em Direito Canónico e não apenas por sacerdotes.
As decisões surgem depois de este ano, com o decreto papal Vos Estis Lux Mundi, Francisco ter ordenado a criação de comissões nas dioceses de todo o mundo para receberem denúncias de casos de abusos sexuais cometidos por sacerdotes e religiosos, estruturas que têm de estar operacionais até junho de 2020, bem como plataformas que facilitem a denúncia de eventuais casos. Francisco tornou também obrigatório os sacerdotes denunciarem os casos de que têm conhecimento às autoridades eclesiásticas, a começar pelos tribunais eclesiásticos das dioceses.
Agora, a decisão parece surgir no sentido de reforçar a colaboração com as autoridades civis."O carnaval da obscuridade acabou", disse Juan Carlos Cruz, vítima de abusos sexuais e ativista chileno, citado pelo New York Times.